O mundo líquido: doenças infecciosas e inundações

Em um mundo onde a informação anda mais rápido que os vírus, as medidas preventivas implantadas mais precocemente podem evitar grandes catástrofes

REUTERS/Eloy Alonso
Os temas abordados por Zygmunt Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana dos homens e mulheres comuns (foto: REUTERS/Eloy Alonso )
Na semana anterior apresentamos o olhar de Jano para o passado e futuro na perspectiva de uma nova epidemia, que vem avançando sob a população chinesa num ritmo de 3 a 5 mil pacientes infectados por dia. O número de mortos ja passa de 600 pessoas. 
Entretanto, como venho chamando atenção, num mundo onde a informação anda mais rápido que os vírus, as medidas preventivas implantadas mais precocemente podem evitar grandes catástrofes. Vantagens do mundo liquido descrito pelo  sociólogo humanístico Zygmunt Bauman .

Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade", por suas reflexões sobre as condições do mundo da "modernidade líquida", os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana dos homens e mulheres comuns.

Ele define a pós-modernidade como a modernidade sem ilusões, onde tudo está sempre a ser permanentemente desmontado,  sem perspectiva alguma de permanência. 

Tudo é temporário. É por isso que Bauman sugere a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades.

Enquanto no passado isso se fazia para ser novamente "re-enraizado", agora, as coisas todas -empregos, relacionamentos, know-hows etc.- tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desregulados, flexíveis. 

Exatamente, por isto vejo as doenças infecciosas, particularmente os vírus, como grandes transgressores da ordem estabelecida, em todos os sentidos. 

A humanidade surgiu na África e  colonizou o planeta, fugindo de doenças, fome, guerras e outras intempéries. 

As doenças infecciosas influenciaram nosso estilo de vida desde sempre. A peste no século XIV, por exemplo,  fez com que o homem mudasse a sua forma de ver o mundo, sendo a mola propulsora do  Renascimento no século XV, o qual revolucionou os meios de produção, as artes e a ciência.

Assim como nos mobilizamos  para espantar a mosca que pousa em nossa sopa, os vírus, fungos, bactérias e intempéries nos fazem rever nosso estilo de vida, hábitos, meios de produção, relações comerciais e humanísticas. 

A natureza nos impõe a evolução, de uma maneira ou de outra. Entretanto, num mundo literalmente líquido, onde chuva e cerveja são uma ameaça real, como podemos nos proteger contra as doenças infecciosas dos dias atuais ?! Pois bem, este é o assunto de hoje desta coluna.

Em relação a cerveja, não se trata de uma doença infecciosa, mas de uma intoxicação inusitada, jamais descrito na literatura científica mundial. 

Problema identificado, ainda não explicado, tem prevenção óbvia;- basta evitar , neste momento, ingerir cervejas da marca relacionada a intoxicação. Acredito que muita água ainda deve passar debaixo desta ponte...

Em relação às inundações a situação é bem mais complexa. As mudanças climáticas e o aquecimento global são uma realidade. É verdade que tromba d”água sempre ocorreu, como diria o meu avô Lozico. Mas, as de agora, afetam pobres e ricos. Ainda de forma diferente, mas causam danos para todos. Matam mais, claro,  aqueles que sempre foram as grandes vítimas e vivem em condições insalubres e vulneráveis  desde sempre. 

Entretanto, as enchentes lavam também os nossos olhos e tornam evidentes as necessidades de rever a estrutura urbana e social em que vivemos. Construções antigas e novas necessitam ser revistas sob o prisma da visão sociológica de Bauman. 

Certa feita, um famoso arquiteto de Los Angeles estava se propondo a construir casas que permanecessem lindas "para sempre". Ao ser questionado sobre o que queria dizer com isso, ele teria respondido: até daqui a 20 anos! Isso é hoje "para sempre", grande duração. O que nos interessa é, portanto, tentar compreender quais as consequências dessa situação para a lógica do indivíduo, e para a população em seu cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido. 

