O desafio de balancear liberação das medidas de confinamento e o risco da progressão da COVID-19

Cientistas do mundo todo, epidemiologistas, infectologistas, economistas, gestores e governantes tentam encontrar as melhores estratégias

 Gladyston Rodrigues/EM/D. A. Press
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D. A. Press)

As semanas têm custado a passar e apenas um assunto domina a vida de todos o temor que nos espreita da doença atual COVID-19.

Sabemos que toda essa confusão da pandemia uma hora vai passar mas apenas não sabemos exatamente quando. Essa incerteza tem levado a muitas pessoas a já começarem a se impacientar com a falta de definição, os ânimos já começam também a ficar à flor da pele. Tudo isso ainda mais quando dificuldades econômicas e desemprego se tornam uma rápida e triste realidade em um piscar de olhos.

Várias medidas populacionais foram sendo incorporadas e escalonadas no transcorrer da pandemia após a geração de conhecimento científico ao longo dos últimos meses. Mas a assimilação das recomendações não é adotada de forma homogênea em todos os lugares e nem sempre simultaneamente. Por exemplo, ao ler notícias recentes do Canadá, ainda por lá estão discutindo em algumas cidades a adoção obrigatória de uso de máscaras
 
Cientistas do mundo todo, epidemiologistas, infectologistas, economistas, gestores e governantes tentam encontrar as melhores estratégias. Alguns lugares (cidades, estados, países diferentes) parecem conseguir acertar e aderir melhor algumas recomendações. Dados tem mostrado que medidas de distanciamento e isolamento social, uso de máscaras, aliados às medidas de higiene especialmente das mãos e equipamentos de proteção individual nos serviços de saúde, parecem reduzir a disseminação do vírus.

É assustador ver a escalada de mortes no mundo inteiro serem contabilizadas em um placar diário mas não podemos perder de vista que cada número de morte registrada corresponde a vida de alguém querido por familiares e amigos e que não voltam mais. 
 
Ainda assim, até o momento não sabemos com exatidão a real dimensão proporcional de mortes, pois não sabemos com exatidão quantas pessoas verdadeiramente estão contaminadas, uma vez que não temos tido testagem suficiente para dimensionar melhor o problema.

Até termos disponível uma vacina para imunizar toda a população que ainda não se contaminou, fica difícil planejar as estratégias de enfrentamento da pandemia e o melhor balanceamento entre as medidas restritivas ou deliberação de confinamento com o fechamento ou abertura das atividades econômicas para não determinar que o “remédio seja pior que a doença”.

Certamente, não é tarefa fácil para os epidemiologistas e infectologistas que assessoram os gestores de qual melhor decisão tomar. Temos visto no momento grandes embates, pontos de vistas diferentes, divergências e em algumas cidades pelo Brasil afora já aparecem denúncias de corrupção e má gestão atual. Isso se soma a erros administrativos históricos de anos anteriores na infraestrutura da saúde pública, que resultam em grande sobrecarga por falta de leitos de CTI bem aparelhados para os casos graves, medicamentos, equipamentos de proteção individual para os profissionais da saúde, entre outros.

Estamos no calor dos acontecimentos e muitos conhecimentos já foram gerados e tantos outros estão por surgir. Ainda não estamos em momento de verdades absolutas seja de qual foi a melhor estratégia de enfrentamento e muito menos de medicamentos que ainda não dispomos com grau forte de evidência científica. A dimensão de tudo que estamos passando também será melhor entendida com os dados que serão gerados após ter passado essa primeira onda.

Na Europa, que já foi o epicentro da doença, estão começando a olhar os dados e tentar entender melhor o cenário. A mortalidade é um indicador básico de saúde. Portanto, compreender sua epidemiologia é fundamental para um planejamento e ação eficazes em saúde pública. Várias polêmicas existem sobre qual é o melhor método para parametrizar as análises de mortalidade de uma determinada doença.
 

