Diabetes mellitus tipo 2 pode ser reversível?

Conjunto de conhecimentos até então era de que o DM2 seria doença crônica, progressiva e irreversível. Uma crescente linha de pesquisas tem mudado esse paradigma

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Na coluna da semana passada, apresentei os resultados de um importante estudo de autores suecos do Instituto Karolinska e da Universidade de Uppsala, que revisaram a literatura em relação aos fatores de risco para diabetes mellitus tipo 2 (DM2),usando metodologia de “Randomização Mendeliana (RM), um desenho de estudo com um método para a obtenção de estimativas imparciais dos efeitos de uma provável variável causal sem a realização de um estudo clinico randomizado (ECR) tradicional.

Os autores encontraram evidências de associações causais entre 34 exposições (19 fatores de risco e 15 fatores de proteção) e DM2. E concluíram que diante dos resultados identificados neste tipo de estudo algumas estratégias de prevenção para DM2 deveriam ser considerados.

Uma vez que há um grande efeito de obesidade no DM2 e um aumento global carga da obesidade, uma ênfase no controle de peso via escolhas alimentares mais saudáveis e atividade física são urgentemente necessárias.

Simultaneamente, outras estratégias com foco em outros fatores de risco também merecem atenção, como melhorar o estado de saúde mental e qualidade do sono, melhora do nível de escolaridade e do peso ao nascimento além da defesa de ações antifumo em todo o mundo.

Além de identificar os fatores de risco para DM2 e com isto ajudar a implementar medidas de prevenção, existe atualmente um conceito sendo construído na literatura de uma possibilidade real de reversão (ou remissão) de DM2 em quem já tem a doença estabelecida e diagnosticada há algum tempo, o que até alguns anos atrás seria uma ideia inconcebível.

O conjunto de conhecimentos até então era de que o DM2 seria uma doença crônica e progressiva e irreversível com tendência a piora com os anos. Uma crescente linha de pesquisas tem mudado esse paradigma e cada dia mais é possível realmente pensar que um indivíduo já com diagnostico de DM2 possa de fato reverter sim a doença.

Ainda não falamos em “cura” mas em remissão do diabetes. Isso tem crescido desde que se começou a ver os resultados da cirurgia bariátrica para controle de peso e a detecção de obtenção de ótimos resultados nos pacientes diabéticos, mesmo naqueles não tão obesos. Isso gerou o conceito de ser uma cirurgia metabólica gerando efeitos além daquela vista apenas pela perda de peso.

Estudos concluídos na última década mostraram que o DM2 de curta duração seria caracterizado por excesso de depósito de gordura no fígado e no pâncreas, e que a redução desse excesso de gordura estaria associada com remissão durável da doença. Apesar disso com a ocorrência da recuperação de peso em pessoas que alcançavam a remissão, essa gordura nesses locais voltaria então a se acumular com a recorrência do diabetes.

Levando em conta esses dados sobre o mecanismo básico da doença, foi feito e publicado em 2018 um importante estudo, o “Diabetes Remission Control Trial” (DiRECT) que demonstrou a praticidade de alcançar a remissão do DM2 em um ambiente de cuidados primários no Reino Unido. No entanto, esses estudos iniciais de remissão foram feitos principalmente em populações brancas, e ensaios randomizados controlados em outros grupos étnicos ainda eram escassos.

Uma vez que estudos prévios aventavam que o grau de deposição de gordura no fígado e pâncreas seria normalmente inferior em pessoas de etnia negra africana, vinha sendo questionado se o DM2 em outros grupos étnicos compartilhariam a mesma patogênese e se responderiam à perda de peso da mesma forma.

Recentemente, foram publicados os resultados de um ensaio clínico randomizado avaliando a eficácia da dieta e exercícios como tratamento de DM2, que revelaram que quase dois terços dos pacientes alcançaram a remissão completa da doença após apenas 12 meses de intervenções no estilo de vida. Certamente não é uma novidade sugerir uma dieta saudável e aumentar exercícios e a perder o excesso de peso para ajudar uma pessoa a controlar o DM2. No entanto, inúmeras pesquisas nos últimos anos tem mostrado que muitos indivíduos já diagnosticados com a doença poderiam efetivamente reverter a condição sem a necessidade de medicação, usando apenas essas intervenções no estilo de vida.

