Infecção hospitalar: a gravidade desse problema de saúde pública no país

Série de abordagens começa descrevendo a preocupação com o tema ao longo da história e um fator decisivo no Brasil para encarar a situação nos hospitais

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Problema da infecção faz tempo não está mais restrita ao ambiente hospitalar (foto: Pexels)

O assunto desta semana diz respeito a um problema de saúde pública que preocupa a todos. Afinal, em algum momento todos nós precisaremos de ser usar serviços hospitalares.

O objetivo desta coluna não é esgotar o assunto sobre este tema, mas esclarecer pontos críticos sobre segurança nos hospitais em relação aos agentes infecciosos que ali circulam.

Pretendo dar algumas dicas simples para que qualquer pessoa possa identificar se os cuidados implementados nos hospitais estão dentro de normas técnicas de segurança para prevenção de infecções, além de desmistificar alguns mitos sobre o assunto.

Faremos, a exemplo do que fizemos na série sobre sepse, uma sequência de textos em que, ao final, teremos abordado pontos fundamentais para entendimento desse problema.

Primeiramente, é importante corrigir o termo "Infecções Hospitalares". Com a expansão da assistência para locais fora dos hospitais, os procedimentos que eram realizados apenas dentro dessas instituições passaram a ser feitos até mesmo na residência dos pacientes. São vários os exemplos dessas situações: antibióticoterapia domiciliar, hemodiálise, quimioterapia ambulatorial, cirurgia plástica etc.

Dessa forma, hoje este termo clássico “INFECÇÃO HOSPITALAR - IH ” ficou desatualizado, sendo substituído por Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde - IRAS. 

Portanto, as IRAS são infecções associadas às internações hospitalares ou a procedimentos realizados em pacientes tanto em ambiente hospitalar ou fora dele, desde que não esteja presente antes da internação ou antes da execução do respectivo procedimento. Usaremos neste e nos textos seguintes os dois termos como sinônimos.

Historicamente, a preocupação com a possibilidade de procedimentos assistenciais em saúde trazerem efeitos indesejáveis já estava presente nos princípios atribuídos a Hipócrates, o pai da Medicina, há cerca de 2300 anos, primum non nocere, que significa, antes de tudo, não causar danos.

Mesmo antes de Hipócrates, há 4000 anos, o Código de Humurabi da Babilônia e papiros egípcios já continham regras para a prática da medicina, incluindo nas tabelas de pagamentos a previsão de multas por má prática.

Os riscos de eventos adversos à assistência hospitalar evoluíram paralelamente aos avanços na atenção à saúde. A criação dos primeiros hospitais na Idade Média foi acompanhada pela ocorrência de  novos resultados indesejáveis. Pacientes admitidos com enfermidades degenerativas ou lesões externas acabavam falecendo por outra doença infecciosa, como cólera, febre tifóide e supurações diversas. 

Dessa época até o final do século do Século XIX, a origem das infecções era cercada de misticismos e se misturava com crenças religiosas como “mau-olhado”, praga divina, bruxaria e outras crenças, que de certa forma, ainda perduram em algumas culturas até os dias de hoje, a despeito de toda evolução cientifica.

A correlação entre hospitalização e o risco de infecções para os pacientes foi fundamentada em 1830 pelo médico escocês James Simpson. Os estudos matemáticos desse médico demonstraram um acometimento 4 vezes maior de febre e gangrena em amputações realizadas nos hospitais do que naquelas realizadas em domicílio.

Praticamente na mesma época, Oliver Wendell Holmes, nos Estados Unidos, e Ignaz Philip Semmelweis, na Europa, produziram estudos fantásticos que estabeleceram as bases para a compreensão da aquisição da Febre Puerperal (Infeção associada ao parto) e dos riscos da hospitalização para parturientes.

Semmelweis, em 1847, concluiu seu brilhante estudo sobre a correlação entre a assistência médica e o elevado risco de aquisição das graves infecções que acometiam as parturientes e as levava à morte. Ele comparou gestantes atendidas por médicos obstetras e estudantes de medicina com aquelas atendidos por parteiras. O primeiro grupo apresentou até 3 vezes mais óbitos e 10 vezes mais infecções que o segundo.

A partir de suas observações, Semmelweis desenvolveu a hipótese da transmissão da febre puerperal ocorrer por partículas cadavéricas transmitidas pelas mãos de médicos e estudantes que saiam das salas de autópsia e iam direto para as salas de parto.  Preconizou então, em 15 de Maio de 1847, que todos os médicos e estudantes de medicina que fossem atender parturientes no Hospital Geral de Viena, lavassem as mãos antes de examina-las. O sucesso desta medida foi provado com a redução dessas infecções de 18,3% em abril para 1,2% em dezembro de 1847.

Entretanto, Semmelweis teve forte oposição às suas ideias e iniciativas, que contrariavam a cultura da época e responsabilizava os obstetras pela morte de milhares de pacientes. Ele foi perseguido e morreu em consequência de lesões provocadas por espancamento em um manicômio, outro evento adverso à internação em hospitais psiquiátricos da época.

