As reflexões de Jano

A recente epidemia de coronavírus deixa claro que hábitos e costumes de um povo podem colocar em risco a saúde de todo planeta

AFP / Philippe LOPEZ
(foto: AFP / Philippe LOPEZ )
Nas últimas semanas, começamos uma discussão sobre as infecções hospitalares. Entretanto, as emergências internacionais e locais nos atropelaram. Além de uma intoxicação coletiva por uma das cervejas mais apreciadas pelos mineiros, especialmente os belorizontinos, tempestades tropicais jamais vistas inundaram o ano novo e encerraram os sonhos de mais de 50 pessoas. Para completar, a perspectiva de uma nova epidemia de âmbito global, coloca o planeta de joelhos.

Janeiro é um mês especial. Homenageia Jano, um Deus da mitologia romana, que tem duas faces. Uma olha para o passado e a outra para o futuro, podendo ser interpretado como o olhar que leva em consideração todos os aspectos de uma mesma realidade.

Em textos anteriores desta coluna, estimulamos o olhar Janico para os diversos problemas abordados. Identificamos a epidemiologia como um instrumento de gerar consciência social e desnudar a fragilidade do planeta frente aos problemas gerados por um modelo de desenvolvimento predatório, irracional e medieval.

A recente epidemia de coronavírus deixa claro que hábitos e costumes de um povo podem colocar em risco a saúde de todo planeta. Isto nos remete a uma profunda reflexão sobre o papel do conhecimento científico na transformação cultural dos povos. Traduzir o conhecimento científico e transformá-lo em sabedoria popular é o desfio que temos pela frente. Exatamente por isto, aceitei o honroso convite para fazer esta coluna e também atendo às solicitações de todos os órgãos de imprensa que me procuram. Tendo estudado durante 95% da minha vida em escola pública, isto é o mínimo que tenho obrigação de fazer para retribuir o que a população me proporcionou.

As inundações provocadas pelas chuvas de Janeiro nos fazem olhar para o que fizemos dos córregos e rios que cortam os belos horizontes. Ao escondê-los debaixo de concreto e asfalto, sonegamos aos olhos da população a precariedade de nossa rede de saneamento básico.

A ocupação desordenada do espaço urbano e as desigualdades sociais compõem o cenário perfeito da tragédia anunciada. Num primeiro momento morrem os soterrados. Na sequência, adoecem aqueles que tiveram contato com a lama infectante misturada a esgoto. Estudos revelam que tragédias matam pessoas durante vários meses após sua ocorrência.

Quanto mais miserável uma região, piores são as perspectivas a médio e longo prazo.
AFP / Alex McBride
(foto: AFP / Alex McBride )

Mas, e olhar de Jano para o futuro? Haverá futuro?

Claro que sim! Afinal, se sobrevivemos à inquisição, duas grandes guerras mundiais, regimes totalitários, corrupção desenfreada, etc; não vale parar por aqui. Como diz o professor Mario Sergio Cortella, todo pessimista é um preguiçoso disfarçado de realista.

Temos muito a fazer e não vale fraquejar hora nenhuma. Se a cerveja está contaminada, melhoremos a fiscalização e os critérios de produção. Se temos uma epidemia a enfrentar, ciência e informação são antídotos fundamentais.

Se inundou, limpemos o mal feito e façamos melhor.

Para contribuir com a difusão de informação de qualidade, reproduzirei aqui uma serie de perguntas e respostas mais formuladas aos infectologistas da Sociedade Brasileira de Infectologia. Certamente, muitas desta respostas devem mudar ao longo da evolução do conhecimento que virá nos próximas dias, semanas e meses. Mas hoje é o que sabemos deste vírus e seu comportamento.

O que são coronavírus?

Os coronavírus (CoV) compõem uma grande família de vírus, conhecidos desde meados da década de 1960, que receberam esse nome devido às espículas na sua superfície, que lembram uma coroa (do inglês crown). Podem causar desde um resfriado comum até síndromes respiratórias graves, como a síndrome respiratória aguda grave (SARS, do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome) e a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS, do inglês Middle East Respiratory Syndrome). Os vírus foram denominados SARS-CoV e MERS-CoV, respectivamente.