Vivemos em cidades seculares hoje! Onde viviam 20 mil pessoas, vivem hoje 5 a 10 milhões. No futuro próximo(cem anos no mínimo) nossos netos irão nos criticar por pensarmos de forma tão egoísta e ficarmos apenas a tapar buracos nas ruas, sem revermos todos os lados do problema.  Mais uma vez , Jano nos convida a refletir sobre o que fizemos e o que temos feito dos impostos que pagamos. 

Não é admissível fazermos e desfazermos obras públicas sem olharmos pelo menos 100 anos a diante. Particularmente, sem considerarmos a estrutura urbana de hoje, onde Aedes, pombos, ratos , e esgotos a céu aberto ameaçam o cidadão em seu dia-dia. As enchentes apenas trazem a superfície as mazelas de nosso passado sombrio de corrupção de obras super faturadas e feitas com o conceito de um mundo líquido de mandatos de 4 a 8 anos.

Mas, a realidade do momento é que ao olhar pela janela, percebo o tempo fechando. Lá vem pé d”água! O que fazer para nos protegermos das doenças infecciosas associadas a enchentes e inundações?

Em situações de desastres, como inundações, há uma demanda natural da população por medidas que possam minimizar os efeitos e os riscos decorrentes. Em resposta, não raro, vê-se - por alguma razão, não muito clara - o estabelecimento de "campanhas" de imunização e, por vezes, tentativas de distribuição de medicamentos "profiláticos" para as populações atingidas.

Essas medidas, além de tecnicamente incorretas, são improdutivas e desviam recursos e força de trabalho das ações que realmente são efetivas. Além disso, podem dar à população uma falsa sensação de segurança, levando-a a não observar regras básicas de higiene e a não procurar rapidamente as Unidade Básicas de Saúde em caso de adoecimento. As ações para minimizar os riscos de  infecções e de suas possíveis consequências devem ser imediatas e efetivas. É essencial que as populações atingidas tenham acesso a: 
  • Informações corretas e adequadas
  • Água tratada e alimentos em condições adequadas para consumo
  • Serviços básicos de saúde em funcionamento pleno
  • Medicamentos que eventualmente sejam necessários
  • Abrigo em locais seguros
As inundações aumentam os riscos de aquisição de doenças infecciosas transmitidas pela água contaminada através de  contato ou  ingestão, como leptospirose, hepatite A, hepatite E, doenças diarreicas (Escherichia coli, Shigella, Salmonella) e, em menor grau,  febre tifóide e cólera. As chuvas, e não as inundações, podem também facilitar a ocorrência de dengue, uma vez que o acúmulo de água relativamente limpa em qualquer recipiente (vasos de plantas, latas, pneus velhos etc.) permite a proliferação do Aëdes aegypti. 

A leptospirose, a hepatite A , hepatite E, as doenças diarreicas e a  febre tifóide ocorrem mais comumente em áreas onde a infra-estrutura de saneamento básico é inadequada ou inexistente. Podem ser adquiridas pela ingestão de água e alimentos contaminados pelas inundações (leptospirose , hepatite A, hepatite E, doenças diarreicas, febre tifóide e cólera) ou através do contato direto das pessoas com a água e a lama das enchentes (leptospirose). 

A leptospirose é causada por uma bactéria, a Leptospira interrogans, que é eliminada através da urina de animais, principalmente o rato de esgoto, e sobrevive no solo úmido e na água.  As inundações facilitam o contato da bactéria com seres humanos. A Leptospira interrogans pode penetrar no organismo através do contato da pele e de mucosas com a água e a lama das enchentes. A infecção também pode ocorrer por ingestão, uma vez que as inundações podem contaminar a água de uso doméstico e os alimentos. 

As manifestações, quando ocorrem, aparecem entre 2 e 30 dias após a infecção. A distribuição indiscriminada de antibióticos para a população como profilaxia da leptospirose é tecnicamente inadequada. Além de ser ineficaz para evitar ou controlar epidemias, desvia inutilmente recursos humanos e financeiros. É mais racional diagnosticar e tratar precocemente os casos suspeitos. As manifestações iniciais da leptospirose são clinicamente indistinguíveis das do dengue. 

