Crisálida, uma série nacional sobre adversidades das pessoas surdas

Primeira série de ficção bilíngue, contada em Libras e português, aborda os desafios enfrentados pelos surdos em uma sociedade desenhada apenas para ouvintes

Marina Venturoli Vidal* 07/07/2021 07:58
A produção brasileira Crisálida se propõe a abordar sobre a realidade e os desafios enfrentados pelos surdos em uma sociedade desenhada apenas para ouvintes. É a primeira série de ficção dramática e bilíngue, contada em Libras e português.
 
Criada em 2014 por Alessandra de Rosa Pinho, na época estudante de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, Crisálida já recebeu o Prêmio Catarinense de Cinema. A primeira temporada estreou em setembro de 2019, na TV Cultura, e teve uma excelente repercussão. Em maio de 2020, a série entrou no catálogo da Netflix, no Brasil e em Portugal.
 
 Marcos Sousaprofessor de Libras da PUC Minas, é surdo e relatou seus sentimentos ao ver a série. “Achei decepcionantemente realista demais. É triste, mas é exatamente assim nosso ‘mundo’. Os diretores e produtores parecem conhecer com profundidade nossa realidade”. 
 
“Do meu ponto de vista a representação da comunidade surda brasileira foi justa, realista e abrangente. Há pessoas surdas no país em situações mais extremas, frequentemente sem condições adequadas de sobrevivência e sequer uma língua para se comunicar, mas não é possível expressar a magnitude da diversidade do mundo em apenas uma série”, afirmou.
 
A série é filmada em Florianópolis e aborda vários preconceitos e estereótipos que envolvem as pessoas surdas. Um deles se refere às terminologias. Na visão da cultura surda, são considerados pejorativos termos como surdo-mudo e deficiente auditivo. 

"Achei decepcionantemente realista demais. É triste, mas é exatamente assim nosso 'mundo'. Os diretores e produtores parecem conhecer com profundidade nossa realidade"

Marcos Souza, professor de Libras da PUC Minas



“O mito mais famoso é que todo surdo seja mudo, porém é bem raro que uma pessoa surda seja muda, são deficiências diferentes e não ocorrem concomitantemente. O aparelho fonoarticulatório dos surdos é preservado. O que ocorre – na perspectiva de uma fala ‘oral’ - é que o surdo dificilmente domina as línguas orais por não ter um feedback auditivo, mas dispõe deste potencial e pode ser treinado com um profissional. Na perspectiva de uma língua de sinais, os surdos sequer são surdos, nesta língua de modalidade visual gestual, são capazes de falar e ‘ouvir’ normalmente”, informou o professor Marcos Sousa.



De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) divulgados em 2020, mais de 10 milhões de pessoas têm algum problema relacionado à surdez. Ou seja, cerca de 5% da população é surda.

Língua não universal

Outro mito sobre os surdos é a língua de sinais ser universal. “Em um mundo com mais de 6 mil línguas, esperar que os surdos tenham uma língua universal é absurdo. É diferente em cada país, embora – assim como ocorre com as línguas orais - mais de um país possam compartilhar uma mesma língua de sinais, atualmente são conhecidas 150 línguas de sinais e nenhuma delas é dependente ou vinculada a línguas orais”, constatou Sousa.

A língua de sinais utiliza o campo visual e espacial, diferente da língua oral que utiliza o campo oral e auditivo. Por isso, a expressão facial é muito importante, por meio dela é possível transmitir emoções e conceitos abstratos. E o alfabeto manual é um recurso usado para escrever nomes próprios ou de objetos que não tenham um sinal representativo na Libras. Para cada palavra e substantivo, há um sinal específico.

Proposta de difundir a Libras

Na série, todos os personagens estão conectados por uma aula de Libras na Universidade Federal de Santa Catarina. A importância de ter a disciplina de Libras se deve, entre outras razões, à oportunidade de conhecer a história da população surda, sua cultura, identidade e, principalmente, sua língua.

Todos esses conceitos são trabalhados em Crisálida, uma vez que a série se propõe a difundir a língua de sinais para deixar de ser restrita aos surdos e assim, promover inclusão.

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“Uma das reivindicações mais antigas da comunidade surda é a visibilidade. Uma série desta magnitude com um carimbo de uma empresa como a Netflix é um grande passo para colocar a comunidade em evidência, chamando atenção das autoridades e criando espaço para potenciais ações afirmativas. Outra contribuição, ao colocar os surdos e seu cotidiano nas lentes da população, concorre para a diminuição do receio e preconcepções que a sociedade tende a formar sobre o sujeito surdo e sua realidade”, relatou o professor. 

A segunda temporada da série foi contemplada no Prêmio Catarinense de Cinema 2019 e está com produção prevista para meados de 2021, sujeito a alteração devido ao andamento da pandemia de COVID-19.
 

