Diante da era digital, estresse e velocidade do mundo, aprenda como preservar a memória

Aos 30 anos, as células nervosas começam a envelhecer. Depois dos 40, as pessoas conservam a memória por menos tempo

Lilian Monteiro 21/01/2019 07:00
Jair Amaral/EM/D.A Press
Há dois anos, a aposentada Nagibe Saigg, de 69 anos, faz exercícios para estimular a memória e conta que se sente muito melhor (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Na pequena cidade de Fray Bentos, no Uruguai, nos idos de 1800, viveu Irineu Funes, cuja memória era tão excepcional que ele era incapaz de esquecer. Era dono da memória perfeita, o que sempre foi uma ambição humana. Funes, el memorioso é o personagem principal de um dos contos do livro Ficciones, de um dos maiores escritores da literatura estrangeira, o argentino Jorge Luís Borges, um dos mais importantes exemplos do realismo fantástico, gênero também construído por Júlio Cortazar e Gabriel Garcia Márquez. Por ser incapaz de esquecer, Funes não consegue ter ideias e, portanto, não há como pensar. É algo irreal, mas já imaginou se todos tivéssemos a capacidade da memória perfeita?

Numa sociedade contemporânea cheia de filtros, é natural que a memória da geração atual seja, naturalmente, seletiva. Mas até que ponto o ritmo acelerado do mundo atual, a facilidade e a rapidez dos meios de comunicação (determinadas pelo avanço tecnológico) afetam a capacidade humana de reter fatos e experiências? Será que corremos o risco de viver em uma sociedade do esquecimento?

Há várias causas para a perda de memória. Desde o envelhecimento, a ansiedade, passando pelo estresse, cansaço, alteração do sono até doenças neurológicas, como Alzheimer. A maioria é previsível e reversível com a mudança de hábitos de vida como meditação, técnicas de relaxamento e treino da memória. É possível exercitá-la e assim torná-la mais ativa.

A alteração da memória é mais comum em idosos, mas jovens também podem encarar esquecimentos nada confortáveis. A notícia boa é que há saída. E, na verdade, como não existe memória perfeita, esquecer faz parte. Aliás, nenhum ser humano desejaria ser como Funes, prisioneiro de sua capacidade e incapaz de pensar sobre o que vive. Há coisas que precisamos e desejamos esquecer.

A reportagem conta histórias do bancário Paulo Henrique Lima de Resende Chaves, de 33 anos, e da aposentada Nagibe Saigg, de 69, que têm em comum a memória “ruim”. Ambos revelam o que fazem para que as lembranças permaneçam registradas por mais tempo possível. Ela confessa que “nunca me preocupei muito com a memória, total falta de interesse. Achava que, se não guardasse, não precisaria. Nasci em Belo Horizonte e não sei nenhum nome de rua”. Já Paulo revela que “a minha memória nunca foi boa, sempre esqueço coisas do dia a dia. Sempre decorei fazendo repetições, o que não é errado. Mas com algumas técnicas de estudo percebi que não é uma maneira eficiente”. E esta edição também narra a história de Karel van Den Berger, de 99, um holandês que veio para o Brasil há mais de 50 anos e é um exemplo de vitalidade. Aos 97, sofreu um leve AVC e sentiu que havia ocorrido uma pequena perda da memória e hoje pratica exercícios para que a tenha em dia. E conseguiu.

Nagibe Saigg, formada em letras (português e francês), trabalha com estimulação cognitiva incentivando as funções relacionadas à memória: “Tornei a minha memória ruim, não cuidei e não me preocupei. Nunca quis saber nome de rua, de livro, de artista da TV e sempre perguntava, para quê? Nunca aprendi tabuada. Só queria aprender o que me fazia sentido. Com 50 anos, fui fazer faculdade da maturidade na Estácio, foi quando me deu o clique. Fiz francês e, ao me pedirem, não consegui soletrar uma palavra. Foi horrível, fiquei chocada. Até saí da faculdade. Passei até a ter dificuldade para dançar, o que faço desde os 5 anos, não guardava os passos da coreografia. Reparei que, ao envelhecer, a memória tinha piorado. Também faço parte de um grupo da maturidade na Igreja Santa Luzia, na Cidade Nova, e depois de uma reunião mensal, com uma palestra sobre a memória, percebi que tinha de tomar uma atitude”.

