O desafio do movimento das 'Escolhas Sábias', onde menos é mais

Vêm ganhando grande importância nos últimos anos movimentos médicos de alcance mundial em que se discutem as repercussões do excesso de diagnósticos e de tratamentos

MARVIN RECINOS / AFP
(foto: MARVIN RECINOS / AFP)
A ciência médica tem se desenvolvido a passos largos com grande incorporação de tecnologia e um número crescente de diagnósticos antes impossíveis passam a fazer parte da vida dos médicos e pacientes.

A despeito de incontestáveis avanços, a utilização desenfreada dos recursos desenvolvidos tem também seus “efeitos colaterais”. A distinção entre saúde e doença sempre foi um desafio fundamental na Medicina. Uma grande preocupação é não deixar de identificar uma determinada doença, evitando problemas de subdiagnóstico e subtratamento. Isso foi apoiado por essas novas tecnologias. No entanto, agora estamos sendo confrontados com o outro lado da moeda, isto é, o risco de muitos atos, ações e intervenções médicas na vida das pessoas. Muitos diagnósticos desnecessários de condições silenciosas que não evoluiriam caso não fossem descobertos.

Encontrar um equilíbrio entre fazer rastreamento universal de muitos tipos de problemas de saúde e a sequela de tratamentos em excesso pode, em alguns casos, ser mais de risco que a própria doença e vem sendo discutido amplamente hoje em dia na comunidade médica o ponto de equilíbrio da melhor prática a ser adotada.

Na medicina atual nem sempre mais intervenção (exames, cirurgias, medicamentos) é o melhor a ser feito. Pacientes e médicos podem trabalhar juntos para buscar assistência que melhore os resultados da saúde, ao mesmo tempo em que se minimizam danos de intervenções desnecessárias.

Se evitarmos testar e tratar quando não for necessário, poderemos nos concentrar e otimizar ainda mais os recursos financeiros disponibilizados para fazer mais coisas que realmente importam. Essa nova abordagem é centrada no paciente e informada por evidências científicas. O objetivo é trazer os melhores resultados para a saúde dos pacientes e, ao fazê-lo, estabelecer as bases para um sistema inteligente e sustentável para as gerações futuras. 

Os sistemas de saúde nos países desenvolvidos estão enfrentando novos desafios, que incluem a definição de valores, objetivos e tarefas de sustentabilidade da medicina. Tem sido questionado como poderemos garantir a sustentabilidade com a escalada dos custos na incorporação de novas tecnologias, exames e medicamentos de última geração, com a restrição orçamentária dos sistemas de saúde no mundo todo, em uma era em que as populações estão envelhecendo e apresentando mais comorbidades. Isso resulta em maior custo no atendimento, especialmente nos últimos anos de vida das pessoas.

Estima-se que entre 22% e 30% das intervenções na área da saúde podem ser consideradas potencialmente inadequadas. Merece aqui ser feita também a separação da definição de valor e custo. Essa distinção não é simples, sendo que valor e custo dependem da perspectiva em que são analisados. Devemos considerar que "custo" é diferente de “valor”, e esse custo inclui o custo dos testes e os custos a jusante, e o que agrega de benefícios e malefícios. Por exemplo, intervenções de alto custo podem fornecer bom valor porque são altamente benéficos e vice-versa, intervenções de baixo custo podem ter pouco ou nenhum valor se fornecerem pouco benefício ou até aumentar os custos a jusante. 

Surgiram e vêm ganhando grande importância nos últimos anos alguns movimentos médicos de alcance mundial em que se discutem as repercussões do que hoje chamamos de “overdiagnosis” (excessos de diagnósticos) e “overtreatment” (excessos de tratamentos). O conceito de “Less is More” (menos é mais) na prática médica surgiu na América do Norte em 2010. Entre esses movimentos estão alguns chamados de Choosing Wisely (escolhas sábias) presentes nos EUA, Reino Unido, França, Bélgica, Portugal, Romênia, Rússia, Polônia e Brasil, e com outros nomes como Slow Medicine na Itália, Smartermedicine na Suíça e SMART Medicine em Israel. 

A iniciativa criada pela American Board of Internal Medicine Foundation (ABIM Foundation) foi chamada de “Choosing Wisely” para estimular profissionais de saúde e pacientes a conversarem sobre o uso correto e no momento adequado de exames diagnósticos e intervenções em saúde e para evitar procedimentos desnecessários ou que possam levar a algum tipo de dano. A ideia é avaliar o que é estritamente necessário para proporcionar um cuidado mais seguro e eficaz. Várias sociedades médicas em todo o mundo lançaram campanhas anti-desperdício e essas sociedades têm publicado várias listas com pelo menos cinco principais intervenções médicas de baixo valor que deveriam ser evitadas.