Entrevista com Marcos Sousa, professor de Libras da PUC Minas

Você acredita que a série aborda a realidade da comunidade surda brasileira?
“Considero que a série foi autêntica, tendo o devido cuidado de analisar de forma abrangente a realidade da Comunidade Surda no país. Evidente que não é possível abordar todos aspectos de todos grupos sociais, porém considero a série extremamente verossímil, representando aspectos mais significativos”.
 
Arquivo Pessoal
Marcos Sousa, professor de LIBRAS da PUC Minas (foto: Arquivo Pessoal)

A série ajuda a desmistificar alguns mitos em relação a comunidade surda?
“Certamente, a série humaniza os surdos, os representa como são de verdade, seres humanos como quaisquer outros, com suas questões, conflitos, paixões, sonhos. Mas também por ser bilíngue, permite que o público entenda os conteúdos e temáticas abordados pelos surdos, percebendo que não são diferentes da população em geral. Em especial acho interessante as questões familiares abordadas, muito autênticas, a rejeição de um dos pais é frequente nas narrativas dos sujeitos surdos. Outra questão bem representada no personagem do surdo gay é quando o surdo faz parte de mais de uma minoria estigmatizada, é discriminado “em dobro”. O desprezo profissional, intelectual é comum, raramente se credita ao surdo a autoria ou se associa a ele o potencial intelectual comum a qualquer ser humano”.
 
Qual a importância de pessoas ouvintes aprenderem libras? 
“Há uma visão bem estabelecida que que a LIBRAS tem o propósito apenas de comunicar com uma pessoa surda, apesar de já ser uma língua bastante disseminada no país graças à legislação de acessibilidade e aquela voltada para as questões específicas dos surdos, como o decreto 5626/2005. Para além da comunicação com surdos, há muita utilidade prática para uma língua de sinais. Listo abaixo algumas:

  • Pode ser utilizada com eficiência debaixo da água sem a necessidade de qualquer dispositivo de comunicação, seja para mergulhadores amadores ou profissionais;
  • Permite a comunicação à distância, através de janelas ou vidros, em casas ou prédios, para grandes distâncias basta utilizar um binóculo, não é necessário gritar ou telefonar;
  • Ótima comunicação em locais ruidosos e barulhentos, seja no meio de um show ou em um estúdio de gravação, inclusive podendo um interlocutor servir de “teleprompter” do locutor principal, passando informações sem a necessidade de utilizar equipamentos de áudio e fones de ouvido;
  • Pode ser utilizada com fins de segurança ou até mesmo militares, para conversas em silêncio, ou entre espiões, é uma língua à prova de “escutas” (desde que não tenham câmeras), pessoas podem conversar em total sigilo em uma sala fechada;
  • É possível manter uma conversa enquanto comemos sem incorrer na falta de educação falando de boca cheia;
  • Fiscais de concursos deveriam aprender LIBRAS com urgência pois é uma ótima comunicação para passar cola discretamente;
  • A maioria dos sinais é monomorfêmica, isto torna a comunicação em Língua de Sinais frequentemente muito mais rápida que em língua oral, tornando-a excelente para comunicados rápidos – partidos políticos com pouco tempo no horário eleitoral, por exemplo, como o famoso candidato Enéas Carneiro (1938-2007), teriam dito frases bem mais longas;
  • É uma comunicação significativa com várias espécies de animais (incluindo o ser humano, uma espécie animal), e pela sua modalidade visual e gestual, estimula e aprimora as habilidades motoras e acuidades visuais;
  • Comunicação excelente para surdocegos, com alguma prática pode ser facilmente percebida pelo tato. Além disto, mesmo que a pessoa disponha somente de uma mão, ainda poderá se comunicar de forma abrangente, é uma língua difícil de limitar;
  • Por utilizar de forma abrangente o corpo inteiro como articulador das palavras, é uma ótima língua para artes cênicas, extremamente expressiva. O teatro e a poesia em LIBRAS são deslumbrantes e pouco explorados pelos não usuários desta língua;
  • O alfabeto manual utilizado pela maioria das línguas de sinais, embora tenha funções restritas (é utilizado para nomes próprios e algumas palavras), por exigir a prática de soletração contínua, contribui para melhoria da ortografia da língua oral”.

Qual o impacto da série para os surdos?
“Certamente os surdos se identificarão com muitos aspectos da série, serão afetados pela autenticidade do enredo rememorando suas vivências pessoais, mas acredito que o principal é que comemorarão (na verdade foi bem divulgado entre os surdos quando ainda estava em produção, já estão comemorando) a visibilidade da mesma”.
 
O que você gostaria de ver na segunda temporada? 
“Seria interessante que abordassem os movimentos políticos dos surdos nas últimas duas décadas pois foram períodos de intensa atividade que culminaram na aprovação de diversas leis hoje em vigor”.

(*) Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Alves

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