Segurança em Saúde Pública: estamos preparados para lidar com emergências?

O caso da "doença misteriosa" ocorrida no Bairro Buritis, em BH, trouxe à tona o debate sobre a insegurança geral em situações dessa natureza

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(foto: Flickr)

Nas semanas anteriores abordamos o tema Infecções Hospitalares. Começamos pela história dessas infecções, a importância do episódio envolvendo a morte do presidente Tancredo Neves para evolução da nossa legislação e implantação de programas em hospitais brasileiros e, por fim, os determinantes de risco para ocorrência dessas infecções.
 

Programamos para hoje discutirmos os motivos pelos quais é tão difícil implantar uma das medidas mais simples e importantes para prevenir estas infecções em ambiente hospitalar – a higiene das mãos antes e depois de examinar e /ou tocar os pacientes. Ou seja, por que as pessoas não fazem o óbvio?!

Entretanto, adiaremos um pouco este tema para a semana seguinte em função de uma emergência em saúde pública, o qual estamos vivendo nos últimos dias em Belo Horizonte, que é a ocorrência de casos de uma "Doença Desconhecida", a qual tem gerado pânico na população e atraiu a atenção da imprensa local e nacional.

Foram 8 casos em estudo até o momento que escrevo este texto, numa população de cerca de 5 milhões de pessoas, o que significa 0,16 caso para cada 100.000 habitantes. Apesar da gravidade, o numero de casos notificados ainda é pequeno até este momento. A despeito disso, o pânico instalou-se na velocidade das redes sociais, criando um quadro que em psiquiatria poderíamos chamar de Folie Coletive digital. Ou seja, surto coletivo digital.

Trata-se de um fenômeno dos nossos tempos com o qual ainda estamos aprendendo a lidar.

Nesse caso, o fato de desconhecermos num primeiro momento a etiologia do problema, gerou extrema insegurança na população e um comportamento próprio de quem tem medo. O desconhecido alimenta o imaginário popular, que por sua vez, gera Fake News, que são postadas freneticamente por milhares de pessoas ao mesmo tempo, retroalimentando o próprio medo e a insegurança.

Se por um lado a fluidez da informação tem pontos altamente positivos, por outro, informações distorcidas geram conclusões e condutas errôneas, dando uma falsa impressão de segurança.

As pessoas se sentem aliviadas falando dos seus problemas e temores, seja em redes sociais ou no divã de um analista.

Pois bem, a população tem motivos para se sentir insegura em situações desta natureza no Brasil? Na minha opinião, sim!

Nos últimos 10 anos, tivemos surtos de Doenças Infecciosas aos montes. Dengue, Zika com hidrocefalia em bebês, Chikungunya, Febre Amarela, Sarampo são alguns dos motivos de toda essa insegurança.

No caso da Dengue, são décadas de epidemia fora de controle. Por mais que os diferentes governos façam propagandas milionárias, o mosquito persiste firme e forte, a despeito da boa intenção dos governantes de plantão.

 

No rastro da Dengue, vem ganhando espaço a Chikungunya e a Zika. Para confirmar o motivo de tanta insegurança, a Febre Amarela surge de forma avassaladora e ameaça os grandes centros urbanos. Ficou patente a baixa cobertura vacinal nas áreas acometidas.

Na sequência desde pesadelo veio o Sarampo, que encontrava-se controlado por mais de 20 anos, evidenciando a fragilidade do nosso sistema de saúde e a falta de monitoramento do estado vacinal da população.

Doença de Chagas transmitida pelo açaí, Febre Maculosa transmitida em áreas de lazer e turismo, leptospirose e enchentes, superlotação de hospitais, filas intermináveis para se conseguir medicamentos especiais etc. Tudo isso torna a população descrente da competência do Estado em ofertar-lhe Segurança em Saúde Pública.

Se faltam recursos básicos para assistência e até mesmo os salários dos servidores públicos, como confiar nesse mesmo Estado em momentos de emergência sanitária?

O Estado brasileiro não fez por merecer a confiança do seu povo nos últimos 20 anos. Cobrou impostos demais e ofereceu serviços fundamentais pífios.

Mas, voltemos ao caso da Doença Desconhecida. Essa não é a primeira vez que enfrentamos esse tipo de problema. Há cerca de 20 anos, tivemos um surto de Insuficiência Renal Aguda na região de Divinópolis e Nova Serrana. A investigação identificou que o leite crú contaminado por uma cepa específica da bactéria Streptococo sp, fornecido de porta em porta por um fazendeiro, era a fonte do problema.

