ONG recolhe testemunhos de ex-militares israelenses sobre a ocupação dos territórios palestinos

Exposição da realidade em campo questiona discurso do governo e é contraponto às ações das Forças de Defesa de Israel

por Pablo Pires Fernandes Tânia Caliari 18/09/2015 11:45
RONEN ZVULUN/REUTERS - 17/7/14
Durante semanas, a Faixa de Gaza sofreu pesados bombardeios por terra, mar e ar, o que resultou na destruição de milhares de residências civis palestinas e da infraestrutura pública de várias cidades (foto: RONEN ZVULUN/REUTERS - 17/7/14)
Um grupo de pouco mais de 60 ex-soldados das Forças de Defesa de Israel (IDF na sigla em inglês) manifestou o desejo de reunir material sobre sua experiência durante o serviço militar. Era 2004 e o impasse nas negociações de paz entre israelenses e palestinos incomodava esses jovens. A ideia de ampliar o debate sobre a presença do Exército israelense nos territórios palestinos ocupados deu origem à organização não governamental Breaking the Silence (Rompendo o Silêncio). Desde então, o trabalho da ONG tem sido colher depoimentos de ex-militares a respeito da ocupação e sua tensa relação com os palestinos.

As centenas de entrevistas realizadas são submetidas a rigorosa checagem antes de ser divulgadas em livros, no site, na imprensa e em conferências. Os depoimentos levantam questionamentos morais sobre o Exército e suas práticas. Mais do que isso, expõem o dia a dia da ostensiva presença militar nos territórios ocupados, onde a população, muitas vezes, é vista como inimiga. A grande maioria dos relatos coloca em xeque as diretrizes assépticas do governo israelense ao se referir à ocupação e evidenciam que, na prática, a realidade é bem mais complexa.

No conjunto de testemunhos reunidos no livro Occupation of the territories (Ocupação dos territórios), publicado em 2010, os organizadores mostram como a intimidação da população palestina é praticada sob a chancela de “prevenção”, cuja interpretação varia conforme a circunstância, mas que, na prática pode ser traduzida como punição, dissuasão e controle. A violação de propriedades palestinas, a anexação e a expropriação, além de um rígido controle de movimento recebe do governo a justificativa de que deve haver uma separação entre as duas populações com o objetivo de se evitarem conflitos. A aplicação de leis militares, com um extenso conjunto de regras e subnormas, sobre a população civil também evidencia a dualidade do governo israelense de aplicar diferentes padrões para israelenses e palestinos.

Ao revelar práticas que violam direitos humanos dos palestinos e condutas muitas vezes questionáveis, os idealizadores da Breaking the Silence mexeram num vespeiro. Yehuda Shaul, um dos fundadores da ONG, conta que o governo faz duras condenações cada vez que a Breaking the Silence lança nova publicação. “O atual governo israelense é o mais direitista e pró-colonização desde a criação do Estado de Israel, em 1948”, conta Shaul. Na publicação sobre a Operação Barreira Protetora, como foi batizada a guerra de 50 dias em Gaza no ano passado, as críticas foram pesadas mais uma vez. “Gaza é um tema controverso em Israel e as operações em Gaza são ainda mais carregadas. Cerca de 92% dos israelenses foram a favor da Operação Barreira Protetora, portanto, criticar a operação é uma tarefa muito difícil.” Ele afirma que o governo israelense chegou a pedir à Embaixada Suíça a suspensão do financiamento da Breaking the Silence, assim como de outras ONGs de direitos humanos.

A publicação reuniu 111 testemunhos de militares israelenses que participaram dos quase 50 dias de combates. Nos depoimentos, a principal questão evidenciada é a falta de clareza na distinção entre combatentes e civis. Em alguns casos, os relatos apontam para procedimentos que violam as leis de guerra. As entrevistas também mostram o uso de força excessiva e desproporcional, o que causou a destruição de centenas de residências de Gaza com resultado bastante questionável sob o ponto de vista israelense e claramente davastador para os palestinos.

Não se sabe o quanto os testemunhos de soldados e ex-soldados irão abalar a confiança da população na IDF, instituição muito importante na sociedade israelense e historicamente referencial. O serviço militar obrigatório é considerado um tipo de ritual de passagem dos jovens israelenses para a vida adulta no país. A questão é importante. Constituída a partir de grupos civis que armados lutaram pela independência do Estado de Israel, em 1948 – episódio chamado de Nakba (catástrofe) por cerca de 750 mil palestinos que tiveram que deixar suas casas e aldeias ocupadas pelas forças israelenses para nunca mais voltar –, a IDF foi idealizada para ser uma experiência comum da juventude, um caldeirão que possibilita a convivência de judeus de várias origens e culturas que não teriam outra chance de se misturar socialmente.

