Existe relação entre apendicectomia e risco de câncer colorretal?

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(foto: al.se.leg.br/Reprodução )

Um estudo chinês recentemente publicado sugeriu que a cirurgia de apendicectomia pode levar a mudanças prejudiciais no microbioma intestinal que contribuem para o o surgimento do câncer colorretal (CRC). 

Os pesquisadores observaram um aumento de 73% no risco de CRC entre os casos de apendicectomia em comparação com os controles ao longo de 20 anos de acompanhamento. O estudo, publicado recentemente  na prestigiada revista médica Oncogene, sugere que a apendicectomia pode promover tumorigênese colorretal ao influenciar o microbioma intestinal e que os cirurgiões devem considerar com mais cautela a necessidade e a indicação de apendicectomia nos pacientes. 
 
Embora os resultados do estudo sejam considerados provocadores, vários especialistas ainda questionam quais seriam as possíveis implicações clínicas dos resultados apresentados, como por exemplo, a mudança nas indicações de rastreamento para CCR nos pacientes submetidos a essa cirurgia. .


Um crescente corpo de evidências sugere de fato que a flora intestinal pode desempenhar um papel no risco de CRC, e outras pesquisas indicam que o apêndice pode desempenhar um papel na manutenção da diversidade do nosso microbioma intestinal.  No entanto, se a remoção do apêndice influencia inequivocamente o risco de uma pessoa para o desenvolvimento do CRC não sabemos com certeza absoluta, pois se trata ainda de um tema controverso entre os  principais especialistas. 

No estudo atual, Feiyu Shi, do Primeiro Hospital Afiliado da Universidade de Xi'an Jiaotong, e colegas, procuraram entender melhor uma possível associação entre apendicectomia e risco de CRC. A equipe realizou o estudo em três partes: (1) analisou uma população de 129.155 adultos que fizeram apendicectomia e aqueles que não fizeram para avaliar uma possível conexão clínica entre apendicectomia e risco de CCR;  (2) realizou sequenciamento metagenômico fecal para avaliar as características do microbioma intestinal em casos de apendicectomia versus controles normais pareados sem apendicectomia;  e (3) investigou um modelo de camundongo CRC com apendicectomia para descobrir um mecanismo de tumorigênese colorretal induzida por apendicectomia.

Os autores então compararam o risco de CRC em quase 44.000 casos de apendicectomia versus mais de 85.000 controles de não apendicectomia pareados por idade e sexo.  Eles descobriram que, ao longo dos 20 anos de acompanhamento, o risco de CRC aumentou 73% nos casos de apendicectomia (razão de risco ajustada de 1,73). O risco de CCR e disbiose intestinal foram mais pronunciados em adultos com mais de 50 anos com história de apendicectomia.
 
Na análise do microbioma intestinal, a equipe de Shi realizou sequenciamento metagenômico em amostras fecais de 314 participantes - 157 casos de apendicectomia e 157 controles - e encontrou alterações significativas no microbioma intestinal em casos de apendicectomia.  As alterações foram caracterizadas pelo enriquecimento de sete bactérias promotoras de CRC, incluindo Bacteroides vulgatus e Bacteroides fragilis, e depleção de cinco bactérias benéficas, incluindo Collinsella aerofaciens e Enterococcus hirae.

Finalmente, examinar a influência da apendicectomia na disbiose microbiana e tumorigênese do CRC, a equipe de Shi realizou uma apendicectomia ou um procedimento simulado em um modelo de camundongo CRC induzido por carcinógeno e descobriu que a apendicectomia parecia promover a tumorigênese do CRC ao induzir disbiose intestinal.

Embora os resultados desse relevante sejam considerados impactantes, devemos ter  cautela na interpretação dos achados, que obviamente necessitam de confirmação em novos estudos e de coortes maiores. Há também algumas inconsistências metodológicas no estudo que merecem nossa atenção, como 
o fato dos  dois grupos não serem completamente comparáveis, mesmo tendo sido eles pareados por idade e sexo, pois muitos fatores conhecidos e desconhecidos podem explicar os resultados. Por exemplo, informações sobre quais indivíduos foram submetidos a rastreamento de câncer de cólon não foram detalhados na publicação, o que eventualmente poderia explicar as diferenças encontradas. 

Adicionalmente, o microbioma intestinal foi avaliado apenas  em  um pequeno grupo de indivíduos e uma análise transversal  pode não ser  suficiente para estabelecer inequivocamente diferenças significativas no microbioma intestinal verificado nos pacientes submetidos à apendicectomia. 

Assim sendo, podemos concluir que os dados obtidos por esse relevante estudo são sim geradores de uma hipótese preocupante, mas obviamente precisam ser corroborados por estudos subsequentes, desenhados com maior e melhor poder estatístico e metodológico para que uma conclusão definitiva possa ser estabelecida. Como dever de casa, podemos sim afirmar que, como em qualquer indicação cirúrgica, a necessidade da apendicectomia deve ser muito bem estabelecida, e sempre considerando-se os parâmetros clínicos, laboratoriais, e imaginológicos. A discussão sobre o tratamento conservador da apendicite não complicada foge do escopo desse artigo.