O que é este novo coronavírus?

Trata-se de uma nova variante do coronavírus, denominada 2019-nCoV, até então não identificada em humanos. Até o aparecimento do 2019-nCoV, existiam apenas seis cepas conhecidas capazes de infectar humanos, incluindo o SARS-CoV e MERS-CoV. Recomendamos evitar os termos “nova gripe causada pelo coronavírus” porque gripe é uma infecção respiratória causada pelo vírus influenza.

Como este novo coronavírus foi identificado?

O novo coronavírus foi identificado em investigação epidemiológica e laboratorial, após a notificação de casos de pneumonia de causa desconhecida entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020, diagnosticados inicialmente na cidade chinesa de Wuhan, capital da província de Hubei. Centenas de casos já foram detectados na China. Outros casos importados foram registrados na Tailândia, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Vietnã, Cingapura, Arábia Saudita e Estados Unidos da América; todos estiveram em Wuhan.

Qual a origem do surto atual?

A origem ainda não está elucidada. Acredita-se que a fonte primária do vírus seja em um mercado de frutos do mar e animais vivos em Wuhan.

Os coronavírus podem ser transmitidos de animais para humanos?

Sim. Investigações detalhadas descobriram que o SARS-CoV foi transmitido de civetas (gatos selvagens) para humanos na China, em 2002, e o MERS-CoV de dromedários para humanos na Arábia Saudita, em 2012. Porém, existem vários coronavírus que causam infecção animal. Na maioria, infectam apenas uma espécie ou algumas espécies intimamente relacionadas, como morcegos, aves, porcos, macacos, gatos, cães e roedores, entre outros.

A transmissão do coronavírus acontece entre humanos?

Sim. Alguns coronavírus são capazes de infectar humanos e podem ser transmitidos de pessoa a pessoa pelo ar (secreções aéreas do paciente infectado) ou por contato pessoal com secreções contaminadas. Porém, outros coronavírus não são transmitidos para humanos, sem que haja uma mutação. Na maior parte dos casos, a transmissão é limitada e se dá por contato próximo, ou seja, qualquer pessoa que cuidou do paciente, incluindo profissionais de saúde ou membro da família; que tenha tido contato físico com o paciente; tenha permanecido no mesmo local que o paciente doente.

Há transmissão sustentada do novo coronavírus?

Até agora, não há evidências. Está limitada a grupos familiares e profissionais de saúde que cuidaram de pacientes infectados. Também não há evidências de transmissão de pessoa a pessoa fora da China, mas isso não significa que não aconteça.

Qual é o período de incubação desta nova variante do coronavírus?

Ainda não há uma informação exata. Presume-se que o tempo de exposição ao vírus e o início dos sintomas seja de até duas semanas.

Quais são os sintomas de uma pessoa infectada por um coronavírus?

Pode variar desde casos assintomáticos, casos de infecções de vias aéreas superiores semelhante ao resfriado, até casos graves com pneumonia e insuficiência respiratória aguda, com dificuldade respiratória. Crianças de pouca idade, idosos e pacientes com baixa imunidade podem apresentar manifestações mais graves. No caso do 2019-nCov, ainda não há relato de infecção sintomática em crianças ou adolescentes.

Como ocorre o contágio e qual é a gravidade do novo coronavírus?

Não se sabe até o momento. Alguns vírus de transmissão aérea são altamente contagiosos, como o sarampo, enquanto outros são menos. Ainda não está claro com que facilidade o 2019-nCoV é transmitido de pessoa para pessoa. Até que tenhamos esta informação mais acurada, recomenda-se que as precauções e isolamentos sejam adotados. Quanto à gravidade, devemos acompanhar a evolução da epidemia. Pelos dados iniciais publicados, a estimativa inicial é de que a letalidade seja em torno de 3% (26 mortes em 912 casos), inferior à do SARS-CoV e do MERS-CoV.