A hepatite A é causada por um vírus. A transmissão do vírus da hepatite A é fecal-oral, e pode ocorrer por meio da ingestão de água e alimentos contaminados ou diretamente de uma pessoa para outra. A infecção é muito comum onde o saneamento básico é deficiente ou não existe, mesmo sem a ocorrência de inundações. Como consequência, a maioria da população dessas áreas foi infectada quando criança e tem imunidade contra a doença. Em crianças, a hepatite A é frequentemente assintomática ou tem manifestações discretas.

A vacinação contra a hepatite A, que ainda tem custo elevado, é feita com duas doses, observando-se um intervalo de seis meses entre elas. Poderá ser mais útil quando for introduzida no esquema básico de imunização da infância. A hepatite E, para a qual ainda não existe vacina disponível, tem  transmissão e evolução semelhantes às da hepatite A, porém está mais associada a inundações. A hepatite B é transmitida por relações sexuais e por transfusões de sangue. A vacinação produz imunidade apenas após a aplicação de três doses, que são feitas ao longo de seis meses. 

Portanto, a vacinação contra a  hepatite B  não é procedimento útil em caso de enchentes. 

A febre tifoide é uma doença causada pela Salmonella typhi, uma bactéria que é adquirida através da ingestão de água e alimentos contaminados. Durante as inundações não parece haver risco significativo de epidemias, uma vez que para ocorrer infecção é necessário a ingestão de uma grande quantidade (inoculo) de bactérias (possivelmente  há uma "diluição" durante inundações).

Pode haver contudo, contaminação de poços, sistemas de abastecimento e de alimentos, com subsequente proliferação bacteriana possibilitando a ocorrência de casos. As vacinas (injetável ou oral) contra a febre tifóide conferem apenas proteção transitória em 40-90% das pessoas e não estão indicadas para evitar a ocorrência de epidemias. A profilaxia mais efetiva é feita através do tratamento correto da água e da preparação adequada de alimentos. 

O tétano é causado pela contaminação de ferimentos com o Clostridium tetani, uma bactéria  que é encontrada normalmente no ambiente (solo, esterco, superfície de objetos). Os transtornos causados pelas enchentes (remoção de entulhos e lama etc.) podem ser fatores facilitadores para ferimentos. Pode parecer que a vacinação em massa contra o  tétano é uma medida útil. Não é. Ao contrário, pode criar uma falsa sensação de segurança. Uma pessoa que nunca tenha sido vacinada não ficará imunizada contra o tétano com apenas uma dose. 

A profilaxia do tétano será feita mais adequadamente em uma Unidades de Saúde, uma vez que envolve cuidados com o local do ferimento e depende da história de vacinação. Se o indivíduo nunca tiver sido vacinado ou estiver com o esquema vacinal incompleto, o que é o caso de grande parte da população adulta, pode ser necessário que, dependendo do tipo de ferimento, além dos cuidados com o local do ferimento e da vacina, receba também imunização passiva (imunoglobulina antitetânica ou, na sua falta, soro antitetânico). Em adultos não vacinados, o esquema completo é feito com três doses. A vacina deve, portanto, estar disponível nas Unidades de Saúde, onde o risco de tétano poderá ser corretamente avaliado. 

Em abrigos, o cuidado com a higiene deve ser redobrado. Nestes locais, o contato próximo das pessoas favorece a transmissão de doenças diarreicas virais e bacterianas, além de infecções respiratórias. Uma das mais frequentes infecções que acometem principalmente as crianças em acampamentos de refugiados e abrigos é o Sarampo. Nestas situações é praticamente impossível  obter certificado de vacinação das vítimas. Portanto, dependendo da epidemiologia local e status vacinal da população, revacinar é prudente.

Na próxima semana voltaremos ao nosso tema Infecções Hospitalares, espero.