A maioria dos jovens se alista aos 18 anos, com os rapazes tendo de servir por três anos e permanecer na reserva durante décadas, participando de treinamentos anuais. As garotas, que se alistam também aos 18, servem por dois anos. Não são raras as festas dadas pelas famílias quando seus jovens partem para o serviço militar. A IDF é também vista como excelente ambiente para contatos profissionais para o futuro, sobretudo entre os oficiais, nas áreas administrativas, de informática, formação de pilotos e, por que não, na política. Três dos quatro últimos primeiros-ministros de Israel entraram na política depois de uma carreira militar na IDF.

Na multiétnica sociedade israelense, os cidadãos árabes-israelenses, que representam 20% da população, não são obrigados a se alistar. A alegação oficial é que o engajamento dos jovens árabes nas forças armadas poderia colocá-los em combate contra parentes que eventualmente façam parte de exércitos de países árabes em algum conflito com Israel. A explicação para mais essa discriminação contra a população árabe pode estar também no fato de que o país queira evitar treinar militarmente uma minoria que se sente discriminada e se identifica com as privações do povo palestino sob ocupação israelense na Cisjordânia ou vivendo em campos de refugiados em outros países.

Tendo cerca de 160 mil militares na ativa, um orçamento anual de US$ 17 bilhões (5,7% do PIB em 2012), a IDF vem enfrentando crescentes desafios e pressões. O serviço militar obrigatório, por exemplo, é questionado por diferentes grupos, de direita e de esquerda, que acreditam que não faz mais sentido engajar toda a juventude na estrutura de segurança do país, sendo este o momento de transformar “o exército do povo” em uma força remunerada profissional.

Outra pressão vem da recusa dos judeus ultraortodoxos, cuja grande parte da juventude é dedicada ao estudo religioso, a servir militarmente. Muitos rabinos veem a IDF como uma instância de lavagem cerebral de seus jovens, impregnando-os com valores e comportamentos seculares e liberais. Entre os valores que figuram no código de ética da IDF há o que dita que os servidores da instituição irão usar suas armas e força apenas com o propósito de sua missão, na medida necessária, e irão manter sua humanidade mesmo durante o combate. Segundo o código, os soldados não devem usar armas e força para prejudicar os seres humanos que não são combatentes ou que são prisioneiros de guerra, e “farão tudo ao seu alcance para evitar causar danos às suas vidas, corpos, dignidade e propriedade”. Ao revelar que o cotidiano das armas pode passar longe do valor proclamado, o Breaking the Silence abala a imagem da IDF e muitos jovens podem perder o interesse em lutar com aquela farda.
 
*Tãnia Caliari é jornalista, com experiência em cobertura internacional e no conflito israelense-palestino.

(Seleção e tradução: Pablo Pires Fernandes)
 
JACK GUEZ/AFP - 10/7/14; JACK GUEZ/AFP - 17/7/14; FINBARR O'REILLY/REUTERS - 12/7/14; RONEN ZVULUN/REUTERS - 21/7/14; NIR ELIAS/REUTERS - 21/7/14
Militares israelenses recrutados para lutar na Operação Barreira Protetora, que durou quase 50 dias, em2014 (foto: JACK GUEZ/AFP - 10/7/14; JACK GUEZ/AFP - 17/7/14; FINBARR O'REILLY/REUTERS - 12/7/14; RONEN ZVULUN/REUTERS - 21/7/14; NIR ELIAS/REUTERS - 21/7/14)
TESTEMUNHOS

 
Testemunho nº 2

Unidade: Infantaria Mecanizada
Local: Deir al-Balah
Posto: Primeiro-Sargento


As regras de combate são bem idênticas. Qualquer coisa dentro (da Faixa de Gaza) é uma ameaça, a área deve ser “esterilizada”, vazia de gente – e se não vermos alguém balançando um bandeira branca, gritando “eu me rendo” ou algo assim – então ele é uma ameaça e há autorização para abrir fogo. No evento em que o prendemos e o dominamos, então alguém o despe para se certificar que não há explosivos nele.

Para obter autorização para abrir fogo é preciso que ele esteja armado ou com binóculos?
Creio que ele só precisa estar lá.

Quando você diz abrir fogo, o que isso quer dizer?
Atirar para matar. Esse é um combate em área urbana, estamos em uma zona de guerra. O dito era: 'Não há lá algo como uma pessoa que não esteja envolvida'. Nesse tipo de situação, todos lá estão envolvidos. Todo mundo é perigoso. Não há avisos especiais da inteligência do tipo tem alguém ou algum veículo branco chegando... nenhum veículo deve estar lá – se houver um, atiramos nele. Quaquer coisa que não seja “estéril” é suspeita. Houve um aviso da inteligência sobre animais. Se um animal suspeito se aproximar, atire nele. Na prática, não fazemos isso. Temos discussões a respeito se devemos ou não fazê-lo. Mas isso era só uma instrução geral. Na prática, você aprende a reconhecer os animais porque eles são os únicos que vagueiam por ali.

