Viver e adoecer: como surgem as doenças infecciosas?

Conheça os diferentes fatores que interferem na difusão e propagação de doenças, a frequência, modo de distribuição, evolução e meios de prevenção

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Mosquito transmissor do vírus da Dengue é responsável por espalhar doença, mas não é único responsável pela epidemia (foto: Pixabay)

Nas semanas anteriores discutimos a sépsis, seus determinantes epidemiológicos e, posteriormente, o papel e importância do infectologista na equipe multiprofissional, necessária a abordagem deste importante e complexo problema de saúde pública.

Hoje, iniciaremos uma discussão sobre a epidemiologia de diferentes doenças infecciosas.

Comecemos pelo entendimento do que vem a ser epidemiologia, palavra tão citada quando nos referimos a doenças infecciosas e não infecciosas. A epidemiologia é o ramo da medicina que estuda os diferentes fatores que interferem na difusão e propagação de doenças, sua frequência, seu modo de distribuição, sua evolução e a colocação dos meios necessários à sua prevenção.

Existem maneiras distintas de se entender a epidemiologia das doenças infecciosas. A primeira é através de uma visão clássica, em que as doenças são decorrentes da forma de interação do individuo com um determinado agente infeccioso (bactéria, fungo, parasita, etc.) e o ambiente em que está inserido.

Nessa forma de se perceber e estudar as doenças de uma forma geral, a solução da maioria dos problemas passa necessariamente pela educação sanitária. A estruturação de um ambiente saudável para se viver, aliado a hábitos de vida, acesso a meios de prevenção, vacinas, saneamento e educação, seriam, em síntese, as principais estratégias para se controlar os diferentes agentes infecciosos e não infecciosos.

 

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Um exemplo dessa forma clássica de se entender e controlar uma doença pode ser visto com a Dengue. O problema “mosquito transmissor do vírus” invade um ambiente em que se sente confortável para procriar no "ambiente-espaço urbano”, onde vivem pessoas susceptíveis a doença. A epidemia se instala e evolui ao longo de décadas. Qual a forma de controlá-la? Matando o mosquito, esterilizando o mosquito, evitando que o mosquito pique as pessoas (repelente), criando vacinas contra o vírus, educando as pessoas para cuidar do seu microespaço urbano para combater os criadouros que, em sua maioria, encontram-se dentro de suas próprias casas. Campanhas e mais campanhas educativas, propagandas nos mais diferentes meios de comunicação, forças armadas contra o mosquito.

 

Resultado: todos derrotados pelo mosquito.

A Dengue continua provocando epidemias ano após ano. Será por quê?

As medidas estão erradas? Não! Estão corretas. São essas mesmo:
- combater o mosquito em todas as suas fases evolutivas, em diferentes frentes e locais;
- usar tecnologia de ponta para mapear criadouros;
- recolher o lixo jogado no ambiente;
- educar a população para combater o mosquito dentro de suas casas;
- desenvolver vacinas contra o vírus, repelentes, etc.

Tudo absolutamente correto, mas não tem funcionado...o que está faltando nesta forma de entender o problema?

Outra linha de raciocínio no entendimento das doenças é a da Epidemiologia Social, que relaciona a desigualdade econômica ao modo de viver e adoecer da população. Nessa linha de raciocínio, a educação epidemiológica é uma maneira extremamente poderosa e eficaz de transformar uma sociedade e mudar o curso dos problemas que ela cria para si mesma.

Voltemos ao exemplo da Dengue. O mosquito está em toda parte, assim como a doença. Porém, o número de casos em locais onde o espaço urbano é mais desestruturado é maior que em locais com melhor estrutura. As pessoas não escolhem viver em locais com menor estrutura urbana e piores condições sanitárias. Ali estão, por uma determinação social e histórica. Já o mosquito, por sua vez, escolhe procriar em locais que lhe são mais favoráveis, exatamente onde o espaço urbano é mais caótico. Nessa forma de se entender o processo gerador da Dengue, o mosquito deixa de ser o inimigo principal, passando o alvo a ser nós mesmos e nossas decisões enquanto sociedade.

