Exposição e livro 'A viagem das carrancas' recuperam a história das esculturas de madeira

Objetos tiveram grande expressividade nos barcos do Rio São Francisco

por Walter Sebastião 18/09/2015 11:12
IMS/REPRODUÇÃO
Escultura criada para a barca Anhancá por Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany,o Mestre Guarany (foto: IMS/REPRODUÇÃO)
Leva o nome de 'A viagem das carrancas', exposição e livro sobre uma das mais fascinantes e enigmáticas criações da cultura popular brasileira. A mostra, até dia 18 de outubro, na Pinacoteca da Luz 2, em São Paulo, tem curadoria de Lorenzo Mammì. Reúne quase 30 peças, de diversos artistas (alguns inclusive anônimos), vindas de coleções particulares e públicas de carrancas navegadas (as que estiveram em barcos) e não navegadas. Mais de 15 delas do baiano Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (1882-1985), que, por sua obra, é considerado um dos mais importantes escultores brasileiros de todos os tempos.

O livro, por sua vez, traz, além de ensaios de Lorenzo Mammì e Samuel Titan Jr., todo material reunido na mostra com direito a preciosidades como série de fotografias de diversos autores. Há registros da década de 1940, período em que as carrancas estavam desaparecendo, e da década seguinte, quando começaram a ser valorizadas. A edição ainda é acrescida de reportagens de época e estudos investigando a origem das peças, poema de Carlos Drummond de Andrade, que mostra o quando as carrancas fascinaram muita gente. A novidade da publicação é apresentar uma visão sobre arte popular, compreendendo esta expressão como uma das modernidades brasileiras.

Na origem da curadoria, explica Lorenzo Mammì, esteve o trabalho com o Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro, que tem procurado desenvolver olhar para os artistas populares, como artistas modernos, como autores de personalidade forte, que criaram poéticas muito singulares. “As carrancas são produções absurdamente originais, não existem em outros lugares do mundo. E nasceram no período moderno, não vêm do folclore”, observa. Lembra, inclusive, que as esculturas nascem em momento de modernização, como o surgimento de barco a vapor, do contexto que tem no Rio São Francisco uma referência.

Com relação aos artistas, Lorenzo Mammì reafirma a grandeza e a importância da obra de Mestre Guarany. “É artista que tem potência plástica impressionante”, exemplifica, chamando a atenção para a extraordinária capacidade de dar boa solução formal às peças. “Ele foi o inventor de um tipo de carranca: o leão meio homem meio animal, ora grotesco, ora cômico. São peças inventivas e de expressão popular. Mestre Guarany é um dos grandes escultores brasileiros e não só da arte popular.” Destaca Afrânio, “pela elegância e elaboração da linha” e outra peça de autor anônimo, que ele batiza de “mestre da carranca capixaba”.

Mammì recorda que o principal pesquisador das carrancas no país foi Paulo Pardal, até pouco tempo autor do único livro sobre o tema. Desafio posto, escreve o curador, é ampliar, verificar e confirmar a pesquisa de Pardal, inventariando as carrancas existentes no Brasil e no exterior, as tipologias e as contribuições de cada artista para definição do gênero. O curador considera que as carrancas navegadas “têm imponência, nobreza difícil de encontrar nas esculturas feitas para colecionadores ou turistas”. Considera que as últimas diluem a força expressiva das carrancas.

O ensaio fotográfico de Marcel Gautherot, realizado em 1946, quando as esculturas já estavam desaparecendo, tem papel importante na mostra. “A publicação delas em várias revistas, inclusive 'O Cruzeiro', cria uma nova discussão sobre arte popular e provoca uma febre de colecionismo, fazendo com que os artistas voltassem a esculpir carrancas”, observa Mammì. Atmosfera que ecoa, ainda, em descoberta do universo popular, nos anos 1950 (com Mario Pedrosa e Lina Bo Bardi), sob perspectiva da psicologia da forma, como “formatividade espontânea ou resistência à cultura massificada”, “nascida fora do universo moderno, mas com características modernas”.

A análise da arte popular, reconhece Mammì, vive um novo momento. “É preciso analisá-la a partir da história da arte, não só da sociologia ou da antropologia, buscando conhecimento menos superficial, menos episódico”, argumenta. As atenções aos artistas vêm crescendo, a produção está deixando de ser “algo de nicho”. Uma tarefa ainda a ser desenvolvida é possibilitar uma melhor inserção dos criadores das obras ditas populares na história da arte brasileira, situando-os como artistas modernos. “Temos várias modernidades e algumas delas são populares e interagem com a cultura erudita”, observa o curador, lembrando que vários autores chegaram a participar da Bienal de São Paulo.

Carrancas

As carrancas surgem por volta de 1870 nas proas de algumas barcas que navegam no trecho médio do Rio São Francisco, entre Santana do Sobradinho e Pirapora. As barcas menores, em geral, têm cavalinhos e, os maiores, leões. Se há várias esculturas que sugerem criaturas fantásticas, há outras que carregam traços mais realistas. A referência mais antiga a elas é uma litografia do século 19, publicada no livro 'Aspectos de um problema econômico', de 1909.

Mestre

Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (1882-1985) nasceu em Santa Maria da Vitória (Bahia), filho de um construtor de barcas. Desde cedo, torna-se ajudante de carpintaria e marcenaria na oficina paterna. A primeira figura de proa do artista foi “um busto de negro ou caboclo”, esculpido em 1901. Estima-se que até a década de 1940 ele tenha esculpido cerca de 80 carrancas. Além das carrancas, ele elaborou, na juventude, três altares entalhados e pequenos oratórios domésticos.

EXPOSIÇÃO E LIVRO
'A viagem das carrancas'. Exposição na Pinacoteca da Luz 2, Centro, (11) 3324-1000, São Paulo. De terça a domingo, das 10h às 18h. Entrada franca. Até 18 de outubro. Livro organizado por Lorenzo Mammì, Editora WMF Martins Fontes, 288 páginas, R$ 148.

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