Sépsis e a burocracia letal: entenda por que, apesar de tudo ela é uma doença evitável

Simplicidade é a chave do sucesso. Evitar infecções é o princípio fundamental para a prevenção e tudo começa na assistência básica à saúde

Flickr
(foto: Flickr)

Nas últimas três semanas, abordamos o conceito de sépsis, como identificar de forma precoce os principais sinais e sintomas, os determinantes e fatores de risco da doença e o papel das bactérias multirresistentes como agentes que elevam o risco de morrer por quadros sépticos.

Vimos também que o diagnóstico e tratamento adequado, no menor tempo possível, são fundamentais para a redução da mortalidade por sépsis. Apresentamos evidências de que a burocracia estatal e regulatória das instituições públicas e privadas sonega recursos para o diagnóstico e tratamento precoces, elevando a possibilidade de morte dos pacientes.

Já a corrupção perverte todo o sistema e corrói os recursos necessários ao atendimento básico dos pacientes, aumenta o uso de antimicrobianos, contribuindo para a seleção de bactérias super-resistentes, tanto na comunidade como nos hospitais.

A dispersão dos genes que permitem a essas bactérias se tornarem quase intratáveis é planetária, não respeitando limites geográficos ou classes sociais.

Hoje veremos como evitar a sépsis, da assistência básica na comunidade aos hospitais mais complexos. Mais uma vez, a simplicidade é a chave do sucesso. Evitar toda e qualquer infecção é o princípio fundamental para a sua prevenção e tudo começa na assistência básica à saúde. Saneamento básico e vacinação são as melhores e mais baratas estratégias para se evitar doenças infecciosas e consequentemente, a sépsis.

Nesse aspecto, vale ressaltar a excelência do nosso Programa Nacional de Imunizações (PNI), estruturado em 1973 e reconhecido como um dos melhores do mundo pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O PNI - com seus 46 anos de existência - busca a inclusão social, assistindo todas as pessoas, em todo o país, sem distinção de qualquer natureza, fornecendo vacinas gratuitas para todas as idades. Trata-se do imposto mais bem aplicado que pagamos e com ganhos sociais e econômicos intangíveis.

A lógica é simples: evitando-se uma infecção como a gripe, por exemplo, evitam-se também as complicações infecciosas subsequentes, como a pneumonia bacteriana e a sépsis. A própria pneumonia bacteriana causada pelo agente mais frequente dessa doença, o pneumococo, pode ser evitada com uma vacina, prevenindo-se, além da sépsis, infarto agudo do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais decorrentes das alterações da coagulação sanguínea, ocasionadas pelo processo infeccioso. Ou seja, com as vacinas evitamos várias complicações ao mesmo tempo. Até mesmo os cânceres de colo do útero, de pênis e reto podem ser prevenidos com a vacina contra o HPV (Papiloma vírus Humano). As vacinas serão objeto de várias publicações desta coluna em 2020, aguardem!

Assim como as vacinas - e certamente mais importante que elas -, o estado nutricional da população é de suma relevância. Pessoas desnutridas são mais susceptíveis às infecções, independentemente de estarem ou não vacinadas. Neste aspecto, a corrupção, o desemprego, as péssimas condições de moradia, a falta de saneamento básico e a educação precária se transformam na causa raiz de quadros sépticos em países subdesenvolvidos.

Da mesma maneira, o acesso aos serviços básicos de saúde é fundamental para o controle da hipertensão arterial, diabetes e obesidade, doenças que tornam as pessoas mais propensas a desenvolver processos infecciosos e consequentemente a sépsis.

O controle de infecções crônicas tais como erisipelas, infecção urinária de repetição, sinusites, otites, entre outras, é extremamente importante para se evitar a disseminação dos agentes que causam esses processos infecciosos e os levam até a corrente sanguínea. Portadores dessas condições devem ser acompanhados de perto pelos seus médicos e serem alvo de atenção especial pelos programas de monitoramento de pacientes de risco, tanto público quanto privado.
 
O incentivo a hábitos de vida saudáveis, prática de esportes, redução de peso e de ingestão de bebidas alcoólicas, abolição do fumo e do uso de drogas ilícitas são medidas essenciais para a prevenção da sépsis, devendo fazer parte de campanhas educativas nos mais diversos meios de difusão de informação, além de fazer parte do currículo das escolas do primário às universidades.

Em outra vertente, não podemos esquecer do que comentamos na semana anterior sobre a poluição causada por indústrias que produzem antimicrobianos e lançam seus rejeitos nos rios sem tratamento. A legislação sobre o assunto deve ser rigorosa, assim como a fiscalização do uso de antimicrobianos em agronomia e medicina veterinária. Temos atualmente evidências claras de que microrganismos super resistentes são selecionados na comunidade como resultado desse tipo de poluição, ainda pouco percebido pela população.  

Ter acesso a um parto seguro é outro ponto fundamental no controle da sépsis, tanto para a mãe quanto para o recém-nascido. A questão da acessibilidade às consultas e orientações de pré-natal é um direito básico. O incentivo ao parto natural, em detrimento das cesarianas, é crucial para se evitar as complicações decorrentes deste procedimento. As pacientes submetidas a cesarianas têm, aproximadamente, um risco 10 vezes maior de desenvolver infecções, se comparadas às pacientes que tiveram parto normal. Portanto, evitar cesarianas desnecessárias e feitas por puro comodismo é uma importante maneira de se evitar a sepse relacionada ao parto.

Nessa mesma linha, o incentivo ao aleitamento materno é a medida mais importante para garantir nutrição adequada da criança e evitar as principais infecções nos primeiros anos de vida. Lembro: evitar infecção é evitar sépsis.