De maneira similar, podemos entender a violência urbana, acidentes de trânsito, câncer ou qualquer outro problema de saúde. De uma maneira ou de outra, a organização enquanto sociedade define nossa forma de viver, adoecer e morrer.

Ao expor essas maneiras de enxergar o processo pelo qual as doenças surgem e se perpetuam, não defendo aqui nenhuma linha política, seja ela de direita ou de esquerda. Trata-se apenas de uma maneira didática de explicitar que somos donos do nosso destino e que podemos muda-lo. Claro, para isso temos que preservar o espaço democrático do diálogo, que nos propicia ter dúvidas quanto ao melhor caminho a seguir. Como dizia Millôr Fernandes, ”se você não tem duvidas é porque está desinformado”.

Utilizaremos aqui as duas linhas de pensamento expostas anteriormente, clássica e social, enquanto complementares na maneira de entender o processo de viver e adoecer.

Em edição anterior desta coluna, abordamos o processo pelo qual bactérias extremamente resistentes surgem em determinadas regiões do planeta e disseminam rapidamente para vários países. Dessa forma, controlar as epidemias que nos ameaçam exige uma responsabilidade planetária, que vai muito além de sectarismos e modelos de desenvolvimento arcaicos que nos conduziram até aqui e geraram pobreza, sofrimento e muita dor.

Não cabe nos tempos atuais aceitarmos as doenças e a falta de assistência como um mero capricho divino e falta de sorte. A história e a ciência nos ensinaram que o pessimismo é inimigo da evolução e da transformação. A evolução, por sua vez, é um processo que tem idas e vindas, mas o que não vale é “resmungar,” regra básica de monges beneditinos. Discutir e discordar é normal e lícito no processo de reconstrução de uma sociedade.

Para que o debate ocorra é necessário que o sistema de informações dos órgãos de vigilância epidemiológica seja ágil e extremamente eficiente. Caso contrário, a sociedade fica sabendo de epidemias pela imprensa leiga e não pelos canais oficiais do estado. Vimos isto várias vezes nos últimos anos.

Portanto, transparência e comunicação eficaz são armas poderosas contra epidemias. Quando a informação anda mais rápido que a dispersão de uma doença, temos tempo para adotar medidas de controle e evitar milhares de mortes.

Como dizia o ator francês Pierre Dac, o futuro é o passado em preparação. Ou seja, o nosso momento de atuar para evitarmos os graves problemas previstos pela Organização Mundial de Saúde para 2050 e salvarmos nossos filhos e netos é agora, se já não for tarde.

A Epidemiologia e a transparência com que as informações chegam às pessoas são a mola mestra que incomoda a alma e o espirito coletivo, funcionando como força motriz que tira as pessoas de suas posições cômodas e gera mudanças.

Há algumas semanas, vi um sinal extremamente animador para quem trabalha com saúde pública por mais de 30 anos. Ouvi pela primeira vez uma entrevista com importante autoridade sanitária do estado, na qual ele admitiu publicamente sua impossibilidade de prever os rumos da epidemia de Dengue em Minas. Qual a importância desse fato? Ao admitir não poder prever o futuro próximo da epidemia, essa autoridade foi transparente com a população. Evitou os velhos chavões populistas e confessou a fragilidade do estado. Isso, de fato, foi novo e belo.

Temos muito a construir e, para tal, conhecer a dinâmica, ou admitir não conhecer, as diferentes doenças na comunidade como um todo é o ponto de partida para qualquer intervenção consciente e tecnicamente consistente.

Nas próximas semanas, discutiremos as bases para o entendimento das diferentes doenças infecciosas, tendo como referência essas correntes de pensamento epidemiológico, com a perspectiva do que cada um de nós pode fazer de melhor para mudar essa realidade.

Se você tem dúvidas sobre o tema, mande pra mim: cstarling@task.com.br