Como é feita a confirmação do diagnóstico do novo coronavírus?

Exames laboratoriais realizados por biologia molecular identificam o material genético do vírus em secreções respiratórias.

Existe um tratamento para o novo coronavírus?

Não há um medicamento específico. Indica-se repouso e ingestão de líquidos, além de medidas para aliviar os sintomas, como analgésicos e antitérmicos. Nos casos de maior gravidade com pneumonia e insuficiência respiratória, suplemento de oxigênio e mesmo ventilação mecânica podem ser necessários.

Como reduzir o risco de infecção pelo novo coronavírus?

Evitar contato próximo com pessoas com infecções respiratórias agudas;
Lavar frequentemente as mãos, especialmente após contato direto com pessoas doentes ou com o meio ambiente e antes de se alimentar;
- Usar lenço descartável para higiene nasal;
- Cobrir nariz e boca ao espirrar ou tossir;
- Evitar tocar nas mucosas dos olhos;
- Higienizar as mãos após tossir ou espirrar;
- Não compartilhar objetos de uso pessoal, como talheres, pratos, copos ou garrafas;
- Manter os ambientes bem ventilados;
- Evitar contato próximo com animais selvagens e animais doentes em fazendas ou criações.

Existe uma vacina para o novo coronavírus?

Como a doença é nova, não há vacina até o momento.

Tomei a vacina contra a gripe. Estou protegido contra o novo coronavírus?

Não. A vacina da gripe protege somente contra o vírus influenza.

Estão contraindicadas as viagens para a China e para os países com casos importados?

Com base nas informações atualmente disponíveis, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomenda restrição de viagens ou comércio. Devemos acompanhar as recomendações, que são dinâmicas e podem mudar de um dia para outro.

Temos casos do novo coronavírus no Brasil?

Até o presente momento, temos apenas casos suspeitos de pessoas que vieram da China, particularmente da cidade de Wuhan e apresentaram sintomas respiratórios.

Qual é a definição de caso suspeito?

Febre acompanhada de sintomas respiratórios, além de atender a uma das duas seguintes situações: ter viajado nos últimos 14 dias antes do início dos sintomas para área de transmissão local (cidade de Wuhan)  ou ter tido contato próximo com um caso suspeito ou confirmado (mudou, viajado para a China, passou a ser o critério). Febre pode não estar presente em casos de alguns pacientes, como idosos, imunocomprometidos ou que tenham utilizado antitérmicos.

Qual é a orientação diante da detecção de um caso suspeito?

Os casos suspeitos devem ser mantidos em isolamento enquanto houver sinais e sintomas clínicos. Paciente deve utilizar máscara cirúrgica a partir do momento da suspeita e ser mantido preferencialmente em quarto privativo. Profissionais da saúde devem utilizar medidas de precaução padrão, de contato e de gotículas (máscara cirúrgica, luvas, avental não estéril e óculos de proteção). Para a realização de procedimentos que gerem aerossolização de secreções respiratórias, como intubação, aspiração de vias aéreas ou indução de escarro, deverá ser utilizada precaução por aerossóis, com uso de máscara profissional PFF2 (N95). Estas são as recomendações atuais do Ministério da Saúde.

Há risco de epidemia global?

Sim, mas não há motivo para pânico neste momento. O Comitê de Emergência da OMS anunciou que é cedo para declarar a situação como emergência em saúde pública de interesse internacional neste momento, devido ao número limitado e localizado de casos e pelas medidas que já estão sendo tomadas para que o surto não se espalhe .(Em 30 de janeiro de 2020 a OMS declarou situação de Emergência em Saúde Publica Internacional)

FONTES: Ministério da Saúde do Brasil / Organização Mundial da Saúde (OMS) / Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).
*Documento elaborado pelos médicos infectologistas da Sociedade Brasileira de Infectologia:
Dr. Leonardo Weissmann, Dra. Tânia do Socorro Souza Chaves, Dr. Clóvis Arns da Cunha e Dr. Alberto Chebabo.