Entendendo a origem e trajetória de muitos medicamentos alopáticos

Temos muitos exemplos de medicamentos tradicionais, com grande importância clínica, que foram baseados em algum produto natural que parecia ter propriedades farmacológicas

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No consultório conversando e interagindo há anos com os pacientes, percebo que existe um grande apelo em muitas pessoas para o uso de medicamentos chamados e rotulados como “naturais ou fitoterápicos”, eles exercem um fascínio e o desejo e destemor em usá-los sem levar em conta a comprovação científica, eficiência e segurança.

No senso comum, a percepção por parte dos pacientes é de que se um medicamento for de “origem natural ou fitoterápico”, eles seriam mais seguros e menos tóxicos que os medicamentos alopáticos tradicionais usados na medicina atual. Esses medicamentos ganham um salvo conduto para serem usados de forma disseminada e indiscriminada.

Noto ainda que frequentemente os pacientes nem citam nas consultas que estão usando essas substâncias, mesmo quando indagados em todos os atendimentos sobre quais os medicamentos estão ingerindo, tal é a confiança cega de que estas são substancias inocentes e que não causam mal e de forma inconsciente entendem que não precisam informar que estão tomando.

Sabendo então que vários venenos estão presentes nas plantas ou outros produtos de origem natural, vale aqui lembrar de imediato do famoso enunciado do renomado médico do século XV, conhecido como Paracelso, “Dosis sola facit venenum”, ou seja, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

Sendo assim, não importa a origem de uma determinada substância química com propriedades medicinais, em doses exageradas ela pode causar efeitos colaterais leves ou potencialmente graves e até matar. E ainda que em doses insuficientes, um alegado “medicamento natural”, mesmo não sendo venenoso e não matando, também não cura, ainda que possa ter alguma propriedade terapêutica.

Convém dizer que temos muitos exemplos de medicamentos já tradicionais na medicina moderna hoje com grande importância clínica e que foram originalmente baseados na percepção inicial de algum produto natural que parecia possuir alguma propriedade farmacológica. 

Mas, para chegar a se tornar um medicamento, essas possíveis substâncias vindas de “origem natural” são extensivamente estudadas até se conseguir isolar e definir entre as dezenas de substâncias químicas contidas ali, quais seriam aquelas que possuem a molécula exata que produz um ação específica farmacológica.
 
Diante dessa informação uma determinada molécula passa então por um longo processo de estudos em várias fases até chegar nos grandes ensaios clínicos que vão ou não validar a ação para uso na prática corriqueira na medicina e esses mesmos estudos ajudam também na definição das doses efetivas e as doses potencialmente tóxicas.

Na minha área da endocrinologia temos alguns exemplos que iremos comentar brevemente. Os avanços médicos podem vir dos lugares mais estranhos. No deserto no Arizona e no Novo México, que é um lugar hostil, existe um lagarto Heloderma suspeitare que foi apelidado de o “monstro de Gila”. Ele é um lagarto peçonhento da família dos helodermatídeos, com até 60 cm de comprimento, e que é um dos três lagartos venenosos no mundo, os outros dois são o lagarto de contas (Heloderma horridum) e o dragão de Komodo (Varanus komodoensis).

Por nossas bandas de cá no Brasil, não fosse por esses três lagartos possuírem veneno, neste nosso imenso país rural eles passariam fácil pelo povo da roça como se fosse o nosso velho e conhecido “calango”, só que um pouco maior, um “calangão”. Ao contrário das cobras, o monstro de Gila inocula a sua peçonha com os dentes da mandíbula, dois grandes incisivos muito afiados. Não são capazes de dar mordidas secas e, depois que mordem, inoculam veneno. Os efeitos são imediatos e bastantes dolorosos, e são totalmente fatais para algumas espécies. Um monstro de Gila morde para se defender e afastar possíveis invasores; só ataca animais maiores do que ele quando se sente ameaçado ou quando está ferido. 

Os cientistas que estudavam o veneno de monstros de Gila inicialmente queriam entender como as proteínas da saliva criavam uma dor tão excruciante, mas uma revelação casual de que uma dessas enzimas poderiam ajudar a tratar o diabetes mudou tudo.

A descoberta foi feita há quase 30 anos, quando se soube que os monstros de Gila na verdade não usavam o veneno para matar suas presas, em grande parte pequenos roedores e seus ovos. Essa história começou com um cientista curioso, o endocrinologista John Eng, do Bronx VA Hospital. O cientista Eng estava trabalhando para encontrar novos hormônios em diferentes espécies animais. Como endocrinologista, Eng estava especialmente interessado em hormônios que poderiam ser úteis no tratamento do diabetes. Depois de ler um artigo que alguns venenos de cobras e lagartos, incluindo o monstro de Gila, poderiam desencadear inflamação no pâncreas, Eng decidiu investigar mais de perto o veneno de monstros de Gila. 

