William Osler e a arte da probabilidade

Osler é frequentemente descrito como o 'Pai da Medicina Moderna' e um dos "maiores diagnosticadores que já empunhou um estetoscópio"

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Sir William Osler, em momento 'reflexivo' (foto: Wikimedia Commons)

Sir William Osler (1849-1919) foi um notável médico canadense e um dos quatro professores fundadores do prestigiado Hospital Johns Hopkins nos EUA. Juntamente com o patologista e microbiologista Willian Welch, o cirurgião William S. Halsted e o ginecologista Howard A Kelly, Osler integrou o chamado “os quatro de Baltimore” (todos com menos de 40 anos) que, na realidade, criaram tanto a Faculdade de Medicina quanto o hospital.

Osler também criou o primeiro programa de residência para treinamento especializado de médicos e foi o primeiro a trazer estudantes de medicina da sala de aula para treinamento clínico à beira do leito.

Ele é frequentemente descrito como o “Pai da Medicina Moderna” e um dos "maiores diagnosticadores que já empunhou um estetoscópio".

Osler foi uma pessoa de muitos interesses: além de médico, foi bibliófilo, historiador, autor e conhecido brincalhão. Entre uma de suas realizações está a fundação da History of Medicine Society (seção anterior) e da Royal Society of Medicine, em Londres.

Curioso relembrar, nesse nosso fatídico ano de 2020 e atual trágico cenário de pandemia de COVID-19, que ele morreu aos 70 anos, em 29 de dezembro de 1919, em Oxford, durante a epidemia de gripe espanhola. Especula-se que faleceu provavelmente decorrente de complicações de bronquiectasia não diagnosticada (uma doença em que há aumento permanente de partes das vias aéreas do pulmão e os pacientes desenvolvem infecções pulmonares de repetição).  

Uma de suas biografias foi escrita em 1925 por nada mais nada menos que um outro conceituado médico da sua época, Harvey Cushing (o mesmo que descreveu uma doença endocrinológica de excesso de produção de cortisol denominada de Síndrome de Cushing). Cushing ganhou o Prêmio Pulitzer de 1926 por esse trabalho. Por sua importância na medicina William Osler foi alçado ao Canadian Medical Hall of Fame em 1994. 

Os grandes vultos da Medicina são em geral, lembrados por suas descobertas científicas mas William Osler ficou marcado pela vocação humanística e generosidade. Para muitos autores, Osler é considerado o maior clínico de sua época e celebrado também por ter criado uma escola de pensamentos e atitudes na medicina (“Oslerian Tradition”).

Além de brilhante e muito reconhecido até os dias atuais. ele também ficou célebre por seus aforismos. Sua visão da ciência era contundente: “Na ciência o crédito vai para quem convence o mundo e não para quem primeiramente teve a idéia”, ou ainda “Se seu assistente fizer uma observação importante, deixe-o publicá-la. Através de seus alunos e discípulos virá sua maior honra”.  Outro aforismo muito citado e válido até os dias hoje á a célebre “A medicina é uma ciência da incerteza e uma arte da probabilidade”.

Os humanos, por natureza, se sentem desconfortáveis com a incerteza. Para os médicos, esse desconforto geralmente leva a cuidados de baixo valor por meio de uma cascata de diagnósticos, resultando em falsos positivos e achados incidentais. Abordar eficazmente a incerteza com os pacientes e suas famílias requer a destreza de um clínico experiente e é essencial para fornecer atendimento de alto valor centrado no paciente. Além disso, gerenciar a incerteza pode fortalecer a relação terapêutica entre os pacientes e seus médicos assistentes, dependendo de como essa incerteza é comunicada. Uma boa abordagem para gerenciar a incerteza clínica seriam usar as estratégias que priorizam continuidade do cuidado, comunicação e confiança.

