Sepsis e a burocracia letal: como as bactérias resistentes se espalham pelo mundo

Se o uso indiscriminado de antimicrobianos não for controlado, estima-se que ocorrerão 10 milhões de mortes até 2050 por infecções por bactérias multirresistentes

Wikimedia commons
(foto: Wikimedia commons)

Na semana anterior vimos alguns dos principais fatores de risco para ocorrência de sepsis e o que a torna um dos principais problemas de saúde pública dos tempos atuais.

Fatores individuais tais como a idade, gravidade da doença de base e grau de fragilidade do paciente, diabetes, hábitos de vida e uso de medicamentos que reduzem a resposta à infecção (corticoides e quimioterápicos para tratamento do câncer) tornam o indivíduo mais susceptível a infecção e consequentemente a terem um quadro séptico.

Fatores estruturais e organizacionais dos serviços de saúde públicos e privados podem agregar ou reduzir os riscos de morte por sepsis. A falta de reconhecimento dos seus sinais iniciais e de recursos básicos para o atendimento adequado aos pacientes dentro da primeira hora que ele chega nos prontos atendimentos pioram a perspectiva de sobrevivência e tornam a mortalidade, no Brasil, uma das maiores do mundo, em comparação com outros países em desenvolvimento.
 
Vimos também que a burocracia para que os pacientes sépticos tenham acesso aos antibióticos e métodos para identificação rápida dos microrganismos responsáveis pelo processo infeccioso comprometem e aumentam, a cada hora, o risco de morte por sepsis.

Ainda apresentei um importante estudo que correlaciona a corrupção com o nível de resistência bacteriana em países da Europa.

Resumindo, se a burocracia é letal, a corrupção é genocida e cada país tem a resistência bacteriana que merece!

Hoje veremos o papel dessas bactérias resistentes na mortalidade por sepsis, assim como a sua origem e forma de dispersão pelo planeta.
 
É fundamental compreendermos a diferença entre as espécies e a distância evolutiva entre elas. As bactérias estão no planeta há 3,5 a 3,4 bilhões de anos; os fungos, a 1,7 bilhão de anos, mamíferos, há 65 milhões de anos e os homens, há 250 mil anos. 

Portanto, as bactérias possuem uma experiência planetária, do ponto de vista de adaptação, infinitamente maior que a nossa, seres humanos.

Os primeiros antibióticos foram descobertos há menos de 80 anos. Em sua maioria, são oriundos de substâncias produzidas por fungos ou pelas próprias bactérias no processo de competição entre as espécies na natureza. Por mais que sejamos engenhosos para identificar substâncias para combater bactérias e fungos, a experiência planetária fala mais alto.

Esses microrganismos albergam, na intimidade do seu DNA, informações que os tornam capazes de se adaptarem às situações mais improváveis. As bactérias e fungos nos colonizam desde o nascimento. Ou seja, habitam a nossa pele, intestinos da boca ao ânus, superfície dos olhos e parte das nossas vias aéreas. Nesses locais, eles têm um papel fundamental de proteção, estimulam o nosso sistema imunológico, além de ajudar na digestão de alimentos. Em nosso corpo, as bactérias são maioria absoluta!

Numericamente, temos mais bactérias nos habitando do que nossas próprias células. Vivemos com elas ao longo de toda a nossa vida e precisamos delas para sobreviver. Estes microrganismos que nos mantêm vivos são essenciais na manutenção do ciclo de vida no nosso planeta. São eles que eliminam a carcaça de animais e vegetais da superfície da terra e permitem que a vida continue.

O nosso papel, enquanto profissionais de saúde, é adiar ao máximo o  “desembarque” dos nossos pacientes do planeta e lutar contra o papel dos microrganismos. Porém, as diferentes ferramentas de que dispomos para isso são ainda extremamente rudimentares para fazer frente a bilhões de anos de adaptação planetária. Portanto, temos que aprender a conviver com eles, entendê-los e respeitá-los profundamente.
 
Infelizmente, a nossa ignorância, arrogância, ganância e irresponsabilidade para com o planeta e para com a microbiota dos nossos pacientes (aqui, vale também para os veterinários, agrônomos, engenheiros de produção, etc...), têm gerado a seleção de bactérias altamente resistentes, contra as quais não dispomos de antimicrobianos.
 
Pacientes que adquirem esses microrganismos super-resistentes, dentro ou fora de hospitais, e desenvolvem quadros sépticos, tem um risco de morrer significativamente maior do que quando acometidos por cepas sensíveis aos múltiplos antibióticos. Esse risco pode chegar a 70% ou mais quando as bactérias acometem pacientes graves em unidades de terapia intensiva.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) projeta uma situação dramática para os próximos 30 anos: caso não controlemos o uso indiscriminado de antimicrobianos, tanto na medicina humana quanto na medicina veterinária, agronomia e diversas áreas de produção de alimentos, estima-se que ocorrerão cerca de 10 milhões de mortes até 2050 diretamente relacionadas a infecções por bactérias multirresistentes, gerando gastos na ordem de 100 trilhões de dólares para a sociedade.