Neste novo estudo (DIADEM-I) realizado em pacientes atendidos na atenção primária no Catar, com uma grande diversidade étnica da região de 13 países do Oriente Médio e do norte da África (que é uma região com alta prevalência de diabetes). Algumas das evidências mais fortes até o momento foram apresentadas, mostrando a eficácia da dieta e dos exercícios na reversão do DM2. O estudo avaliou 147 indivíduos jovens entre 18-50 anos (média de 42 anos), diagnóstico inicial com até 3 anos de DM2.

O estudo dividiu aleatoriamente os participantes entre um grupo controle recebendo tratamento padrão e um grupo de intervenção após uma dieta intensiva e um programa de exercícios. O programa de intervenção envolveu uma dieta hipocalórica inicial de 12 semanas conhecida como “Cambridge Weight Plan” contendo uma fórmula líquida de baixa energia substituindo as refeições (800-820 kcal/dia) contendo 57% de carboidratos, 14% de gordura, 26% de proteína e 3% de fibra. Todos os medicamentos para diabetes foram interrompidos no início do grupo de intervenção do estilo de vida intensivo e no grupo controle os pacientes receberam os cuidados médicos usuais para diabetes de acordo com as diretrizes clínicas e eles foram reavaliados a cada 3 meses.

Seguindo essa dieta inicial, os indivíduos passaram outras 12 semanas fazendo a transição para uma dieta geral saudável, embora ainda com um certo grau de controle calórico. O grupo de intervenção também foi incentivado a completar pelo menos 150 minutos de exercícios físicos por semana, juntamente com a recomendação de caminhar pelo menos 10.000 passos por dia.

Após 12 meses de acompanhamento, os resultados revelaram que os indivíduos no grupo de intervenção de estilo de vida perderam uma média de 12 kg, em comparação com uma média de 4 kg no grupo de tratamento padrão. O importante resultado final foi detectar remissão do DM2 definido como HbA1c menor que 6,5% com os pacientes sem receber qualquer terapia farmacológica para diabetes por pelo menos 3 meses. A remissão então ocorreu em 61% do grupo de intervenção em comparação com apenas 12% atingindo a reversão da doença no grupo de controle com o tratamento padrão. Um dos autores do estudo Shahrad Taheri, do Weill Cornell Medicine-Qatar entusiasmado com os resultados chegou a falar “Acho que é uma verdadeira virada de jogo para o controle do DM2”, e ainda completou dizendo. “Isso mostra que, se você perder peso precocemente no processo da doença, poderia realmente reverter a doença e, assim, evitar todos os outros problemas de saúde e reduções na qualidade de vida que vêm com isso.”

Os autores do DIADEM-I basearam seu estudo na metodologia utilizada no DiRECT, implementando intervenção dietética e de mudança de estilo de vida intensiva semelhante para tentar reverter o diabetes. O grau de perda de peso nos indivíduos que receberam a intervenção intensiva de estilo de vida neste estudo do Catar foi semelhante ao observado no estudo DiRECT.  O estudo DiRECT conduzido no Reino Unido publicado inicialmente em 2018 forneceu a primeira evidência de um ensaio randomizado de intervenção dietética e estilo de vida com remissão do DM2 como desfecho principal.

O estudo na época mostrou que remissão do DM2 com até 6 anos de duração não seria necessariamente uma doença permanente ao longo da vida. Foi visto que poderia ser um alvo prático de ser atingido e viável de ser implementado no nível de cuidados de atenção primária, onde são gerenciados habitualmente no mundo real a maioria dos pacientes fora de ambiente de ensaios clínicos. O DiRECT mostrou 46% de remissão completa do DM2 em 12 meses como resultado de uma intervenção estrita de controle de peso e com perda em média de 10 kg com dieta entre 825–853 kcal/dia comparado com 4% do grupo controle. Foi mostrado ainda que 68% dos pacientes do grupo intervenção também pararam de usar medicamentos anti-hipertensivos sem aumento da pressão arterial.