Surtos desse tipo tivemos vários nos últimos cinco anos. Todos eles foram investigados e resolvidos de forma brilhante pelos técnicos dos nossos serviços de saúde. Mas, surto resolvido, problema esquecido. Inclusive os técnicos que se desdobraram para investigar o problema e resolvê-lo.  Ninguém sabe quem são esses heróis anônimos.

Eventualmente, uma publicação científica serve como referência histórica da situação investigada. O problema magicamente desaparece no momento em que a imprensa para de falar sobre o assunto. Nessas situações, falta o fechamento da investigação com o maior interessado, a população envolvida. Falta valorizar o sucesso do trabalho de investigadores anônimos e, principalmente, transformar o problema em conhecimento e educação popular em saúde pública.

Essa falta de conhecimento sobre a dinâmica de um processo de investigação epidemiológica gera insegurança e atropelos, comprometendo o processo investigativo e seus objetivos fundamentais:

 

- controlar o problema;

- salvar vidas;

- e gerar conhecimento para que situações semelhantes sejam evitadas no futuro.

Para que esse objetivo seja alcançado, é importante que todos saibam que uma investigação epidemiológica segue princípios científicos, os quais devem  ser cumpridos de forma sistemática, sob o risco de não se chegar a nenhuma conclusão.

Uma Investigação Epidemiológica exige coleta detalhada de informações dos pacientes afetados e dos seus contatos mais próximos que não desenvolveram o problema em investigação, hábitos de vida dos afetados e não afetados, registro dos sinais, sintomas, dados laboratoriais etc. Essas informações permitirão a realização de análises estatísticas que permitirão a elaboração de hipóteses a serem respondidas e testadas.


Todas essas ações podem demorar alguns dias para serem realizadas, sendo que a agilidade dos processos é dependente do grau de sofisticação do problema em estudo e dos recursos humanos e materiais para investigá-lo.

O sucesso da investigação depende também da qualificação e experiência da equipe envolvida, da disponibilidade de um sistema de informações bem estruturado, suporte laboratorial com alta capacidade resolutiva, suporte de um centro de verificação de óbitos bem equipado e com pessoal altamente treinado, além de uma equipe de comunicação dedicada a dar transparência para a imprensa formal e população das ações em curso.

Atropelando-se essas etapas, corre-se o risco de não chegar a lugar algum. Ou, pior, chegar a conclusões erradas e intervenções equivocadas.

É o sincronismo de todas essas etapas e processos que permite a resolução dos problemas e, consequentemente, confere credibilidade aos órgãos de Saúde Pública.

Nem sempre é possível chegar a uma conclusão definitiva sobre a fonte e o mecanismo de transmissão de uma determinada doença. Porém, a boa notícia é que cerca de 10% a 20% dos surtos terão resolução espontânea mesmo sem intervenção alguma. É nesta premissa que apostam os gestores irresponsáveis, que jamais serão responsabilizados pela tragédia que poderiam evitar.

A má noticia é que se o problema não for resolvido, persistirá matando e mutilando milhares de pessoas por tempo indefinido.

Um aspecto fundamental que merece ser destacado é nossa carência de um Centro de Verificação de Óbitos com objetivos científicos e voltado ao esclarecimento de casos de mortes sem diagnóstico. Nossa falta de cultura nesse tipo de prática é gigantesco. Como diz o professor Luiz Otavio Savassi, que coordena por mais de 40 anos as Sessões Anátomo-clinicas do Hospital das Clinicas da UFMG e autor de um dos mais importantes livros sobre o assunto, a "Medicina de trás para frente" é fundamental para dar luz ao desconhecido.

A semelhança dos sinais e sintomas provocados pelas doenças infecciosas com várias outras síndromes, entre elas as intoxicações, acaba levando a tratamentos equivocados e uso abusivo de antimicrobianos. Além da seleção de cepas bacterianas extremamente resistentes e efeitos colaterais indesejáveis, a falsa segurança de um tratamento instituído sonega aos pacientes o tratamento adequado no momento ideal.

Neste sentido, as necropsias são altamente pedagógicas e nos tornam mais humildes diante da vastidão do universo do conhecimento científico.

A filosofia nos ensina que o verdadeiro conhecimento não está na profissão A ou B, mas na interseção entre elas. Eventos como esse, Doença Desconhecida, nos remetem à necessidade de rever conceitos e, principalmente, nos ensinam a trabalhar em equipe, pré-requisito fundamental para elucidar casos complexos em saúde pública.


Na próxima semana, voltaremos ao Óbvio...

 

Se você tem dúvidas, mande pra mim: cstarling@task.com.br