Em instituições de saúde, a prevenção da sépsis passa, necessariamente, pelo controle de qualidade em todos os setores do hospital. Uma estrutura assistencial adequada, aliada a processos de trabalho bem estruturados e uma cultura de reflexão sistemática dos resultados alcançados, são condições básicas para que uma instituição seja considerada de excelência pela Organização Nacional de Acreditação Hospitalar. Para garantir esse nível de qualidade, os hospitais são obrigados a investir recursos significativos no processo de certificação. Com as tabelas de remuneração do Sistema Único de Saúde congeladas por mais de uma década, hospitais públicos e filantrópicos saem em flagrante desvantagem em relação à maioria dos privados. Não me refiro aqui à ilhas de excelência, mas sim à maioria das instituições pelo Brasil. Faltam recursos, falta gestão e sobram sépsis.
 
Nas instuições privadas, a situação é um pouco melhor mas não menos desafiadora. O equilíbrio entre o que é pago pelas operadoras de planos de saúde e as exigências sanitárias e regulatórias dos processos de certificação de qualidade é uma conta difícil de fechar. Ainda assim, a busca por melhoria da qualidade e por selos de excelência cresceu exponencialmente no Brasil na última década. Sinal claro de que há luz no fim do túnel.

Wikipedia
Já no séx XVIII, médico húngaro Ignaz Semmelweis defendia higienização das mãos para evitar infecções no parto (foto: Wikipedia)
Em instituições de saúde, as medidas de controle da sépsis começaram ainda no século 18, com os trabalhos de um médico húngaro, Ignaz Philipp Semmelweis. Ele preconizava a higienização das mãos para evitar infecções associadas ao parto, que eram uma catástrofe naquela época. Apesar de ter sofrido perseguição implacável dos próprios colegas, Semmelweis conseguiu reduzir, com a medida, as taxas de infecção de 15% para menos de 2%, numa época em que se desconheciam até mesmo as bactérias como agentes de infecções.

Por incrível que possa parecer, o desafio enfrentado por Semmelweis ainda é um dos maiores problemas que enfrentamos hoje. Conscientizar e motivar profissionais de saúde a higienizar as mãos, antes e depois de examinar os pacientes, é um dos grandes problemas dos programas dos Controle de Infecções em Hospitais no mundo inteiro. Esse assunto também merecerá uma coluna especial, tamanha a sua importância.

O legado de Semmelweis não ficou apenas na identificação das mãos como transmissora de agentes infecciosos, mas também no método de trabalho utilizado por ele. Em sua pesquisa ele identificou um problema, levantou dados, analisou estatisticamente, interviu de forma precisa e avaliou os resultados desta intervenção. Tudo isto sem computador, sem internet, sem saber da existência de bactérias e  vírus e ainda sendo perseguido por ir contra a cultura da época.

À esse processo denominamos Vigilância Epidemiológica, base para a implantação dos programas de controle de infecções, segurança do paciente e melhoria de qualidade da assistência em hospitais. O acesso a tecnologia da informação facilitou enormemente esse trabalho nas últimas décadas, mas ainda assim, o controle da sépsis nos hospitais exige medidas extremamente específicas.

Treinar os profissionais para identificação dos sinais precoces de sépsis, ter acesso aos métodos de identificação rápida de microrganismos e iniciar antibióticos de forma bem orientada na primeira hora em que o paciente chega ao hospital ou mesmo quando ele, já internado, desenvolve quadro séptico, não é simples. Estratégias usadas para garantir a qualidade na indústria automobilística e aeronáutica têm sido cada vez mais utilizadas em hospitais por todo o mundo para reduzir complicações infecciosas e não infecciosas.

A padronização de processos de trabalho e condutas, em todas as esferas sociais, é fundamental para a garantia da qualidade, não substituindo a criatividade, o conhecimento e a vivência dos diferentes profissionais que compõem a equipe assistencial. Protocolos de uso racional de antimicrobianos e a supervisão da prescrição desses medicamentos por especialistas são regras básicas para prevenção da seleção de bactérias altamente resistentes nos pacientes e no ambiente hospitalar. Tais medidas são hoje reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina e seus representantes regionais como fundamentais para segurança dos pacientes e de toda comunidade. Sem dúvida, um avanço coerente em nossa legislação, compatível com a gravidade da realidade que enfrentamos e a vasta literatura científica sobre o tema.
 
Mas nada disso funcionará de forma efetiva se você, leitor, não souber o seu papel como ator principal nesta caminhada em busca da sua própria segurança. A jornada começa com a sua responsabilidade por escolher o seu destino e de toda a sociedade. Eleger representantes de maneira consciente e responsável é, em última instância, evitar a sépsis. Exigir que os órgãos de fiscalização pública disponibilizem informações sobre quais instituições têm ou não alvará de funcionamento, é o mínimo. Procurar saber se a instituição onde você está, ou pretende se internar, possui certificação de qualidade é valorizar o esforço de quem quer trabalhar de forma séria, mesmo em condições adversas. Pergunte para o profissional que o assiste se ele lavou as mãos antes de te tocar. Não tenha vergonha de fazer essa pergunta, é um direito seu e nossa obrigação.

Nas próximas semanas, iremos mudar de assunto. Mas a sépsis, como você deve ter percebido, ficará sempre como pano de fundo dos problemas infecciosos que abordaremos. Por isso, começamos por ela e a teremos como consequência mais devastadora da burocracia, da corrupção e da nossa própria negligência, inconsciência ou impotência para escolher nosso próprio destino.

Se você tem dúvidas e perguntas, fale comigo:cstarling@task.com.br