O estudo DiRECT tem previsão de ter acompanhamento dos pacientes para estabelecer como serão os resultados de longo prazo e irá continuar o seguimento por pelo menos 4 anos. Em 2019 os mesmos autores publicaram os dados evolutivos de 2 anos de seguimento e ainda encontrou remissões sustentadas em 36% no grupo intervenção comparado com 3% do grupo controle e persistência da remissão do DM2 estava associada à extensão da manutenção da perda de peso. Naqueles 24% dos pacientes que conseguiram manter pelo menos 10 kg de perda de peso, 64% deles alcançaram remissão DM2. Os autores concluíram em 2019, que até o momento o DiRECT continua confirmando que o o DM2 potencialmente pode ser reversível com a perda de peso e em muitos casos um período de até 2 anos de intervenção.

Diante do estudo DIADEM-I agora de 2020, Taheri e colaboradores alegaram que esse novo ensaio alcançou resultados ainda mais fortes do que o estudo britânico pois seus pacientes eram em média 10 anos mais jovem que o do Reino Unido e tinham diagnostico mais recente do DM2. Os autores também afirmaram que, embora as intervenções na dieta e nos exercícios sejam benéficas para todas as idades de DM2, quanto mais cedo forem implantadas mais eficazes elas poderiam ser. Afirmaram ainda que esperam que outros estudos como esses possam trazer uma grande mudança na abordagem clínica do DM2 no mundo todo combinando o rastreamento precoce com intervenções no estilo de vida para ajudar a livrar dessa condição imediatamente, em vez de colocar as pessoas tomando vários medicamentos pelo resto da vida.” 

Os participantes selecionados desses estudos foram recrutados para intervenções intensivas de perda de peso. Seriam necessárias evidências de intervenção de amostras populacionais representativas que fossem submetidas a intervenções menos intensivas que poderiam ser mais viáveis e potencialmente mais facilmente aplicáveis para a população em geral. No final de 2019 um estudo com análise usando dados coletados prospectivamente do ensaio ADDITION-Cambridge também do Reino Unido mostrou que remissão bioquímica de DM2 na ausência de intervenção farmacológica ou cirúrgica foi demonstrado ser alcançável.

Os autores mostraram que uma perda de peso de pouco mais de 10% nos primeiros anos após o diagnóstico foi fortemente associado com remissão do DM2 após 5 anos de seguimento. Neste estudo isso foi possível de ser alcançado sem intervenções intensivas no estilo de vida ou restrições extremas de calorias. Mas ainda serão necessários mais trabalhos replicando estes achados em populações étnica e socialmente mais diversas, além de incluir uma avaliação da relação do impacto da remissão com desfechos clínicos de longo prazo como a mortalidade.

Apesar então do entusiasmo dos autores do estudo do Catar e dos autores britânicos, ainda teremos uma longa jornada de avaliações futuras para confirmar a sustentação desses achados a médio e longo prazo. Já que tanto no estudo DiRECT com seus resultados de 2 anos até o momento, como no DIADEM-I com duração apenas de 1 ano de acompanhamento merecem seguimento por tempo maior para avaliar a durabilidade desses achados preliminares.

Ainda assim parecem ser promissores as informações geradas por esses novos estudos. Os dados que surgiram desses estudos vem pavimentando um novo universo de conhecimento e abriram uma perspectiva de mudança de paradigma, a de que o DM2 tem a potencialidade real de ser reversível e quanto mais precoce a intervenção melhor, mesmo após alguns anos do seu diagnóstico usando intervenções para controle do peso. Na semana que vem retomo nesse tema com enfoque nos estudos relacionados ao impacto da cirurgia bariátrica ou metabólica na remissão do diabetes.
 
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