Cirurgia bariátrica: quando nem tudo são flores

Discutir os prós e contras da cirurgia é ponto-chave a ser feito de maneira individualizada. Isso é parte da tomada de decisão compartilhada e às vezes é um processo longo e demorado para o paciente

Pixabay
(foto: Pixabay)

Não resta a menor dúvida sobre a importância da cirurgia bariátrica na medicina atual como recurso importante para a perda de peso em pacientes obesos com IMC maior que 35 com comorbidades ou acima de 40.

A cirurgia é o tratamento para obesidade mais eficaz a longo prazo para os casos graves e pode resultar em remissão de comorbidades relacionadas à obesidade e redução em longo prazo da mortalidade por todas as causas.

Atualmente, na mão de cirurgiões experientes, o risco de mortalidade pós-operatória imediata é baixa. Dito isso, ainda assim não podemos deixar de fazer alguns comentários sobre o outro lado da história, onde nem tudo são flores.

Tenho visto e me preocupa muito constatar, ao atender os pacientes, que algumas questões têm sido pouco comentadas. Complicações potencialmente graves que podem ocorrer no pós-operatório tardio precisam ser amplamente explicitadas para os candidatos à cirurgia. Discutir os prós e contras da cirurgia é ponto-chave que precisa ser feito de maneira individualizada. Isso é parte da tomada de decisão compartilhada e às vezes é um processo longo e demorado para amadurecimento da escolha por parte do paciente. Vejo pacientes inebriados com a possibilidade de emagrecimento rápido produzido pela cirurgia e então muitas etapas estão sendo “queimadas” antes da hora para liberação dos pacientes para os procedimentos bariátricos.

Apesar dos benefícios, nem todos os pacientes descrevem que repetiriam a decisão de se submeter à cirurgia bariátrica com base em sua experiência pós-operatória (dissonância pós-decisão). Apesar de algumas melhorias bem documentadas nas comorbidades relacionadas à obesidade, na qualidade de vida relacionada à saúde, satisfação corporal, e bem-estar psicológico, mesmo assim pode ocorrer recuperação de peso por causa da natureza crônica da obesidade, o que leva alguns indivíduos à reflexão se os meios justificaram os fins.

Apesar da educação multidisciplinar de rotina fornecida antes da cirurgia, os pacientes, após o procedimento bariátrico, podem ter dificuldades para aplicar esse conhecimento ao longo da vida. Com toda a novidade no pós-operatório inicial (fase de “lua de mel”), quando a perda de peso drástica termina, o paciente atinge um platô de peso e é obrigado a ter um papel mais ativo na autogestão do peso e da fome, os pacientes relatam que se sentem despreparados para recuperar parte do peso perdido e a implementar as mudanças no estilo de vida necessárias para manter os benefícios duradouros.

Existem limitações por não termos fatores pré-operatórios preditivos de quem terá sucesso ou fracasso na perda de peso. Isso contribui para a ocorrência da dissonância pós-decisão, além das demandas necessárias para manter seu novo estilo de vida e a grande expectativa criada no pré-operatório. Pode ocorrer uma dissonância pós-decisão que retrata incongruência entre a expectativa e os resultados reais. A dissonância é uma forma de arrependimento, medo de não ter feito a melhor escolha.

De um modo geral, as pessoas querem se sentir confiantes com sua decisão e trabalham para justificar as escolhas ou racionalizar rejeições. Essa dissonância de decisão poderia ser mitigada com tomada de decisão compartilhada, que tenta assegurar que haja uma concordância entre as metas do paciente e as metas e resultados objetivos e realísticos projetados e atingidos pela cirurgia. Para otimizar os resultados pós-operatórios, é necessário uma melhor compreensão dos fatores que atenuam a satisfação do paciente.

Estudos têm mostrado que, entre os fatores que impulsionam a ocorrência da dissonância pós-decisão, está a percepção pelo paciente de ter tido uma preparação pré-operatória inadequada para certos resultados pós-operatórios, além da recuperação de peso pós-operatório, depressão, insatisfação com a imagem corporal e o fracasso de atingir a perda de peso imaginada. Apesar dos benefícios e durabilidade da peso perda com a cirurgia, um subconjunto de pacientes não repetiriam a decisão de se submeter à cirurgia com base na experiência pós-operatória. 

Optei por comentar hoje alguns aspectos que percebo que precisariam ser mais bem divulgados entre os candidatos à cirurgia. Entre estes, está um assunto delicado e que é sempre um tabu: as complicações pós cirurgia bariátrica relacionados a transtornos psiquiátricos.

