Infecções Hospitalares: por que as pessoas não fazem o óbvio?

Quais são os motivos que dificultam implantar uma das medidas mais simples e importantes para prevenir as infecções em ambiente hospitalar

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(foto: offthelefteye/pixabay)

Nas semanas anteriores abordamos o tema Infecções Hospitalares. Começamos pela história dessas infecções, a importância do episódio envolvendo a morte do presidente Tancredo Neves para a evolução da nossa legislação e implantação de programas em hospitais brasileiros e, por fim, os determinantes de risco para a ocorrência dessas infecções. 



Discutiremos, hoje, os motivos pelos quais é tão difícil implantar uma das medidas mais simples e importantes para prevenir as infecções em ambiente hospitalar – a higiene das mãos antes e depois de examinar e /ou tocar os pacientes. Ou seja, por que as pessoas não fazem o óbvio?!

Lembremos a saga de Semmelweis, que em 1847, concluiu seu brilhante estudo sobre a correlação entre a assistência médica e o elevado risco de aquisição das graves infecções que acometiam as parturientes e as levava ao óbito. Ele comparou gestantes atendidas por médicos obstetras e estudantes de medicina com aqueles atendidos por parteiras. O primeiro grupo apresentou até 3 vezes mais óbitos e 10 vezes mais infecções que o segundo.
 
A partir de suas observações, Semmelweis desenvolveu a hipótese da transmissão da febre puerperal ser por partículas cadavéricas transmitidas pelas mãos de médicos e estudantes que saíam das salas de autópsia e iam direto para as salas de parto.

Preconizou, então, que a partir de 15 de maio de 1847, todos os médicos e estudantes de medicina que fossem atender parturientes no Hospital Geral de Viena, lavassem as mãos antes de examiná-las. O sucesso dessa medida foi provado com a redução dessas infecções de 18,3% em abril para 1,2% em dezembro de 1847.

Entretanto, Semmelweis teve forte oposição às suas ideias e iniciativas, que contrariava a cultura da época e responsabilizava os obstetras pela morte de milhares de pacientes. Semmelweis foi perseguido e morreu em consequência de lesões provocadas por espancamento em um manicômio, outro evento adverso à internação em hospitais psiquiátricos da época.

Merece destaque o fato de Semmelweis ter desenvolvido um trabalho com resultados espetaculares para a época, sem saber da existência de micro-organismos, os quais foram descritos por Louis Pasteur cerca de duas décadas depois.

Deste fato, podemos concluir que lavar as mãos não fazia parte de uma cultura da época e muito menos tinha lastro científico que justificasse a sua incorporação na prática diária. Portanto, não era uma atitude óbvia para aquele momento histórico.
Ou seja, fazer o óbvio é dependente do conhecimento existente em uma determinada época.

Entretanto, o vasto conhecimento científico de que a higienização das mãos antes de tocar os pacientes é uma atitude essencial para evitar milhares de infecções e óbitos, não foi e não tem sido suficiente para fazer com que as pessoas realizem esse ato simples e aparentemente óbvio, até mesmo nos dias atuais.

O  automatismo do comportamento humano tem atropelado inúmeras outras obviedades, as quais são responsáveis por outros milhares de mortes em todo o mundo.

Seres humanos fazem guerra, matam por radicalismo religioso, bebem em excesso e dirigem bêbados, fumam, têm relações sexuais sem preservativo, comem em excesso e depois se submetem a cirurgias para emagrecer etc.

Em 1996, o editor do New York Times, Bernice Kanner, publicou um livro extremamente interessante com o título Are you normal? (Você é normal?). Trata-se de uma pesquisa sobre o que ele chamou de Confissões Verdadeiras do Primeiro Mundo. Centenas de pessoas foram entrevistadas de forma sigilosa e espontânea sobre o comportamentos que tinham, mas jamais teriam coragem de revelar.
 
Os resultados foram assustadores. Por exemplo, uma em cada 10 pessoas disseram fazer qualquer coisa por 10 milhões de dólares, 23,5% disseram jamais dar descarga no vaso sanitário depois de usá-lo, 28% confessaram urinar em piscinas quando estão nadando, 25% furam fila, 28% disseram sonegar o Imposto de Renda, 29% já furtaram em lojas, 54% re-embrulham presentes e dão a outras pessoas etc.

Por todos esses tropeços éticos e morais foi que São Tomás de Aquino, um frade católico que viveu na Itália no  século 13, definiu a  terra como o hospício do Universo. Filósofos e psiquiatras modernos afirmam e comprovam a tese de Aquino:-  de perto ninguém escapa de uma certa fragilidade mental.