Em meados de 1850, Florence Nightingale, nobre inglesa, destacou-se pelos seus esforços na melhoria da organização e da higiene dos hospitais de campanha, que culminaram em redução importante na mortalidade de soldados ingleses durante a guerra da Crimeia. Seus estudos matemáticos, em parceria com William Farr, médico e estatístico, produziram evidências que deram suporte às suas ações de melhoria da qualidade em hospitais ingleses após o seu retorno da guerra. Outra grande contribuição de Nightingale foi a criação da escola de Enfermeiras Saint Thomas, em Londres, que marcou o início da enfermagem moderna.

Merece destaque o fato de Semmelweis e Nightingale terem desenvolvido trabalhos com resultados espetaculares para a época sem saberem da existência de microrganismos, os quais foram descritos por Louis Pasteur somente cerca de 2 décadas depois.

Os trabalhos de Pasteur deram origem, nas décadas seguintes, às técnicas de desinfecção e esterilização de materiais utilizados em cirurgias, as quais foram fundamentais, assim como a anestesia, para o desenvolvimento da medicina de uma forma geral.

Outro fato histórico fundamental foi a descoberta dos antibióticos na década de 40 do século passado, por Alexander Fleming. Julgou-se na época que o problema das infecções estivesse próximo de ser resolvido, tamanho o otimismo com essa droga.


Entretanto, o próprio Fleming, ao descrever a substância produzida pelo fungo do gênero Penicillium sp., que deu origem ao antibiótico penicilina, relatou que algumas bactérias eram resistentes e continuavam a crescer na presença desse fungo. Ou seja, quem descreveu o primeiro antibiótico, descreveu também a resistência bacteriana, grave problema de saúde pública mundial que enfrentamos hoje e nos remete à era pré-antibiótica.

Nos anos subsequentes, apesar dos antibióticos, inúmeros surtos de IRAS foram registrados em hospitais de todo o mundo. Mas foi nos Estados Unidos que esses casos tiveram maior repercussão e geraram inúmeros processos judiciais contra hospitais e médicos. Como resposta a essa demanda de saúde pública, o Centro de Controle de Doenças e Prevenção de Atlanta desenvolveu um importante estudo conhecido como Estudo SENIC, que demonstrou, entre as décadas de 70 e 80, que programas de controle de infecções bem estruturados poderiam evitar cerca de 32% dos eventos nos hospitais. Os resultados impulsionaram programas de controle de infecções em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Esse estudo estimou também que 5% a 10% dos pacientes internados em hospitais americanos desenvolviam algum tipo de infecção, gerando cerca de 100.000 mortes por ano. No Brasil, em 1996, o Ministério da Saúde realizou um estudo semelhante que estimou que 13 em cada 100 pacientes internados desenvolviam algum tipo de infecção relacionada a assistência.

Mesmo antes desse estudo, os programas de controle de infecções nos hospitais brasileiros já eram recomendados. Em 24 de Junho de 1983, o Ministério da Saúde instituiu a Portaria 196, que determinava a criação e dava as diretrizes para estruturação dos programas de controle de infecções em todos os hospitais do país, criando as Comissões de Controle de Infecções Hospitalares (CCIH) e definindo suas atribuições.

Em 6 de Janeiro de 1997, o controle de infecções hospitalares torna-se lei no Brasil através da publicação da Lei Federal 9.431, que estabelecia a obrigatoriedade de todos os hospitais constituírem as suas CCIH e seus Programas de Controle de Infecções Hospitalares.

Na apuração da responsabilidade de casos de IRAS, a inexistência ou inoperância da CCIH e/ou do Serviço de Controle de Infecções Hospitalares (SCIH) configuram negligência, acarretando responsabilidade civil da instituição e os profissionais envolvidos podem ser responsabilizados civil e penalmente.

Mas as infecções hospitalares ganharam visibilidade pública no Brasil com o calvário e morte do recém-eleito Presidente Tancredo Neves, após 2 décadas de ditadura. Às vésperas da posse, ele foi internado com quadro infeccioso abdominal. Depois de várias cirurgias e transferências de um hospital para outro, veio a morrer em São Paulo, em data emblemática, 21 de Abril de 1985.

Tancredo Neves, mesmo sem governar um dia sequer, teve um papel fundamental na história da saúde pública brasileira. A morte dele chamou atenção de toda a imprensa e da população para o fato de as infecções hospitalares atingirem de indigente a presidente, podendo ser letal para ambos.

Depois de Tancredo, a história do controle de infecções nos hospitais brasileiros mudou e nunca mais seria a mesma.

Na próxima semana, veremos o controle de infecções pós-Tancredo, os desdobramentos e a expansão dos cuidados hospitalares para outros eventos adversos, tão ou mais frequentes que as próprias infecções. Veremos também o que cada um pode fazer para ajudar no controle de infeções, seja como cidadão, paciente, acompanhante ou prestador de assistência a saúde. Estamos todos no mesmo barco!

Se você tem dúvidas sobre infecções hospitalares, mande pra mim: cstarling@task.com.br