Entre os procedimentos cirúrgicos mais realizados está o bypass gástrico em Y-de-Roux (BGYR), que leva a uma melhor perda de peso a longo prazo. No entanto, BGYR altera a farmacocinética do álcool aumentando o risco de sintomas de transtorno de uso de álcool, aumenta o risco de uso de drogas ilícitas e de morte por suicídio. Mais recentemente a gastrectomia vertical (GV) aumentou bastante e tem substituido em muitos casos o procedimento de BGYR. Nos EUA, por exemplo, tem se tornado o procedimento bariátrico mais comum desde 2013, em parte devido ao seu perfil de risco percebido como mais baixo. Contudo, novas evidências têm mostrado que GV também poderia alterar a farmacocinética do álcool.

A literatura sobre a mortalidade pós operatória relacionada a abuso de drogas e álcool ainda é escassa mas preocupante. Em um estudo que comparou os resultados de mortalidade por causa específica entre pacientes submetidos a BGYR com um grupo controle com obesidade severa não operados, descobriu-se que a mortalidade devido a causas externas, como mortes por overdose, quedas, acidentes com veículos motorizados, suicídios e homicídios, foi 58% maior entre pacientes pós cirurgia.

Em um estudo publicado em 2019 em periódico de referência na área da obesidade, foram divulgados dados de 7 anos do acompanhamento de um grande estudo multicêntrico prospectivo de adultos submetidos à cirurgia bariátrica chamado “Avaliação Longitudinal de Cirurgia Bariátrica” (LABS-2). Este estudo descreveu os óbitos relacionados ao uso de drogas e álcool comparados com as taxas de mortalidade anual da população geral dos EUA ajustadas por idade, sexo, raça. Os resultados indicaram que a taxa de mortalidade relacionada a drogas e álcool foi significativamente mais alta, impulsionada por mortes por overdose relacionadas com drogas e álcool do que seria esperado em 7 anos de acompanhamento.

Essa descoberta foi maior entre as mulheres submetidas ao BGYR. Vale destacar que os pacientes que fizeram parte do estudo tinham menor prevalência de uso de álcool ou de drogas ilícitas no ano anterior à cirurgia quando comparados com a população geral dos EUA e também tinham taxas mais baixas ou semelhantes de uso indevido de substâncias comparados com bases populacionais de indivíduos com obesidade ou obesidade severa. No entanto, os sintomas de abuso de drogas ilícitas aumentaran nos 7 anos após o BGYR. Pesquisas futuras com o procedimento GV precisam também examinar se os resultados serão semelhantes com essa cirurgia.

Um outro problema entre os obesos submetidos a procedimentos de cirurgia bariátrica é ocorrência de perda de peso inferior às expectativas criadas e a recidiva com ganho de peso tardiamente. Faltam estudos de mudanças de peso a longo prazo após o BGYR, mas tem sido relatada a recuperação de peso significativo de mais de 25% da perda de peso total após a cirurgia.

No LABS-2, em torno de 23% dos pacientes submetidos à cirurgia de bypass gástrico atingiram um platô de perda de peso nos primeiros 6 meses após a cirurgia e cerca de 2% dos pacientes apresentaram recuperação de 50% do peso em 3 anos.

Estimativas da proporção de pacientes que têm recuperação de peso significativa variaram de 17% a 30% após 2 anos de BGYR, com 59% com mais de 20% de recuperação da perda de peso em pelo menos 1 ano da BGYR, até descrição de 79% em estudos com autorrelato.

Essas estimativas dependem da definição do que se descreve como recuperação de peso "significativo" e da duração do estudo. Em estudo de 2019 da Universidade de Boston nos EUA foram avaliados dados de 11 anos de experiência após BGYR em um centro médico multiétnico. Foi notada maior recuperação de peso entre os afro-americanos e hispano-americanos e também foi detectado que os pacientes com DM2 apresentaram maior risco de recuperação de peso em comparação com aqueles sem DM2. Visitas de acompanhamento mais frequentes, educação, e intervenções comportamentais deveriam ser garantidas após BGYR segundo os autores do estudo.

A cirurgia bariátrica poderia também liberar compostos tóxicos da gordura para a corrente sanguínea. Essa liberação e redistribuição de poluentes persistentes orgânicos (POPs) para outros órgãos ricos em lipídios, como cérebro, rins e fígado durante a cirurgia bariátrica, necessita ser investigada de forma mais aprofundada.