Em 1992, Eng identificou as duas proteínas que ele havia isolado do veneno. Um deles, foi chamado de exendina-4, que era surpreendentemente semelhante a uma proteína humana liberada pelo intestino chamada GLP-1 (peptídeo 1 semelhante ao glucagon). O GLP-1 por sua vez é um peptídeo muito parecido com o hormônio glucagon produzido pelo pâncreas humano. Enquanto a insulina secretada pelo pâncreas após as refeições diz às células para absorver e usar a glicose da corrente sanguínea após a absorção dos alimentos do trato digestivo, diminuindo o açúcar no sangue. Já o glucagon por outro lado, tem o efeito oposto, dizendo ao corpo para liberar glicose principalmente dos estoques no fígado e músculo, para ajudar a aumentar e ter níveis de açúcar adequados no sangue como fonte de energia nos períodos em jejum.

O GLP-1 é um potente hormônio anti-hiperglicêmico, induzindo estimulação da secreção de insulina dependente de glicose, enquanto suprime a secreção de glucagon. A secreção de GLP-1 ocorre nas células enteroendócrinas do íleo e depende da presença de nutrientes no interior do intestino delgado.  Embora a insulina seja mais afetada no diabetes, o glucagon também é mal regulado e isso o tornou a exendina-4 um alvo atraente para a terapia do diabetes.

Os cientistas descobriram que a exendina-4 era 52% idêntica ao GLP-1 humano. Além disso, uma vez que nosso corpo degrada muito rapidamente o GLP-1 humano para ser eficaz, um paciente diabético teria que injetá-lo a cada hora, enquanto se descobriu que a exendina-4 era muito mais estável e só precisava ser injetado diariamente. Eng então registrou uma patente do seu trabalho e, após vários anos de pesquisa, encontrou uma pequena startup de biotecnologia para iniciar o trabalho de transformação desse conhecimento em um medicamento para diabetes. 

Somente em abril de 2005, o Food and Drug Administrtion (FDA) norte-americano aprovou o exenatide, uma forma sintética da exendina-4, para uso no tratamento de diabetes. Essa foi a primeira medicação de uma nova classe importante de medicamentos para uso no diabetes mellitus chamados de agonistas análogos do receptor GLP-1 e, desde então nos últimos anos, foram criados vários outros medicamentos dessa mesma família (albiglutida, dulaglutida, liraglutida, lixisenatida, semaglutida). Os fármacos dessa classe de medicamentos ajudam a melhorar a secreção de insulina pelo pâncreas, reduzem os níveis de glucagon ajudando a reduzir os níveis de açúcar no sangue, retardam o esvaziamento do estômago, reduzem a produção hepática de glicose e tem ação sobre os mecanismos de apetite e saciedade no sistema nervoso central nível e sobre a adiposidade, além de exercer ações diretas e indiretas sobre o sistema cardiovascular.

Vejam então que a trajetória, desde a extração e isolamento de uma substância exendina-4 encontrada na saliva de um lagarto até se chegar no composto sintético exenatida e depois nas outras drogas dessa nova classe de medicamentos estar disponível para os pacientes, foi um longo caminho percorrido pela ciência. 


As proteínas dos monstros Gila são apenas um dos muitos exemplos de medicamentos derivados de animais dos quais muitos pacientes tem usado há anos com eficiência e segurança.

Outra história bem conhecida de venenos de animais se tornando medicamentos também é um orgulho da ciência brasileira. O farmacologista brasileiro Sério Henrique Ferreira, ao analisar o veneno da cobra jararaca, descobriu um princípio ativo capaz de baixar a pressão arterial.  A trajetória iniciou nos anos 1940 quando um médico carioca, Maurício Rocha e Silva, notou que indivíduos picados por jararacas sofriam uma queda na pressão e passou a investigar qual substância tinha esse poder.

Nos anos 1960 o farmacologista Sérgio Henrique Ferreira, da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, conseguiu isolar o princípio ativo do veneno da cobra que seria responsável por diminuir a pressão. Era a descoberta dos Inibidores da Enzima de Conversão da Angiotensina (IECA).

A partir deste conhecimento nos anos 1970, bioquímicos da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, e uma gigante da indústria farmacêutica conseguiram sintetizar uma molécula que imitava o efeito do veneno da jararaca nos vasos sanguíneos.