Durante o período em que esteve lá, você viu algum palestino armado?
Nada. Não vi um único ser humano vivo, exceto os caras do meu pelotão e alguns da Divisão Armada.


Testemunho nº 56

Unidade: Infantaria
Local: Norte da Faixa de Gaza
Posto: Primeiro-Sargento


Quais eram as regras de combate?
Se se parecer com um homem, atire. Era simples: você na porra de uma zona de combate. Poucas horas antes você entrar, toda a área era bombardeada. Se houver alguém que não se pareça claramente com um inocente, você aparentemente precisa atirar naquela pessoa.

Quem é inocente?
Se você ver que a pessoa é mais baixa do que 1,40m, ou se você ver que é uma mulher. Você pode dizer de longe. Se for homem, você atira.

Você leva em consideração a distância que ele está das tropas e se ele está armado ou não?
Sim, claro. Estou falando de curta distância, à queima-roupa. Se for de grande distância, você tem tempo de descobrir o que você está fazendo. De longe você não atira imediatamente porque você tem tempo de reportar, dizendo: Comandante, dois inimigos identificados a 400 metros, a sudeste de blá-blá-blá, abrindo fogo”. Ele responde: “Afirmativo”.

Sobre entrar em casas, existe algum protocolo organizado que é seguido?
Realmente, depende do caso, mas geralmente a ideia é usar muito fogo – isto não é a Judeia ou a Samária (como os judeus se referem à Cisjordânia) – você quer encontrar pessoas aos pedaços dentro das casas. É assim que lidamos com a situação, em poucas palavras. Além disso, frequentemente uma escavadeira blindada (D9) chega, derruba uma parede e entramos através da parede.


Testemunho nº 70

Unidade: Divisão de Gaza
Local: Norte da Faixa de Gaza
Posto: Tenente


Ao contrário das operações anteriores, você podia sentir que havia uma certa radicalização na maneira como toda a coisa era conduzida. O discurso era extremamente de direita. Os militares tinham inimigos muito claros – os árabes, o Hamas. Havia uma rigida dicotomia. Havia aqueles envolvidos [palestinos envolvidos no combate] e aqueles não envolvidos, e era isso. Mas o simples fato de que eles são descritos como “não envolvidos”, em vez de civis, e a dessensibilização sobre o crescente número de palestinos mortos de um lado – e não importa se eles estão envolvidos ou não – o insondável número de mortos de um lado, o nível de destruição inimaginável, o modo como as células militantes e as pessoas são consideradas alvos e não seres humanos – é algo que me preocupa. O discurso é racista. O discurso é nacionalista. O discurso é antiesquerdista. Era uma atmosfera que realmente me assustou muito. E isso foi de fato sentido enquanto estávamos lá dentro. Durante a operação, isso se radicaliza. Eu estava na base e uma funcionária me disse: “Sim, mostre a eles, mate-os todos”. E você diz para si próprio: “De qualquer modo, eles são só garotos, é só conversa” –, mas eles estão falando desse jeito porque alguém os permitiu falar assim. Se aquela funcionária fosse a única falando assim, eu a desconsideraria – mas quando todo mundo começa a falar desse jeito...


Testemunho nº 108

Unidade: Comando Sudeste
Posto: Não autorizado



Foi definido: Qualquer um que estivesse naquela casa estaria [automaticamente] incriminado. Qualquer um que saísse dela – incriminado. O drone estava observando de cima e, de repente, um cara sai da casa. Quer dizer, ele apareceu – mas não exatamente daquele exato local, mas surgiu na nossa visão um pouco mais adiante, então eles falaram: “Ei, ele deve ter saído daquela casa”. Houve muitas idas e vindas: “Ele veio de lá”, “ele não veio”, “incriminado”, “não incriminado”. E, de repente, outro cara aparece e a mesma coisa toda de novo. Então, eles disseram: “OK, este com certeza saiu da casa”. E tomaram uma decisão e os caras foram alvejados. Mais tarde, em um inquérito na unidade, eles perceberam que havia uma trilha que passava por lá e que eles não a tinham notado...

Uma trilha que corria pela casa.
Sim, e havia todo tipo de vegetação e coisas que estavam tipo ocultando eles e a maior parte da trilha, mas se você olhasse bem, poderia ver eles chegando por ela e passando pela casa.

A trilha seguia sob uma árvore diante da casa, mas não se originava da casa.
Exato. E quando eles olharam melhor – depois do evento, não durante o calor da missão – eles viram que ambos os homens haviam chegado por lá
.
A missão deles prosseguiu depois desse erro?
Prosseguiu. Você não para uma guerra por causa de um erro. 

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