A continuidade do atendimento é crucial para estabelecer confiança nos pacientes em muitas maneiras, mas talvez em nenhum lugar mais importante do que lidar com incerteza. Embora ouvir vários pontos de vista seja útil às vezes, manter a consistência nas pessoas que discutem com o paciente permite um relacionamento que ajuda tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde a lidar com a incerteza e estabelecer a confiança de que o clínico realmente se importa.

Nesta era de ritmo acelerado da medicina, a continuidade é muitas vezes difícil de alcançar, mas isso não diminui sua importância. A comunicação eficaz é importante para orientar a tomada de decisão. Reconhecer a presença de incerteza usando frases como "Não sei" são essenciais para o processo de garantir que os pacientes se sintam confiantes nos cuidados de seu médico. Os médicos devem fornecer alguma indicação ao paciente sobre o que acontecerá se sua condição melhorar, piorar ou mudar. Descobrimos que a simples passagem do tempo é, muitas vezes, o melhor teste se houver continuidade do atendimento e boa comunicação. 

A confiança é definida como a aceitação de que outra pessoa irá agir em seu interesse no futuro. É especialmente importante quando o administrador é vulnerável e as apostas são altas. Por exemplo, a confiança aumenta a eficácia da farmacoterapia no tratamento da dor ou angústia. A confiança também é suspeita de desempenhar um papel fundamental nas variações de resultados de muitas outras terapias convencionais. Os médicos podem preocupar-se com o fato de que transmitir incertezas prejudicará a confiança. Muito antes pelo contrário, em muitos casos, os pacientes são mais propensos a confiar em um clínico empático e honesto do que aquele que ainda é altamente competente mas cruel. Como dizia Osler, “Confessar ignorância é frequentemente mais sábio do que rodeios com um diagnóstico hipotético”.

Assim as declarações que transmitem incerteza como como "Eu não sei o que está acontecendo com você agora ..." deveriam ser seguidas por "... mas ficarei com você até descobrirmos juntos ou você fica melhor.” Essas declarações provavelmente servem para fortalecer confiança, ajudando os pacientes a se sentirem seguros e que o médico está agindo em seus interesses. Mas acreditamos que os atributos de continuidade, comunicação empática e confiança nos ajudam a gerenciar e comunicar a incerteza, e, portanto, são essenciais para fornecer atendimento de alto valor centrado no paciente.

Uma vez dito isto, tem me preocupado uma situação cada vez mais comum nos consultórios médicos. Os pacientes muitas vezes acabam fazendo múltiplas consultas com médicos diferentes da mesma especialidade em um curto período de tempo, sem chances de se criar o forte vínculo médico-paciente, que é o pilar básico no exercício da medicina.

Nesses novos tempos, esse elo de confiança e respeito que vai sendo criado com uma continuidade de atendimento pelo mesmo médico é necessário e indispensável para o bom atendimento.

Cada vez mais se faz necessária a compreensão do doente e não apenas da doença. Algumas vezes em algumas patologias mais complexas e polimorfas de certos  casos clínicos de determinados pacientes, no primeiro momento não está óbvio e evidente o diagnóstico no atendimento inicial. Apenas evolutivamente teremos um cenário mais claro desses casos para chegarmos a um diagnóstico e conseguir a melhor opção terapêutica. A continuidade do cuidado pelo mesmo médico nesse cenário então é essencial.

Infelizmente, nos últimos anos, percebo uma mudança na postura por parte de alguns pacientes. As relações estão mais fluidas e as pessoas estão abandonando a necessidade da criação desse forte vínculo médico-paciente.

Esses pacientes marcam uma primeira consulta com um médico e, após a avaliação, quando necessário, pode ser preciso solicitar exames complementares para esclarecimento e ajudar na confirmação ou para descartar a hipótese clínica. Com os exames em mãos, o paciente leva os resultados dos exames para um outro profissional. A situação piora ainda mais, porque após ir ao segundo médico da mesma especialidade, este inicia o tratamento para o problema médico desse paciente, mas ao fazer o seguimento evolutivo da terapia prescrita tempos depois, ele agora volta no terceiro médico da mesma especialidade. 

