Johann Sebastian Bach: Um curandeiro na sua era e por que não agora também?

Nesse momento de incertezas do coronavírus, minha humilde contribuição para alívio do sofrimento e sem contraindicações é apagar a luz, fechar os olhos e ouvir a magia transcendente da música de Bach

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(foto: Wikimedia Commons)

Em coluna de meses atrás no início de dezembro de 2019, antes de passarmos por essa loucura de epidemia que tem transformado nossas vidas de cabeça para baixo, escrevi sobre um grande aumento nas pesquisas sobre os efeitos da artes na saúde e no bem-estar.

Um relatório publicado em 2019 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) se concentrou no papel das artes no apoio ao manejo ou tratamento de doenças com resultados de mais de 3000 estudos identificando um papel importante das artes na prevenção de problemas e promoção da saúde e no gerenciamento e tratamento de doenças ao longo da vida.

Vou falar de algo que não vai curar a pandemia mas pode amenizar as mazelas da alma e espírito. Lembrei também de uma ótima revisão que tinha lido em 2019 sobre o potencial “efeito curativo” da música de Bach em uma seção Beyond science (além da ciência) em revista científica cardiológica.

Como na época atual de pandemia COVID-19, os tempos eram difíceis no início do século XVIII nos estados que agora conhecemos como Alemanha. Eram anos com guerras e epidemias devastando as terras e o povo. A mortalidade infantil era tragicamente alta. Na época existiam poucos medicamentos ou terapias eficazes. Doenças que nós hoje podemos prevenir com vacinação e controlar prontamente com remédios modernos naquela era levavam à morte prematura, desafios à saúde e incapacidade crônica. Em uma era antes de antibióticos, antidepressivos e psicoterapia, muitos buscavam consolo no serviços na igreja aos domingos.

O músico Johann Sebastian Bach (1685-1750), de família luterana, desempenhou vários cargos em cortes e igrejas alemãs, mas suas funções mais destacadas foram a de chantre (mestre do coro) da Igreja de São Tomás e diretor musical da cidade de Leipzig, onde desenvolveu a parte final e mais importante de sua carreira.

No prodigioso período de produtividade no início da década de 1720, fez mais de 2 ciclos anuais de cantatas da igreja para desempenho durante os cultos semanais de domingo. As cantatas são um tipo de composição vocal, para uma ou mais vozes, com acompanhamento instrumental, às vezes também com coro, de inspiração religiosa ou profana, contendo normalmente mais de um movimento e cujo texto, em vez de ser historiado, descrevendo um fato dramático qualquer, é lírico, descrevendo uma situação psicológica.

Perto de 200 cantatas da igreja de Bach sobreviveram, a maioria composta apenas nos primeiros 2 anos como o musico de Leipzig (veja abaixo o vídeo da Cantata 147 - Jesus alegria dos homens, composta em 1716) . O texto e as mensagens desses interlúdios musicais correspondiam a sermão predicado pelo calendário da igreja para o particular “Domingo de Performance”.


Estes trabalhos foram compostos por uma série de números musicais que juntos geralmente duravam de 20 a 30 minutos. Muitos dessas peças começavam apontando um problema, geralmente um dilema humano de fé ou com muita frequência confrontando sofrimento, dificuldades, angústia mental, doença ou morte, conforme ditado pela leitura da Bíblia naquele dia.

As peças seguiam seu caminho, geralmente tortuoso e culminavam em um tipo de resolução, reconciliação ou renúncia. Os números musicais incluem árias (cantadas por um ou alguns solistas), conectadas por recitativos e ariosos (comentários mais parecidos com a fala). As cantatas de igreja de Bach geralmente terminavam com um coral simples e muito familiar à congregação desde a infância, mas harmonizados por Bach com habilidade e variedade inigualáveis. O coral, portanto, proporcionava uma maneira de fechamento e conforto e servia como pontuação para a jornada emocional e espiritual daquela comunidade. Bach trabalhava com uma variedade de libretistas que escreviam a poesia litúrgica relevante para a lição do sermão daquele domingo em particular. Os melhores textos permitiram a Bach alcançar uma união sublime entre as palavras, música e emoção.

Dado o contexto histórico e litúrgico, não surpreende que o sofrimento e a preocupação com a morte jorravam das cantatas de Bach na igreja. A maioria dos congregantes, como o próprio Bach, provavelmente tiveram experiências pessoais próxima com a perda precoce de pais, filhos e cônjuge. Morte e luta diária com doença eram comuns. Bach ficou órfão de pai e mãe com a idade de 10 anos e foi criado pelo irmão mais velho. Perdeu também sua primeira esposa e, embora ele tenha tido 20 filhos, apenas metade sobreviveu à idade adulta. 

Sendo assim, nesse momento de incertezas e falta de medicamentos com comprovação cientifíca sólida contra o coronavírus, mesmo com todo esforço hercúleo nos hospitais e CTIs, minha humilde contribuição para alívio do sofrimento, o que posso recomendar para nos aliviar dessa pandemia e que eu lhes asseguro não tem contraindicação ou efeito colateral é apagar a luz, fechar os olhos e colocar para ouvir a magia transcendente da música de Bach.

Em nossas interações com pacientes como médicos, hoje nos esforçamos para combinar nossa arte médica com tranquilidade e incentivo. Bach mantêm sua capacidade de envolver seu público há mais de 300 anos. Muitos de nós na medicina ambicionamos e nos esforçamos para nos comunicar de forma efetiva com nossos pacientes. Nós, médicos, já ficaríamos exultantes se nossas mensagens científicas permanecessem relevantes por alguns anos, o que dizer então se se mantivessem válidos por vários séculos como nosso genial e iluminado compositor consegue até hoje. Ele, através das lutas semanais com a condição humana que apresentava aos congregantes na igreja, usou sua música como um bálsamo e consolo, provavelmente para si próprio e certamente para o seu público. 

Uma pergunta que poderia ser levantada seria se você precisaria ser luterano para amar Bach. O compositor era sim um estudioso dedicado da Bíblia e sem dúvida um devoto. As cantatas são atadas e carregadas de conteúdo exegético (área da teologia que procura estudar e interpretar os livros sagrados). Mas o leitor não precisa necessariamente compartilhar da mesma confissão e de Bach para aproveitar da arte dele nas profundas explorações das profundezas da condição humana nas obras sagradas que transcendem qualquer rótulo. Elas oferecem socorro e conforto para quem se conecta à sua obra, independentemente de afiliação religiosa e mesmo para quem não professa alguma fé.

As obras de Bach fornecem uma fonte de compreensão humana e nos convida a todos a cuidar e compartilhar. Talvez como médicos possamos tirar uma lição da arte de Bach, enquanto praticamos a medicina moderna com suas ferramentas cada vez mais dependentes da tecnologia. Uma contemplação da obra de Bach nos lembra que não devemos abandonar nossa missão holística como médicos. Ele nos mostra que as palavras e também as artes podem socorrer os doentes e os que sofrem. Nós médicos temos o dever de curar o espírito também como a carne. Bach era um curandeiro de seu tempo e por que não usar agora também do seu “remédio” para a alma?
 
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