Temos até hoje essa importante classe de medicamentos segura, eficiente e barata, que ainda é muito importante e está amplamente disponível para ajudar os pacientes no controle da hipertensão arterial. E existe uma longa lista de opções de substâncias dessa classe como captopril, enalapril, lisinopril, ramipril. Há outros inúmeros peptídeos encontrados no veneno da jararaca, como os potenciadores de bradicinina (BPPs), sendo estudados e que poderão ser uma nova classe de medicamentos no tratamento da hipertensão.

Extração de venenos de aranhas, escorpiões e outros animais peçonhentos e a tentativa de purificar as toxinas e produzir peptídeos sintéticos, objetivando propor novos medicamentos, têm sido muito frequentes e temos aqui no nosso meio, na UFMG, Santa Casa e Funed, muitos pesquisadores nessa área.

A metformina é outro bom exemplo, sendo um fármaco da classe das biguanidas e um dos medicamentos mais prescritos para diabetes mellitus tipo 2. É uma das medicações mais usadas por ser segura e eficiente e é interessante saber sua origem.

O desenvolvimento da classe das biguanidas foi derivado de estudos dos efeitos da planta Galega officinalis, popularmente conhecida como arruda caprária ou galega, que já era amplamente usada na Europa desde a Idade Média como um tratamento popular para a poliúria (excesso de urina) de pacientes que hoje conhecemos como tendo diabetes. Mais tarde, descobriu-se o composto químico responsável pelo efeito hipoglicemiante dessa planta e foi denominado galegina, um derivado da guanidina. A guanidina por si só é tóxica demais para ser usada como medicamento, mas o desenvolvimento de agentes derivados persistiu, e em 1957 foi publicada a primeira descrição científica da metformina. O iníco do uso clínico da metformina se deu pela primeira vez na França, em 1979, mas, nos Estados Unidos, levou um pouco mais de tempo para ser aprovada pelo FDA apenas no final de 1994, devido a preocupações de longa data a respeito da segurança das outras biguanidas, que não se comprovaram para a metformina.

O ácido acetilsalicílico, também conhecido como Aspirina ou simplesmente AAS, é um dos medicamentos mais utilizados em todo o mundo e a sua história teve inicio há mais de 3.500 anos, quando se verificou que o pó amargo extraído da casca e das folhas do salgueiro era capaz de aliviar as dores e diminuir a inflamação.

Somente centenas de anos mais tarde é que se de descobriu que estes efeitos se deviam a uma substância presente em diversas plantas, inclusive na casca e folhas do salgueiro, à qual deram o nome de salicilina, devido ao nome em latim para o salgueiro branco (Salix alba), também conhecido como chorão.

Foi obtido da salicilina então o ácido salicílico, que representou um sucesso no combate às dores e à inflamação, mas que tinha um sabor bastante amargo e causava dores de estômago intensas. A descoberta do AAS (ácido acetil salicílico) deu-se em 1897, quando o químico alemão Felix Hoffmann procurava uma alternativa ao ácido salicílico que fosse melhor tolerada pelos doentes, pois o seu pai sofria de “reumatismo crónico” que combatia diariamente com ácido salicílico, o que lhe causava sérios efeitos colaterais.

Assim surgiu o AAS, eficaz no combate às dores, à inflamação e à febre, mas com um sabor menos amargo e melhor tolerado pelo estômago. Além de fazer história por ser o primeiro composto sintetizado em laboratório, o AAS foi o primeiro medicamento a ser vendido em comprimidos. Em torno de dois anos depois da sua descoberta, o AAS foi lançado no mercado alemão sob a marca registrada de Aspirina. 

Hoje o AAS é também uma importante medicação de uso por várias especialidades médicas, e na cardiologia e neurologia é amplamente usado como importante droga na redução do risco de recidiva de doenças cardio e cerebrovasculares. Para esse fim não usamos o extrato da casca ou folha de salgueiro mas a medicação sintética. Assim foi possivel ter muita mais precisão no conhecimento das doses exatas da substância ativa em miligramas com ação terapêutica específica para cada patologia. A prescrição é baseada nos estudos científicos que validaram e apontaram a dose onde foi comprovado o benefício e que também forneceu as dosagens que se mostraram perigosas com aumento do risco de efeitos colaterais potencialmente graves levando a um risco maior que o benefício. 

Usando exemplos assim de como e de onde surgem muitas das medicações sintéticas atuais que nós, médicos usamos atualmente. Sendo assim, fica mais fácil entender que, às vezes, quando um paciente opta por usar um extrato ou substância de origem natural, não sabemos exatamente quantas de outras substâncias desnecessárias ou contaminantes virão juntas, pondo em risco a eficiência e segurança do paciente. E mais, não sabemos se o que o paciente está usando naquele produto dito natural tem de fato a quantidade necessária da potencial substância ativa com a atividade farmacológica e nas concentrações suficientes necessárias para produzir o efeito específico em determinada doença. 
 
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