A falta de continuidade e do forte vínculo na relação médico paciente vai trazer ao final insatisfação para o paciente e falta de entusiasmo e estímulo com aquele paciente por parte do médico, criando um círculo vicioso de insatisfações mútuas. O cenário descrito até aqui é diferente de situações de casos complexos, quando há mais de uma opção terapêutica e aí então, naturalmente incentivamos que o paciente busque sim uma segunda opinião - mas não é disso a que estou me referindo.

Tenho pacientes que acompanho há mais de 30 anos, numa relação em que eu e o paciente fomos envelhecendo juntos. Nessa longa jornada com esses pacientes, vamos acompanhando suas conquistas, alegrias, tristezas, angústias com família, trabalho e relações interpessoais. Estamos ali juntos desses pacientes no cuidados de suas doenças crônicas, dando suporte a eles, seja nos momentos difíceis de piora ou nos períodos de melhora do seu quadro clínico.

Estamos ali também para identificar o surgimento de novas patologias e, com frequência, somos consultados apenas para o paciente ter com quem falar ou desabafar atuando como apoio e ombro amigo nos momentos de dificuldade na vida desse paciente.

É uma grande alegria, satisfação e reconhecimento de seu trabalho perceber que ao longo dessa longa jornada como médico de consultório ver chegarem para nosso atendimento os familiares mais próximos e estimados desses pacientes (filhos, marido, esposa, sobrinhos, netos), vizinhos, amigos e assim por diante, traduzindo de forma concreta essa relação construída  de confiança e respeito criada pela continuidade do atendimento. 

Para minha triste e surpreendente constatação, mesmo ainda não me considerando velho mesmo com quase 33 anos de formado, já ter de me incluir no rótulo de médicos da “velha guarda”. Vejo uma grande transformação nessa relação médico-paciente. Não sou saudosista de achar que apenas as coisas do passado é que eram boas. Sou muito aberto às transformações e avanços que têm ajudado e muito na medicina atual, mas algumas coisas têm modificado com muita rapidez algumas às vezes para pior. 

É um choque de realidade nesses novos tempos para qualquer médico da “velha guarda” ter de escutar no meio da consulta por parte do paciente a pergunta “qual é mesmo seu nome doutor?”, sendo que, nos últimos meses, você é o terceiro (ou até mais) médico da sua especialidade que o paciente consultou e que essa mesma pessoa, quando indagada se sabe o nome dos outros médicos que o atenderam antes de você, também não sabe responder.

Foi por conta de me defrontar e precisar lidar com mais tranquilidade e menos angústia com essa nova realidade de transformações pelo qual o mundo, a vida em sociedade e, por consequência, a medicina vem passando me veio a ideia de escrever essas linhas.

No novo cenário que se desnudou de forma mais intensa agora na pandemia, em que excepcionalmente foi liberada e disseminada a realização de teleconsultas, ao que tudo indica, essa ferramenta e nova modalidade de atendimento virá para ficar mesmo após passar a COVID-19.

Fica nítido que nós, médicos mais antigos, teremos de nos adaptar. Não posso negar que me veio um momento saudosista da era romântica da medicina e acho que ainda está na mente da maioria dos meus colegas desde quando iniciaram seus estudos na faculdade, mas são novos tempos e vida que segue.

Finalizo essas reflexões com mais alguns ótimos aforismas do professor Sir William Osler. Agora que, publicamente, tive de me autorrotular médico da “velha guarda”, cada dia sinto com mais clareza o poder dos seus pensamentos. São frases lapidares como "A prática da medicina é arte baseada em ciência" ou essa outra, "Freqüentemente a ignorância pode ser atormentadora; é porém mais aceitável que a segurança que permanece sobre uma delgada camada de conhecimento".

Osler sintetizou em uma vida o que caracteriza a nossa profissão médica que exige de competência, de responsabilidade, de dignidade e de amparo. Como conclusão, o seu escolhido e conhecido epitáfio no idioma original, “I taught medical students in the wards” (eu ensinei medicina nas enfermarias). 
 
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