Acompanhamento de saúde dedicado a indivíduos com disforia de gênero

Com a pandemia, indivíduos transgêneros deixaram de receber, desde o início de 2020, o atendimento e o acolhimento necessários

Crossdresser/Pixabay
(foto: Crossdresser/Pixabay)

Por trás da triste perda de milhões de vidas vítimas da COVID-19 e dos efeitos econômicos responsáveis por levar milhares de pessoas à pobreza extrema, a pandemia do coronavírus conflui ainda para uma série de consequências perturbadoras, mas menos evidentes. Embora essa lista seja imensa, destaco especificamente sobre como os indivíduos transgêneros, portadores da chamada Disforia de Gênero, deixaram de receber, desde o início de 2020, o atendimento e o acolhimento necessários.

O transtorno envolve uma complexidade muito grande de fatores integrados a esses indivíduos, desde fatores genéticos, hormonais, os contextos social, psíquico, cognitivo e até a própria relação que cada um vivencia com seus familiares, colegas de trabalho, amigos e cônjuges.

É importante esclarecer para quem não é familiarizado com o termo: Disforia de Gênero refere-se ao quadro de sofrimento - ansiedade, estresse, angústia, depressão e irritabilidade - causado pela dissociação ou incongruência entre o sexo biológico (sexo do nascimento) e a autopercepção de cada pessoa sobre seu próprio gênero.

A nova resolução normativa 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM) define como incongruência a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo de nascimento, incluindo nesse grupo uma grande diversidade de formas de percepção da questão sexual: transexuais, travestis e outras expressões identitárias.

Dentro dessa ótica, é importante entendermos a distinção entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Enquanto o sexo biológico nada mais é do que o sexo de nascimento, a identidade de gênero refere-se à percepção de cada pessoa sobre o seu próprio gênero. Ou seja, uma pessoa pode se identificar ou não com as características genitais biológicas. Já a orientação sexual diz respeito a como cada indivíduo se relaciona sexual e afetivamente, o que não depende de seu sexo biológico, nem mesmo de sua identidade de gênero.

O homem transexual é o individuo que nasce com o sexo biológico feminino, mas que se identifica como homem. Já a mulher transexual é aquela que nasceu com sexo biológico masculino, mas que se identifica como uma mulher.

O travesti, por sua vez, é o indivíduo que se identifica e se expressa fenotipicamente conforme o sexo biológico oposto ao de seu nascimento, mas que, no entanto, pode conviver de maneira natural com sua genitália. Para o indivíduo travesti não é necessária uma intervenção para mudança de sua configuração biológica de nascimento, o que no transexual será fundamental para cessar ou reduzir o quadro de sofrimento definido acima como Disforia de Gênero.

Talvez o grande ponto é que, nos pacientes com diagnóstico de Disforia de Gênero, o desejo de pertencer ao sexo oposto, diverso do sexo biológico, é extremamente forte. Não é uma escolha e, por isso, eles buscam formas de minimizar esse sofrimento. Obviamente, todo o processo repercute em níveis de transtorno tão altos, que não é incomum encontrarmos pacientes em condições de automutilação e, até mesmo, casos de autoextermínio.

O fato é que o cenário vivenciado atualmente interrompeu todo o processo de atendimento desses pacientes, incluindo o acompanhamento psicológico, a terapia hormonal ou hormonização cruzada, e todas as formas de redesignação sexual através da realização de cirurgias genitais e mamárias, como retirada das mamas, inclusão dos implantes de silicone (próteses mamárias), etc, necessárias para cessar ou amenizar o sentimento de incongruência entre o sexo biológico e a identidade vivenciada.

O processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído pelas portarias 1.707/2008 e 457/2008, ambas do Ministério da Saúde. Mesmo antes da pandemia, observava-se uma subcapacidade de atendimento diante do aumento de demanda. No contexto do SUS, salvo alguma autorização mais recente, apenas cinco serviços são habilitados a oferecer programas integrais de abordagem a indivíduos portadores de Disforia de Gênero: no Rio Grande do Sul, em São Paulo, Pernambuco, em Goiás e no Rio de Janeiro. Fora dessas instituições, esses pacientes precisam buscar o sistema privado, o que sabemos não ser possível para muitas pessoas, além de fragmentar todo o atendimento.

Em Belo Horizonte, esperamos que, em algum momento, seja possível ter no Hospital das Clínicas da UFMG, ou em alguma outra instituição do sistema público, um centro capacitado para fazer a abordagem integral dos indivíduos transgêneros, nos moldes do que pressupõe a Resolução 1.482/1997 do CFM, atualizada no final de 2019. Isso demanda a vocação de uma série de contextos em atendimento aos princípios de regulação e funcionamento do SUS: a universalidade, a integralidade, a gratuidade, além da própria igualdade.

O documento define a abordagem dos indivíduos transexuais por meio de uma equipe multidisciplinar, incluindo especialistas em psiquiatria, psicologia, assistência social, endocrinologia e cirurgiões. Aqui, entram vários tipos de cirurgiões: mastologistas, cirurgiões plásticos, ginecologistas, urologistas, a depender da estratégia e da forma de abordagem cirúrgica que cada paciente necessita.

Não há no Brasil uma ampla disponibilidade de dados e estudos a respeito dos indivíduos portadores de Disforia de Gênero. As últimas informações apresentadas pelo Ministério da Saúde, em 2017, mostram um aumento substancial, na ordem de 32%, no número de intervenções cirúrgicas de readequação sexual nesses pacientes.

Por outro lado, a única publicação científica que temos sobre acompanhamento pós-cirúrgico mostra que apenas 1% desses pacientes se arrepende da cirurgia de readequação. Apesar de ser um número extremamente baixo, a estatística confirma a importância do acolhimento e acompanhamento multidisciplinar pré e pós-cirúrgico de cada um desses indivíduos.

Ainda sobre a abordagem de indivíduos transsexuais, seguramente, teríamos um aumento mais expressivo no atendimento desses indivíduos se não considerássemos a situação catastrófica da pandemia. De toda forma, esse acesso precisa ser ampliado e formatado com várias unidades capacitadas para abordagem integral desses pacientes, não apenas aqui em Belo Horizonte, mas em várias outras localidades no nosso país.