Segundo dados disponíveis no centro de informações sobre COVID-19 do site da Universidade John Hopkins, as taxas de fatalidade relatadas pelos diversos países têm diferido muito e essa taxa é obtida dividindo o número de mortes pelo número de casos confirmados. Segundo esse site, as diferenças nos números de mortalidade podem ser atribuídas a:

- diferenças no número de pessoas testadas;

- dados demográficos (mortalidade tende a ser maior em populações mais idosas);

- características do sistema de saúde (mortalidade aumenta nos hospitais sobrecarregados);

- e fatores ainda desconhecidos.

Uma outra forma de conferir o grau de letalidade da doença e perceber a diferença entre os países é olhar não por número absoluto mas morte para cada 100 mil habitantes.
 
No caso da Europa, as estatísticas vitais são acessíveis a todos os países do continente, mas, na maioria dos casos, esses dados não estão prontamente disponíveis durante crises ou ameaças iminentes à saúde.

Com o surgimento de novas doenças ou ameaças de epidemias (por exemplo, gripe pandêmica, SARS), os tomadores de decisão precisam desses dados para estimar a gravidade do problema e informar quaisquer iniciativas a serem implementadas como parte de uma resposta eficaz à saúde pública.

Na Europa, muitas ameaças à saúde pública não são restritas por fronteiras, as abordagens unificadas internacionais são críticas para detectar e estimar a magnitude do excesso de mortes, pois o agrupamento de dados aumenta o poder de detectar mudanças rapidamente. O monitoramento da mortalidade deve estar em andamento para detectar quando e onde ocorre excesso de mortalidade.
 
A metodologia de monitoramento da mortalidade é complexa e existe o risco de os países compartilharem informações incompatíveis se diferentes metodologias forem usadas. A falta de uma metodologia comum acordada para avaliar a mortalidade durante uma grande crise de saúde e mapear o impacto das ameaças à saúde na mortalidade em diferentes países se beneficia enormemente de uma abordagem uniforme.

O projeto EuroMoMo (monitoramento europeu do excesso de mortalidade para ações de saúde pública) não é específico para COVID mas uma atividade de monitoramento de mortalidade com objetivo de detectar e medir o excesso de mortes relacionadas à gripe sazonal, pandemias e outras ameaças à saúde pública.

As estatísticas oficiais de mortalidade são fornecidas semanalmente nos 24 países europeus da rede colaborativa EuroMoMo apoiada pelo Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças e pela Organização Mundial da Saúde. O projeto opera o monitoramento e análises oportunas coordenados da mortalidade no maior número possível de países europeus, usando uma abordagem padronizada para garantir que os sinais sejam comparáveis entre os países. Entre os objetivos está o de calcular todas as causas semanais observadas, esperadas e o excesso de mortalidade por todas as causas.
 
No site da EuroMoMo podem ser vistos os gráficos gerados na vigésima primeira semana epidemiológica de 2020 com os dados dos 24 países participantes, comparando com a mesma semana epidemiológica de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019. Fica visualmente mais fácil entender a dimensão do que realmente aconteceu nos diversos países europeus com dados mais uniformizados baseados em um parâmetro muito usado conhecido como “excesso de mortalidade”.

Usando uma explicação simplificada, é feito o cálculo de quantas pessoas morreram a mais no ano atual comparando com a tendência de mortalidade que se espera no mesmo período das mesmas semanas epidemiológicas de anos anteriores. Fica nítido o aumento de “excesso de mortalidade” em países como Bélgica, Itália, Espanha, Reino Unido, Suécia mas não ocorrendo em países como Alemanha, Àustria, Finlândia, Dinamarca, por exemplo, mesmo que nesses últimos países tenham tido muitas mortes registradas por COVID-19.
 
No Brasil ainda estamos atingindo o pico da doença e fica ainda mais difícil tentar entender melhor o cenário onde se faz poucos testes e temos muita subnotificação. O jornalista Hélio Gurovitz publicou no dia 5 de maio uma matéria baseada no relato do epidemiologista da USP Paulo Latufo. Usando o parâmetro de “excesso de mortalidade” para ajudar a informar melhor a dimensão do que tem acontecido no Brasil, dando uma dimensão mais acurada do que estamos vivenciando. Nessa análise, pode ser vista melhor a subnotificação pelo parâmetro de “excesso de mortalidade por todas as causas” e não o número de mortes por dia, como tem sido divulgado nos boletins de cidades e estados na imprensa de um modo geral. 
 