Mesmo sendo um movimento mais do que necessário e decisivo para a população ele ainda enfrenta muitos desafios e vários fatores ainda levam a uma forte resistência para a implementação do conceito da abordagem “Menos é Mais”. A simples conscientização com a divulgação de listagem com as cinco principais recomendações das sociedades médicas ainda são insuficientes para mudar o comportamento da maioria dos médicos. 

Alguns dos fatores que dificultam a implementação desse novo conceito incluem as expectativas dos pacientes, comportamentos e conceitos antigos arraigados na prática médica, interação entre médico e paciente e fragmentação do cuidado. Durante anos, prevaleceu a ideia de que procurar atendimento médico mesmo assintomático seria a chave para manter o bem-estar e a saúde em dia e que o uso de mais remédios seria preferível a menor uso de remédios. Os pacientes geralmente não compreendem que, ao ter um diagnóstico ou uma ação terapêutica, isso pode vir a ter consequências não intencionais. Em certas situações um bom “medicamento” não significa necessariamente agir e às vezes não fazer nada pode ser o melhor caminho. Existe um entusiasmo na obtenção de diagnóstico precoce como parte da estratégia preventiva, no entanto, as consequências negativas de testes diagnósticos falsos positivos são subestimadas, e os pacientes costumam valorizar e dar mais crédito aos médicos que tentaram fazer algo mesmo podendo ter sido desnecessário em certos cenários.

Os pacientes depositam ainda grandes expectativas com o atual sistema de saúde de alto custo que tem incorporado muita tecnologia mas nem sempre agregando valor. Em muitas situações os pacientes podem acabar se irritando com recomendações que parecem limitar sua escolha. Assim fica a impressão por parte dos pacientes que qualquer tentativa de limitar o acesso aos recursos dispendiosos, muitas vezes potencialmente desnecessários, pode ser interpretado erroneamente como única e exclusivamente por questões econômicas levantando receios de ser uma forma de "racionamento", o que não é o caso. 

O princípio “Menos é Mais” por sua vez é frequentemente contra intuitivo tanto para médicos e pacientes, levando a uma percepção psicologicamente mais difícil de aceitar. No entanto, as expectativas dos pacientes provavelmente são superestimadas pelo próprios médicos. Frequentemente os próprios pacientes pedem menos remédios e são atores importantes que questionam por que os médicos fazem tantos testes ou terapias. O principal mecanismo para uma mudança está na criação de um sistema de tomada de decisão compartilhada processo entre médicos e pacientes durante a rotina das consultas. 

Outra questão envolvida que pode motivar um excesso de solicitação de testes por parte dos médicos seria por medo e receio de deixar passar algum diagnóstico. Pode estar presente também um “viés cognitivo”, que leva a um arrependimento antecipado por falta de diagnóstico e um “viés de incumbência” que leva a tendência de pensar que uma ação seria melhor que uma inação, levando à realização de mais testes. 

Na semana passada comentamos aspectos que têm sido debatidos de possíveis impactos a médio e longo prazo da pandemia na interrupção abrupta de atendimentos, cirurgias e rastreamentos nos pacientes não infectados por coronavírus no pico da COVID-19. Entre os aspectos abordados foi mencionada a repercussão na morbi-mortalidade pela redução da chegada nos pronto-atendimentos dos hospitais dos casos de infarto do miocárdio ou acidente vascular encefálico, com possibilidade de aumento de mortes no domicílio ou evolução para casos mais graves pelo atraso no atendimento. Já por outro lado a redução de detecção de pacientes assintomáticos não submetidos a exames de rotina e não sendo diagnosticados acabam não recebendo tratamento e qual impacto teria isso no desfecho futuro desses pacientes

Tinha mencionado na minha última coluna uma matéria intitulada “O inesperado efeito colateral do COVID-19” em que os autores Gilbert e Prasad abordadam entre outros aspectos uma outra questão sensível e polêmica mas desafiadora e necessária. Com a presença da pandemia atual interrompendo temporariamente toda a dinâmica de doenças não COVID eles lançam a seguinte pergunta “O que podemos aprender com essa interrupção cataclísmica na intervenção médica?”
 
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