Isso foi publicado em estudo preliminar com uma amostra pequena no periódico Obesity. O fato de essa cirurgia ser cada vez mais popular poderia fazer com que esses compostos fossem liberados na corrente sanguínea e realmente desafia a entender as possíveis consequências potenciais para a saúde. Os pesquisadores observaram que estudos com populações maiores precisam ser feitos para verificar os resultados desse estudo preliminar de amostragem pequena. Outras pesquisas precisam determinar se de fato há algum efeito biológico, especialmente em órgãos sensíveis e ricos em gordura, das doses tóxicas envolvidas.

Há ainda pouca informação na literatura que relaciona os níveis sanguíneos desses compostos e efeitos nos tecidos e seria ótimo e importante determinar se isso é ou não é um problema a mais a ser considerado a médio e longo prazo. Se ficar demonstrado ser um problema real, de alguma forma, avanços nas pesquisas precisarão encontrar maneiras de reter esses compostos tóxicos à medida que são liberados no sangue. 

Mesmo considerando que a perda de peso é certamente o principal objetivo da cirurgia bariátrica, os pacientes poderiam definir melhor o que seria sucesso, com base em metas objetivas, e o que eles pretendem alcançar no que se refere à qualidade da vida. Apesar da perda de peso inquestionável e melhorias nas comorbidades médicas, os pacientes dissonantes continuam a sentir insatisfação com a imagem corporal e depressão, sugerindo que precisariam de acompanhamento psicoterápico pós-operatório de forma contínua de longo prazo. 

Após anos vendo pacientes em preparação para cirurgia bariátrica e depois no pós-operatório tardio, tenho visto casos muito bem-sucedidos e que foram muito bem-preparados antes e mantido acompanhamento periódico após procedimento. Mas, por outro lado, me assusta, nos últimos anos, uma legião de pacientes pulando etapas, ansiosos por fazer a cirurgia e deixando para trás a real preparação, que é lenta e demorada.

Pacientes chegam ao consultório pela primeira vez querendo apenas um laudo burocrático para serem liberados pelo plano de saúde. Não querem ouvir sobre aspectos indesejáveis da cirurgia mas que são indispensáveis para a tomada de decisão. Não criaram nenhum vínculo médico-paciente prévio e depois da cirurgia ficam perdidos e sem controle no pós operatório e quando retornam estão cheios de novos problemas a serem abordados. Muitos dos pacientes bariátricos não tiveram um médico assistente nem antes nem depois da cirurgia e como escrevi em coluna prévia têm a perda da continuidade do acompanhamento médico. Cresce ainda nos consultórios endocrinológicos o número de pacientes que, anos depois de terem feitos procedimentos bariátricos, vêm demandando novos tratamentos após terem recuperado peso. 

Nos estudos que avaliam os pacientes dissonantes pós-cirurgia endossa-se que um dos fatores principais é a expectativa de perda de peso fracassada, indicando que a educação com a equipe multidisciplinar tem um papel fundamental na preparação do paciente pré-operatório para resultados pós-operatórios esperados em comparação com as expectativas do paciente dos resultados desejados.

Embora o modesto ganho de peso seja um ocorrência natural após cirurgia bariátrica, o compromisso contínuo necessário para manejar a perda de peso é feito de forma atrasada pelos pacientes que se sentiram despreparados e decepcionados com seu resultado cirúrgico.

Educação pré-operatória que abertamente discuta os desafios e obstáculos comuns no pós-operatório e enfatizando que o objetivo não é simplesmente perder peso, mas aprender como manter a perda de peso, pode ajudar a promover um controle interno e moderar as expectativas e satisfação do paciente com a cirurgia. Apoio, educação e acompanhamento pré e pós-operatório deveriam ser considerados uma parte padrão do atendimento, e não apenas conforme a necessidade, porque eles parecem se essenciais na promoção de resultados cirúrgicos bem-sucedidos além do fornecimento de suporte de saúde mental específico para pacientes bariátricos.

E, finalmente, não basta apenas calcular o IMC e constatar que o paciente está obeso para se indicar a cirurgia, para isso não precisaria nem de avaliação médica. Uma consulta endocrinológica não é uma simples demanda burocrática para conseguir um laudo de liberação para o plano de saúde, mas a construção da necessária forte relação médico-paciente para se pavimentar um caminho de acompanhamento e suporte que pode chegar até a necessidade de encaminhar para a cirurgia.

Tem dúvidas ou sugestões? Mande email para arnaldoschainberg@terra.com.br