 

De acordo com estimativas atualizadas pelo CDC- Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos da América em 13 de Novembro de 2019, mais de 2,8 milhões de infecções são causadas por patógenos resistentes aos antibióticos anualmente, resultando em pelo menos 35.000 mortes. Ou seja, ocorre uma infecção a cada 11 segundos e uma morte a cada 15 minutos

 

Na contramão desta previsão está o desenvolvimento de novos medicamentos para enfrentar o problema. Cada vez temos menos antimicrobianos sendo lançados no mercado para tratar esses microrganismos. O motivo é simples: desenvolver um novo antimicrobiano custa cerca de 1 bilhão de dólares para a indústria farmacêutica, com retorno incerto dos valores investidos em função da rápida resistência desenvolvida pelas bactérias.

Além disso, a burocracia regulatória, dos diferentes países, quebra de patentes e incertezas do mercado fazem com que os acionistas dessas empresas prefiram direcionar investimentos para outros segmentos em que o lucro seja menos incerto. Por outro lado, a inércia das políticas públicas fez com que a Organização das Nações Unidas (ONU) lançasse um alerta mundial para que todos os países adotem estratégias para fazer frente ao grave problema de saúde pública.

Uma pergunta que meus alunos sempre me fazem: de onde vêm essas bactérias e como elas surgem? Aqui vale o exemplo de um microrganismo portador de um mecanismo de resistência geneticamente determinado, que surgiu na Índia e hoje causa surtos em hospitais em todo planeta. Trata-se de um dos vários genes de resistência que confere às bactérias a capacidade de resistir a praticamente todos os antimicrobianos disponíveis, através da produção de uma substancia chamada NDM - New Delhi Metalobetalactamase.

Pixabay
(foto: Pixabay)


Bactérias com esses genes estão nos mais diferentes ambientes, tanto da comunidade quanto em hospitais. Foram encontradas em microrganismos presentes nas fezes humanas e de animais, assim como frutas, verduras etc.

A Índia é um país com condições sanitárias extremamente precárias, assim como as nossas aqui no Brasil. Além disso, possui uma legislação ambiental extremamente liberal, que atraí grandes indústrias produtoras de antimicrobianos para o país, sendo hoje uma das maiores exportadoras de antimicrobianos do mundo. Por outro lado, é o quarto país do mundo que mais recebe turistas e um grande exportador de alimentos. O resíduo das fábricas é lançado, sem tratamento, em grande quantidade em rios, cuja água é usada para irrigação de plantações e pela população nas mais diferentes maneiras. Com isso, algumas bactérias presentes no ambiente e colonizando pessoas desenvolveram esse mecanismo de resistência, que, através de alimentos, turistas e exportação de animais, se espalharam para todo o mundo num curto espaço de tempo. 

 

Trata-se de uma epidemia silenciosa, que percebemos apenas quando internamos um paciente com infecção no hospital, usamos antibióticos e ele desenvolve, posteriormente, uma infecção por germes altamente resistentes e portadores desse gene. Com frequência cada vez maior, pacientes têm chegado aos hospitais com bactérias altamente resistentes oriundos da própria comunidade.

Dentro dos hospitais, particularmente aqueles em condições mais precárias de assistência e política de controle de infecções deficientes, essas cepas se dispersam para os pacientes mais vulneráveis. Nesse caso, as mãos dos profissionais de saúde e o contato com o ambiente precariamente higienizados são as formas de transmissão mais frequentes. Ou seja, o que percebemos nos hospitais é a ponta do iceberg de um problema maior oriundo da própria comunidade. Vale lembrar para o que chamamos atenção na semana anterior: baixa governança, muita lambança. Neste caso, lambança planetária, feita por nós mesmos, por absoluta inconsequência! 

Concluindo, se não equalizamos a distribuição dos bens e criamos abismos sociais, a natureza equaliza a desgraça. O submundo microscópico que nos habita e o planeta inteiro é composto por seres vivos altamente dinâmicos, com bilhões de anos de adaptação. A teoria de Charles Darwin da seleção das espécies nos ensinou que, na forte luta pela vida, a sobrevivência é do mais apto e não do mais forte. O que temos de diferente das bactérias é a capacidade de decidirmos para onde queremos ir. Se não soubermos, qualquer caminho servirá..., mas, não reclamem do resultado.

Na próxima semana veremos como lidar com a sepsis, mesmo nessa posição altamente desfavorável. Há luz no fim do túnel!

Se você tem perguntas e quer tirar dúvidas, fale comigo: cstarling@task.com.br