O impacto da chamada terceira onda na pós-pandemia

Consequências da interrupção temporária dos cuidados aos pacientes com doenças crônicas, que deixaram ou adiaram atendimentos durante a primeira onda

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(foto: Reprodução da internet)

Estamos ainda enfrentando a escalada do pico dos casos e mortes por COVID-19 no que os especialistas chamam de primeira onda e ainda nem tivemos tempo para pensar na segunda onda e então muito menos cabeça para refletir aqui sobre uma chamada terceira onda.

Nas epidemias é conhecido o fenômeno de primeira onda, onde ocorrem a maioria dos impactos de morbidade e mortalidade. Mas, em seguida, após o controle e redução dos casos atribuído à primeira onda, acontece o retorno de novos casos no que se convencionou chamar de segunda onda.

Poderíamos então fazer uma analogia com o fenômeno natural dos terremotos, quando após o tremor violento inicial ocorrem muitos outros abalos sísmicos secundários por vários dias. Voltando à pandemia, parece ter surgido já uma pequena segunda onda em alguns países, como na China e na Coréia do Sul

Desde do começo de toda essa crise também se comenta, de forma incipiente, o que poderia ser uma terceira onda com o impacto da interrupção temporária dos cuidados aos pacientes com doenças crônicas que deixaram ou adiaram seus atendimentos durante a passagem da primeira onda.

Já se indagava sobre as consequências da interrupção das cirurgias eletivas para poupar os hospitais de ocupação de leitos e de vagas potenciais de UTI. Portanto, como ficariam os pacientes com câncer ou com outras doenças que adiaram seus tratamentos clínicos ou cirúrgicos

Outra questão é de qual tem sido o impacto para os pacientes diante de descontroles agudos de condições crônicas, como diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, doenças pulmonares que não foram procurar pronto atendimento por medo de contrair coronavírus.

Estariam os pacientes com infarto agudo do miocárdio ou com acidentes vasculares cerebrais morrendo mais dessas condições em seu próprio domicílio por adiarem ou não procurarem atendimento hospitalar?

Os dados mais completos com os desdobramentos dessas consequências somente teremos num futuro próximo quando  puder ser comparado o número de eventos e desfechos de várias doenças crônicas e sua morbi-mortalidade quando comparados com os dados de anos anteriores. 

Alguns dados ainda preliminares do que pode ter acontecido com os doentes não COVID-19 aqui no nosso meio podem ser vistos com a divulgação recente pela Unimed-BH, esse que é o principal e maior plano de saúde da rede complementar de Belo Horizonte e das cidades metropolitanas da grande BH.

Ela tem usuários com cobertura de planos de atendimento médico e hospitalar que abrange uma população estimada de mais de 1 milhão de pessoas. Logo no início da pandemia, a Unimed-BH criou um comitê de crise e se preparou de várias formas para o enfrentamento da pandemia criando novos leitos de internação e de  CTI.

A cooperativa médica já tinha um grande banco de dados e possui uma rede para fazer busca ativa dos pacientes crônicos com doenças graves, dos pacientes que recebem alta hospitalar e dos idosos mais frágeis.

A Unimed BH já monitorizava esses pacientes através de sua equipe de enfermagem e suporte domiciliar. Essa supervisão ativa foi ampliada com o início da pandemia.

Segundo os dados divulgados durante o período da pandemia até aqui, o número de pacientes acometidos e atendidos por exemplo por AVC nas unidades próprias se manteve semelhante ao do ano anterior.

Por outro lado, nos EUA também foram divulgados dados iniciais a esse respeito. Em matéria publicada há poucos dias na sessão de opiniões no site da CNN intitulado “O inesperado efeito colateral da COVID-19”, dois grandes especialistas H. Gilbert Welch e Vinay Prasad opinaram sobre a questão do impacto potencial da pandemia COVID-19.

Eles têm uma visão polêmica e questionadora e já costumam discutir e publicar academicamente muito sobre um assunto muito atual: os excessos de diagnósticos e excessos de tratamentos desnecessários na medicina moderna.

Agora, nessa matéria recém-publicada, eles comentam como a princípio a pandemia COVID-19 poderia sobrecarregar o sistema de assistência médica, o que de fato aconteceu em alguns locais que concentraram mais os casos de COVID-19, chamados de  “hot spots” (pontos quentes) nos EUA.

