American Cancer Society atualiza diretriz: 'É melhor não beber bebidas alcoólicas'

Evidências científicas já demonstraram a relação entre o consumo de álcool e o maior risco de desenvolvimento de diferentes tipos de câncer

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Em minhas palestras, quando falo dos fatores de risco para carcinogênese e destaco o etilismo, sempre me perguntam: “Mas não pode nem uma tacinha de vinho por dia?” De acordo com as diretrizes atualizadas de prevenção do câncer divulgadas em junho pela American Cancer Society (ACS), não! "É melhor não beber bebidas alcoólicas", resume a recomendação.

A principal mudança nas orientações em relação ao etilismo é que a atualização sugere que, de forma ideal, o consumo de álcool deve ser evitado completamente, enquanto a diretriz anterior apenas recomendava limitar o consumo de álcool. A nova diretriz está alinhada com as evidências científicas, que já demonstraram a relação entre o consumo de álcool e o maior risco de desenvolvimento de diferentes tipos de câncer como boca, faringe, laringe, esôfago, estômago, fígado, colorretal/intestino (cólon e reto) e mama.

Como o álcool causa o câncer

Embora inúmeras pesquisas demonstrem a maior incidência desses tumores em pessoas que consomem álcool, o mecanismo de carcinogênese causado pelo etanol ainda recebe atenção dos pesquisadores para melhores esclarecimentos. Até então, sabe-se que o álcool contribui de diferentes formas para o desenvolvimento dos diferentes tipos de câncer.

No caso dos cânceres de boca e garganta, o álcool é um irritante da mucosa e essa ação, em longo prazo, pode levar a lesões. Durante o processo de reparação das células danificadas, o DNA das células pode se alterar e causar, consequentemente, o desenvolvimento de um tumor.

No estômago, a relação pode ser explicada devido ao processo de metabolismo, quando o álcool é convertido em acetaldeído pelas bactérias intestinais. Essa substância, por sua vez, é carcinogênica. O metabolismo do álcool também provoca lesões no fígado, resultando em um processo inflamatório e cicatricial, que também pode causar alterações do DNA e, consequente, o desenvolvimento de câncer hepático.

O efeito é ainda pior quando o indivíduo é fumante e consumidor de bebidas alcoólicas. O álcool atua como solvente, favorecendo a entrada de substâncias carcinogênicas nas células, especialmente, as substâncias provenientes do tabaco. É o que chamamos de co-carcinógeno. Nesse caso, o maior risco relaciona-se ao câncer de pulmão.

Para o câncer de mama e colorretal, o maior risco é explicado pelo álcool dificultar a absorção de vitaminas, especialmente, a vitamina B9 (folato ou ácido fólico), cuja deficiência está associada à incidência desses dois tipos de câncer.

As pesquisas também indicam que o álcool possui efeitos endócrinos que podem aumentar o risco para vários tipos de câncer, entre eles, o de mama. As evidências mostram que o consumo de bebidas alcoólicas está associado a níveis elevados de estrogênio, importante hormônio que regula o desenvolvimento do tecido mamário. Somado a isso, o consumo de álcool está associado à obesidade, que também configura um importante fator de risco para diversos tipos de cânceres e outras doenças sérias.

Para as pessoas que, apesar desses riscos, optarem por beber álcool, as diretrizes recomendam limitar este consumo a ingestão a um drinque por dia, para mulheres, e dois drinques por dia, para homens. Mas, como foi dito, ainda assim essas pessoas correm risco, principalmente, se forem portadoras de alguma Síndrome de Predisposição Hereditária ao Câncer.

Pandemia: aumento do consumo de drogas e redução do rastreamento de câncer

Essas informações são preocupantes, sobretudo, agora na pandemia quando as pesquisas já demonstram o aumento do consumo das bebidas alcoólicas e de outras drogas. Um levantamento publicado na revista Alcohol And Drug Review e realizado por um grupo internacional de pesquisadores do Brasil, Canadá, Estados Unidos e África do Sul, e da Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), mostra que em situações de pandemia não é incomum ocorrer aumento nos índices de alcoolismo, embora a diminuição da renda ou restrições na venda possa contribuir para a redução no consumo.

No Brasil, dados divulgados, em maio, pela Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead) apontam um crescimento de 38% nas vendas de bebidas alcoólicas nas distribuidoras desde o início do isolamento social. Nos mercados, o aumento nas vendas foi de 27%. Por sua vez, uma pesquisa coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), indicou que 18% dos brasileiros aumentaram o consumo de álcool nesse período. O índice foi ainda maior (26%) na faixa etária de 30 a 39 anos.

Somando esse fenômeno à redução das consultas de rotina e dos exames de rastreamento e diagnóstico de câncer, receio que teremos, no futuro, efeitos catastróficos em relação ao aumento do número de novos casos de câncer e também de diagnósticos tardios, o que repercutirá em maiores taxas de mortalidade pela doença.

 E, claro, precisamos lembrar que, além do câncer, o álcool está relacionado a outras doenças como as neuropatias, gastrite, depressão e outros transtornos mentais, hipertensão, acidente vascular cerebral hemorrágico, cirrose e pancreatite aguda e crônica.

Manter um estilo de vida saudável pode ser difícil para muitas pessoas, especialmente, durante a quarentena mundial que vivenciamos, quando a permanência em casa está sendo gatilho para uma série de transtornos e vícios. É preciso manter-se firme nesse propósito de se manter saudável e cuidar também da saúde mental. Espero que meu artigo sirva para abrir os olhos de pessoas que ainda não perceberam que podem estar nessa situação de utilização do álcool como válvula de escape durante a pandemia. Cuidem-se sempre!

 *André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada e diretor Científico no Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão: GBOP. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.

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