Filmado há 50 anos na Serra do Espinhaço, O padre e a moça se conserva como uma grande obra do Cinema Novo

Longa-metragem dirigido por Joaquim Pedro de Andrade revela muito sobre a mineiridade

por Pablo Pires Fernandes 11/09/2015 00:13
Arquivo O Cruzeiro/EM
Bastidores da gravação de O padre e a moça, em 1965 (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM)
O padre sobe a serra rochosa no lombo de um cavalo e, ao chegar à cidade isolada, é observado por uma moça debruçada na janela. A sequência inicial e seu título – O padre e a moça – já indicam o drama que será abordado no filme de Joaquim Pedro de Andrade. A história de um padre forasteiro e da paixão impossível entre ele e a moça são pressupostos óbvios da sinopse. Mas o filme é mais que isso.

Realizado há 50 anos em São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito do Serro e próximo a Diamantina, o longa-metragem criou uma legião de admiradores por ser capaz de manter sua poesia ao longo do tempo. O significado dessa obra, porém, supera a dimensão puramente estética. Sua realização causou impacto decisivo em uma geração de futuros realizadores em Minas Gerais.

Em 1965, o movimento do Cinema Novo já tinha completado seu primeiro ciclo e conquistado algum reconhecimento, mas as produções se concentravam no Rio de Janeiro e, em menor escala, em São Paulo. Minas Gerais não produzia filmes, mas, em contrapartida, tinha grandes críticos e cineclubistas apaixonados. O cineasta Geraldo Veloso lembra que Nelson Pereira dos Santos, criador do Cinema Novo e referência para qualquer interessado por cinema brasileiro, não apenas reconheceu a efervescência cinéfila em Belo Horizonte, mas incentivou dois diretores a filmar em Minas.

Simultaneamente, Joaquim Pedro, carioca de origens mineiras, fez O padre e a moça, e o paulista Roberto Santos, A hora e a vez de Augusto Matraga. Os dois filmes foram rodados na região da Serra do Espinhaço no primeiro semestre de 1965. E deram início a uma produção de cinema no estado. Ao incorporar a turma de jovens cinéfilos de Belo Horizonte a suas equipes, os diretores insuflaram a inquietude de um grupo que rendeu frutos. “São filmes irmãos”, conta Veloso, que trabalhou como assistente de produção – seu trabalho inaugural no cinema, aos 22 anos – no primeiro longa de ficção de Joaquim Pedro, depois de realizar o documentário Garrincha, a alegria do povo (1963).

Os dois filmes foram inspirados em obras literárias mineiras: O padre e a moça, em poema de Carlos Drummond de Andrade; e Matraga, em conto de Guimarães Rosa. O primeiro aposta no intimismo, o segundo explora o simbolismo. Apesar da evidente distinção estética, ambos se afastam da postura vigente do Cinema Novo, na qual a preocupação em retratar a realidade do país e se colocar politicamente eram quase imperativos. Entretanto, apresentam dilemas éticos que transcendem a crítica política da realidade nacional, mesmo em anos de chumbo.

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Paulo José e Helena Ignez em cena de O padre e a moça (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM)
Se 'A hora e a vez de Augusto Matraga' discute o misticismo religioso e a violência, 'O padre e a moça' expõe a opressão de uma sociedade estagnada, a imposição da moral sobre o desejo. Ambos os filmes tratam do Brasil, mas o trabalho de Joaquim Pedro é, sem dúvida, um mergulho na mineiridade. Veloso diz que, embora possa haver um toque de estereótipo ao apresentar uma Minas Gerais introspectiva, recalcada e até sombria, o diretor foi fiel à sua própria visão e coerente com o dilema proposto.

Em 1966, antes de sua estreia como diretor, Rogério Sganzerla escreveu: “É preciso dizer que O padre e a moça está inteiramente mergulhado na tradição da arte mineira. Isto é, barroca”. E é esse barroco, dualista, ambíguo, que Joaquim Pedro consegue extrair de seus atores. Paulo José, no papel do padre estrangeiro, e Helena Ignez interpretando a moça do interior.

Arquivo O Cruzeiro/EM
Helena Ignez protagonizou o filme com Paulo André (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM)
Na relação entre os protagonistas há muito mais de insinuação e de entrelinhas do que diálogos. Silêncios longos, o uso da câmera fixa e o rigor da fotografia de Mário Carneiro servem para exacerbar a sina trágica. A dificuldade de comunicação entre os personagens, a incompreensão da própria condição e a angústia da dúvida são onipresentes ao longo da narrativa. “Mesmo a fotografia de Mário Carneiro – trabalhando essencialmente com planos médios, distanciados –  conduz a uma sensação de asfixia na qual os personagens se debatem internamente”, escreve o pesquisador Luiz Alberto Rocha Melo em uma edição da revista Contracampo dedicada ao filme de Joaquim Pedro. Veloso elogia o rigor da câmera, do movimento dos personagens no quadro filmado. “O Joaquim estudava muito cada plano, as gravações tinham decupagem e composição muito cuidadas”, revela.

O claro e o escuro, o branco rendado do vestido e o negro da batina, oposição já presente nos versos modernistas de Drummond, ganham ares mais barrocos nas imagens de Joaquim Pedro, que sabe fazer uso de seus laços ouro-pretanos. Para o crítico Maurício Gomes Leite, em texto de 1966, o diretor carioca está “colado à manifestação cultural mineira, que não inclui apenas Drummond, mas a tortura de Lúcio Cardoso, a perplexidade de Murilo Rubião, o erotismo técnico de Autran Dourado, a crônica irônica de Fernando Sabino, a ironia crônica de Otto Lara Resende”.

A presença das montanhas mineiras e o isolamento da equipe, praticamente confinada ao vilarejo durante os três meses de filmagens, é outro fator particularmente visível no filme. Mais do que isso, aumentam a sensação de opressão à qual os personagens estavam submetidos. Veloso, que acompanhou a montagem do longa, destaca que “o filme é um processo de transformação do próprio Joaquim”. Ele conta que imaginava que a história fosse ter uma estrutura linear, mas no processo de montagem, o diretor “embaralhou os tempos”, criando idas e vindas que fogem da linearidade clássica. Com isso, o tempo e o espaço são manipulados de forma a acentuar a indefinição, abrir lacunas narrativas que parecem esconder segredos. Em O padre e a moça, as verdades são veladas, as conversas, sussurradas.


PARA saber MAIS

. Joaquim Pedro de Andrade
De Ivana Bentes.
Editora Relume-Dumará, 1996

. Joaquim Pedro de Andrade – Primeiros tempos
De Luciana Corrêa de Araújo
Editora Alameda, 2013

. Lição de coisas
De Carlos Drummond de Andrade
Companhia das Letras, 2012

. O padre e a moça
DVD, Distribuidora Bretz Back-Five

. Revista Contracampo
https://www.contracampo.com.br/
42/frames.htm

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