Os ditados populares consagram esta constatação: "de médico e de louco, todo mundo tem um pouco".


Voltemos à lavagens das mãos


Estudos observacionais revelam que na maioria dos hospitais, os profissionais de saúde lavam as mãos em menos de 50% das ocasiões em que este ato seria indicado. Trata-se de algo preocupante, particularmente em épocas de superbactérias virtualmente intratáveis e da vasta literatura científica que evidencia a possibilidade de evitar cerca de 30% das Infecções Hospitalares apenas com essa atitude.
 
Trata-se de um problema de tamanha relevância que foi transformado num programa da Organização Mundial de Saúde.

Mas, o que podemos esperar de programas educacionais como modificadores de uma determinada prática assistencial? Alguns estudos revelam que após campanhas motivacionais para higienização  das mãos nos hospitais, os índices de adesão retornam a níveis basais em menos de seis meses após interrompido.

Vários são os fatores que influenciam nesses resultados desapontadores. A falta de insumos adequados é uma delas. Pias mal posicionadas arquitetonicamente, número excessivo de pacientes para serem vistos por um mesmo funcionário, falta de treinamento básico, alta rotatividade de funcionários etc.
 
Entretanto, mesmo em instituições onde todos esses fatores estão controlados, atingir altos índices de higienização das mãos e mantê-los é um enorme desafio.
Inúmeras estratégias têm sido tentadas para motivar os profissionais a realizarem esse ato, considerado óbvio para a maioria das pessoas. 

Enfrentamos desafios envolvendo comportamento em outras áreas e obtivemos muito sucesso. Um exemplo claro foi o uso do cinto de segurança nos automóveis. Após a implantação da multa pelo não uso, a adesão foi maciça. Hoje, praticamente se transformou num hábito que quase não percebemos ao fazê-lo. Fumar em restaurantes e aviões era uma prática comum há menos de 15 anos, hoje algo quase impensável.
 
Educação e punição são aliados na modificação de hábitos, mas não significam evolução da espécie humana. Trata-se de adestramento aos moldes do que é feito com cães farejadores. Não questiono a eficácia e muito menos a necessidade de se utilizar dessas estratégias para mudar péssimos hábitos que afetam e comprometem a saúde da maioria das pessoas.
 
Porém, à luz dos conhecimentos atuais sobre comportamento humano, podemos ser mais efetivos para mudar atitudes e gerar consciência

Tentemos entender a lavagem das mãos enquanto um símbolo. Quando recorremos a um dicionário de símbolos, mão significa visão, atividade, dominação, ação que diferencia mamíferos superiores.

Já o símbolo água significa vida, meio de purificação etc. Quando unimos os dois símbolos, água e mão, encontramos o real significado do ato de lavar as mãos –Consciência Máxima sobre a Vida. Trata-se de um valor simbólico bíblico: – Lavo as mãos por este homem, ou seja, minha consciência está tranquila.

Ou seja, o ato de lavar as mãos pode ser simples, mas a consciência e os valores éticos e morais para realizá-lo não são tão fáceis de serem alcançáveis. 

Os processos pedagógicos tradicionais que usamos ao longo de décadas para treinar os profissionais de saúde certamente não levaram em conta a sutileza e a profundidade necessária para gerar consciência máxima sobre a nossa própria vida. 

Cuidar das pessoas exige bem mais do que conhecimento técnico-científico e disponibilidade de recursos técnicos. Exige consciência sobre nós mesmos e do real papel do trabalho em nossas vidas. Nada fácil de se conseguir no dia a dia atribulado das escolas e das instituições de saúde.

Este processo de mudança de estratégia pedagógica exige maturidade institucional, particularmente dos gestores. Evoluir no trabalho discutindo valores humanos exige suporte filosófico e pedagógico de alto nível.

Neste sentido, a boa notícia é que estamos evoluindo rapidamente para um cuidado mais humanizado nos hospitais, onde a experiência do paciente tem sido cada vez mais valorizada. Sugerir que os pacientes solicitem aos profissionais de saúde que lavem as mãos ou as friccionem com álcool gel antes de tocá-los é um bom sinal de evolução. 

O paciente como o centro e objetivo principal do nosso trabalho.
 
Os motivos pelos quais os seres humanos não fazem o óbvio são de natureza diversa, mas tentar entender os diferentes comportamentos através do valor simbólico de cada atitude nos permite adentrar um novo mundo de maneira mais clara, humana e consciente.

Finalmente, após 173 anos Semmelweis começa a descansar em paz...

Nas próxima semanas, discutiremos  algumas das principais infecções  que acometem os pacientes nos hospitais. Vamos em frente!