Foi verificada qual percentagem a mais de mortes tinha ocorrido nos últimos meses em relação ao que se morreu nesta época na média dos últimos 5 anos. As mortes nas cinco cidades brasileiras mais atingidas pela COVID-19 foram analisadas incluindo tanto as mortes por COVID-19 como as por outras causas e somavam desde o início da pandemia naquelas cidades até o dia 25 de abril 26.445, comparado com 20.384 durante as mesmas semanas epidemiológicas dos anos anteriores, representando um crescimento de 30% em relação à média dos anos anteriores.

No mesmo período, os números oficiais falavam em 4.057 mortos pelo novo coronavírus no país e em 2.219 nas mesmas cinco cidades analisadas. A diferença descrita foi então de 6.061 mortes e isso superava em 173% aquelas atribuídas à COVID-19 oficialmente até aquela data.

Houve nessas cidades no mínimo 3.842 mortes além das registradas por COVID-19, de acordo com a análise de Lotufo, que se baseou nos últimos dados disponíveis para o total de certidões de óbito registradas nos cartórios do país. mantidoS pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).

Nessa mesma reportagem, Paulo Latufo comenta que usar o parâmetro de “excesso de mortalidade” poderia ser uma métrica mais relevante para entender o impacto real da pandemia na sociedade. Não só revela a subestimação nas estatísticas oficiais, mas também dá a medida de todos os efeitos do novo coronavírus na saúde do brasileiro. Algumas semanaS já se passaram desde essa publicação e esse cenário deve ser no momento ainda pior pela escalada de mortes desde então. 
 
Mas o Brasil é um país continental e existem certamente diferenças regionais importantes. Se fizermos uma consulta no mesmo portal mencionado acima, em algumas cidades e estados é impressionante e assustador o aumento de mortes quando comparado com o ano anterior. Os óbitos por doenças respiratórias somam tanto os casos confirmados de COVID-19 como de outros registros de atestado de óbito, que, por falta de testagem para o vírus, podem ter sido notificados de outras maneiras como síndrome respiratória aguda grave, pneumonia, septicemia, insuficiência respiratória e essas mortes podem ter sido por coronavírus.

Já em outras regiões, apesar de ter ocorrido crescimento de óbitos registrados de casos confirmados de COVID-19, quando vemos a soma de todos os óbitos de causas respiratórias não fica tão nítido o aumento em comparação com o ano anterior e, supreendemente, em alguns estados e cidades, o total de registros de óbitos por todas as causas respiratórias chega a ser até menor em 2020 quando comparado com 2019.
 
Está em fase pre-print na plataforma medRxiv (onde ficam estudos manuscritos ainda não publicados nem certificados ainda pelos revisores da revista acadêmica), um estudo feito por autores da Universidade Federal de Uberlândia. Os autores descrevem informações obtidas de dois bancos de dados (Arpen-Brasil e SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação) o titulo está em inglês mas traduzindo seria “Subnotificação de mortes por COVID-19 no segundo estado mais populoso do Brasil”, em que alegam diferenças de mais de 200% entre os dados oficiais e os pesquisadores evidenciaram em Minas Gerais aumento de 648,61% de mortes pela SRAG (Síndrome respiratória aguda grave) no período analisado, podendo ser na verdade um efeito da COVID-19. O estudo também aponta um crescimento de 5,36% dos casos de pneumonia e 5,72% de insuficiência respiratória no estado,  que seriam evidências claras de infecções pelo novo coronavírus ainda não diagnosticadas.
 
Esses dados todos logicamente não minimizam em nada as mais de 25 mil mortes atuais confirmadas por COVID-19 no Brasil. Mas, como já falei aqui antes, os tomadores de decisão precisarão desses dados para estimar a gravidade do problema e ajudar nas iniciativas a serem implementadas como parte de uma resposta eficaz à saúde pública.

Se você tem dúvidas ou quer sugerir tema para a coluna, envie email para arnaldoschainberg@terra.com.br