Em muitos outros locais que não foram tão afetadas de casos de coronavírus, entretanto, o cenário que foi constatado era de muitos hospitais vazios de pacientes não COVID que se esquivaram ou foram instruídos a ficar longe de intervenções que os ajudariam a viver mais e/ou a viver melhor.

Em contrapartida, para outros pacientes, o atraso em seus tratamentos programados pode não ter tido importância, pois eles possivelmente ficarão igualmente bem com a intervenção em uma data posterior. Mas os dois autores alegam, ainda, sem ter os dados finais para isso, que seria importante considerar outra possível situação: a de resultados em alguns pacientes poderem ter sido até melhor com a menor assistência e intervenção médica.

Eles ainda referem que ninguém dispõe de dados nacionais, mas que a virada dos eventos foi notável nos EUA. Em meados de março de 2020, os hospitais começaram a cancelar cirurgias eletivas, tanto para proteger os pacientes quanto para fornecer capacidade para enfrentar o surto, seguindo orientação do Colégio Americano de Cirurgiões.

Isso não apenas interrompeu cirurgias como por exemplo os  reparos de hérnias ou de substituições articulares por próteses, mas também as cirurgias para cânceres de baixo risco, especialmente câncer de mama e próstata em estágio inicial.

Em seguida, os atendimentos nas emergências também caíram inesperadamente e salas de emergência em Boston, Detroit e Minneapolis viram quedas substanciais de volume de pacientes, e os médicos do setor de emergência desses locais passaram por cortes tanto na carga horária de trabalho quanto no salário.

O declínio no volume de atendimentos parece não ter ficado confinado a menos ferimentos leves e doenças autolimitadas, mas também incluiu menos ataques cardíacos e derrames cerebrais.

Ainda falando do que ocorreu nos EUA, por lá o impacto da COVID-19 em outros aspectos do atendimentos foi muito além do hospital, incluindo todos os outros tipos de atendimentos médico-paciente.

Mesmo com o advento da telessaúde, as clínicas de atendimento que atuam na atenção primária tiveram menos pacientes e também demitiram funcionários. A Academia Americana de Médicos de Família estima que cerca de 40% das clínicas de medicina de família estariam em risco de fechamento até o final de junho 2020.

Como tem acontecido menos consultas ambulatoriais, um efeito é totalmente esperado, como a menor solicitação e realização de exames laboratoriais e exames de imagem. Isso limita os esforços para encontrar doenças precocemente em indivíduos assintomáticos

Outro aspecto mencionado foi o declínio na chegada nos hospitais de ataques cardíacos e derrames cerebrais, o que levantou importantes questões sobre as doenças cardiovasculares.

No início de abril 2020, o New York Times publicou uma matéria sobre esse tema com o título “Onde foram parar todos os ataques cardíacos?”. Alguns pacientes podem ter relutado em ir ao hospital para evitar se contaminar pelo coronavírus e podem ter sofrido o infarto, e talvez até ter morrido, em casa.

Os pacientes, ao sofrerem sintomas de um IAM, ao procurar o serviço de saúde em tempo mais tardio, podem ter levado à redução da possibilidade de salvamento com as terapias de reperfusão e, portanto, a um pior prognóstico.

Em um estudo de banco de dados italiano publicado no European Heart Journal, De Rosa e colaboradores mostraram que, durante uma das semanas do mês de março de 2020, houve queda de cerca de 50% nas hospitalizações por IAM, comparado à mesma semana de 2019.

Essa redução foi mais drástica no IAM sem supra (65%) do que no IAM com supra de ST (26%). Além disso, a taxa de letalidade dos pacientes hospitalizados com IAM com supra de ST neste período quando comparado a 2019 foi maior 13.7% vs. 4.1%.

Ainda, houve aumento de 39% no tempo entre o início dos sintomas e o início da reperfusão com angioplastia primária. Em uma Carta ao Editor publicada no New England Journal of Medicine, Solomon e colaboradores relatam tendências muito semelhantes em um banco de dados norte-americano no estado da Califórnia, com redução de 48% nas hospitalizações por IAM entre janeiro e abril de 2020 quando comparado ao mesmo período de 2019. 

No entanto, uma outra situação aventada também pode estar acontecendo. Cada vez mais, pacientes assintomáticos fazem exames de checape e têm tido diagnósticos de doença coronária e cerebrovascular subclínica. Uma explicação alternativa pode ser então de que os médicos podem, na verdade, não estar diagnosticando os pacientes com anormalidades cardíacas ou neurológicas muito leves e assintomáticos.

Uma possibilidade aventada e não demonstrada, ainda, seria que talvez o que poderia ter reduzido nos hospitais seriam os pacientes com os quadros sem dor, assintomáticos e mesmo dos eventos menores para os quais o tratamento agressivo intra-hospitalar poderia em algumas situações ser até desnecessário ou até prejudicial.

Foi ainda especulado de outra possibilidade que possa ter levado a menos ataques cardíacos e derrames cerebrais neste momento. A significativa redução da poluição atmosférica como visto por exemplo em Los Angeles, ou na Índia, onde as pessoas puderam ver o Himalaia a quilômetros de distância pela primeira vez em 30 anos.

A poluição do ar tem sido consistentemente ligada a ataques cardíacos. Será que uma melhor qualidade de ar ajudou a proteger os corações?

Em 23 de novembro, escrevi neste espaço a coluna com o título “A foggy day - um fator de risco à saúde nebulosa” onde abordei aspectos do impacto da poluição do ar na saúde.

Aqui na nossa realidade, parece que também houve redução da poluição neste periodo da pandemia, diante da paralisação, restrição, suspensão e redução de algumas atividades que levaram à diminuição na circulação de milhares de veículos em Belo Horizonte.

Houve uma consequente redução de 45% do material particulado fino (PM2,5) que é uma partícula muito pequena e um dos poluentes mais prejudiciais à saúde humana lançado na atmosfera, conforme medição realizada na Estação PUC São Gabriel em um levantamento divulgado pela Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (Feam).

Com base nos dados de março e abril de 2020, comparados com o mesmo período do ano passado, foi mostrado uma redução de emissões atmosféricas em comparação com o mesmo período do ano passado.

Após a pandemia de COVID-19 será ousado, mas muito importante fazer algumas perguntas como quais seriam as patologias e tipos de pacientes que foram prejudicados pelo atraso dos cuidados médicos.

Novamente, Gilbert e Prasad intuem que não iremos encontrar os benefícios desse tipo de pergunta a menos que eles sejam procurados. Eles mencionam que precisaremos de pesquisadores dispostos a fazer perguntas difíceis sobre os serviços que os médicos prestam e questões que podem ameaçar os próprios interesses profissionais e financeiros. 

A situação ainda é de angústia, sofrimento, dor e desesperança. Mas mesmo diante de cenários tão adversos como esse atual, já vimos ao longo da história que após acontecimentos trágicos ficam lições, experiências, conhecimentos e conquistas que são gerados e que ficam como usufruto para outras gerações, para um bem comum para o futuro da humanidade.

Quem diria que muitas condutas médicas, especialmente técnicas cirúrgicas, foram criadas e desenvolvidas sob condições extremas em ambiente de guerras?

Sendo assim, parece ofensivo, no calor dos acontecimentos atuais, onde as mortes ocorrem aos milhares, discutir sobre o que essa trágica onda da COVID-19 pode vir a oferecer de conhecimento para a prática médica futura. 

Ao produzir um impacto significativo na assistência das doenças não COVID-19 está surgindo uma oportunidade única de se estudar o que pode acontecer na prática clínica e cirúrgica ao se reduzir drasticamente todo o aparato de assistência médica, ao ter deslocado e concentrado boa parcela dos recursos médicos e hospitalares para enfrentar essa nova e grave doença infecciosa.

Poderemos, então, saber com mais precisão qual o grau de impacto negativo na saúde na maioria das pessoas que deixaram de ser atendidas. Mas, por outro lado, a dúvida se em alguns cenários poderia ter eventualmente ocorrido algum aspecto positivo dessa redução da realização de exames e consultas que em algumas situações poderiam ser até dispensáveis.

Será indispensável para os pesquisadores estudar o que foi perdido, mas será também corajoso para eles estudar o que foi ganho.