Assim, há dois anos, Nagibe e o marido, o engenheiro Eduardo, de 62, têm uma aula por semana, durante duas horas, na clínica Ginástica do Cérebro: “Melhorou tudo na minha vida cotidiana. Fazemos cálculo com ábaco, há jogos, desenhamos, enfim, várias atividades. Antes, não prestava atenção em nada, levava a vida anestesiada, ainda que seja curiosa, mas só sobre o que me interessava. Agora, estou mais ligada e, garanto, melhor do que quando jovem. E ainda faço tricô, crochê, hidroginástica, amo ler e tudo isso ajuda a minha memória”.

MEDO E EMOÇÃO

Em entrevista ao site do médico e oncologista Drauzio Varella, o médico, professor e neurocientista Ivan Izquierdo, argentino naturalizado brasileiro, uma das maiores referências no mundo científico, explica que memória é aquisição, conservação e evocação de informações provenientes de fora ou de dentro do indivíduo. E que há processos diferentes de memória. O mais rápido é a do trabalho, que dura segundos, logo se esquece. O que dura horas ou minutos é o usado para conversar, entender um livro e ir a um lugar. O terceiro é o da memória de longa duração, que persiste durante seis horas ou mais. Conforme Ivan Izquierdo, a memória que melhor conservamos é a que tem conteúdo emocional forte, ou seja, a morte de alguém da família, o nascimento do filho, o casamento. E avisa: “A memória perfeita não existe”.

Ivan Izquierdo explica ainda que o ser humano tem 100 bilhões de neurônios e cada um deles se comunica com outros mil. Portanto, o número de permutações é imenso e todos entram em jogo mais cedo ou mais tarde. Assim, quanto mais organizada essas conexões melhor funcionará a memória. Tema dos mais instigantes, o neurocientista ensinou que “somos aquilo que também escolhemos esquecer. Cada indivíduo escolhe o que vai guardar e o que vai esquecer. Às vezes com intervenção da vontade, às vezes, não. Isso nos distingue como pessoas. Boa parte do processo é inconsciente. Curiosamente, o cérebro nunca apaga, pode até impedir a invocação a qualquer momento, as memórias de medo, porque ele é necessário para a sobrevivência.” A memória do medo nunca é apagada para que o ser humano possa escolher entre fugir ou enfrentar.

É importante que todos saibam que não saber onde colocou as chaves não é problema. Isso porque a maior parte do esquecimento é provocada pela falta de atenção. O que preocupa é quando ele passa a ser contraproducente. Aí não é bom e é preciso ter um diagnóstico profissional.

De olhos fechados
A percepção da perda de memória ocorre quando afeta o cotidiano, atividades laborais e acadêmicas, independentemente da idade. Neuroaprendizagem mostra como o cérebro aprende

Arquivo Pessoal
"Sou um velho estudante. Tenho pelo menos 15 coisas diferentes para fazer todos os dias. As pessoas mais velhas têm que fazer coisas interessantes para se manter ativas" - Karel van Den Berger, de 99 anos, filósofo e músico (foto: Arquivo Pessoal )
“Ensinar sem levar em conta o funcionamento do cérebro seria o mesmo que tentar desenhar uma luva sem levar em conta a existência da mão.” A fala do pesquisador americano e neurocientista educacional Leslie Hart é usada pela neuropsicóloga e responsável técnica do Espaço Master - Memória e Vitalidade, Rosana Hosken Veiga, para destacar o valor da neuroaprendizagem. Ela explica que começamos o envelhecimento das células nervosas já aos 30 anos. “Só que essa perda é pouco sentida. Podemos considerar que temos ‘um problema de memória’ quando esse afeta o cotidiano e as atividades laborais e/ou acadêmicas, independentemente da idade.”

Aos 99 anos, Karel van Den Berger, holandês que veio para o Brasil há mais de 50 anos, é um exemplo de vitalidade. Filósofo, biólogo e músico, fundador da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo e ex-professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Karel é daquelas pessoas raras, que têm prazer pela música, pela filosofia e, principalmente pela vida. Aos 97, sofreu um leve AVC e sentiu que havia ocorrido uma pequena perda da memória. Pediu à filha, médica, para levá-lo a um lugar para fazer uma avaliação. Foi constatado um problema de memorização e linguagem por meio da avaliação feita pela neuropsicóloga Rosana Hosken, que iniciou um trabalho de reabilitação cognitiva com Karel. O trabalho durou um ano.

Em seguida, Karel passou a fazer um treino cognitivo ecológico com o neurocientista Guilherme Hosken. Esse trabalho é focado na prática de exercícios que ajudam o paciente a executar suas atividades cotidianas, em seu ambiente doméstico. O objetivo de Karel era, e continua sendo, manter sua capacidade de aprender, de estudar e fazer todas as coisas das quais gosta, como a música e a leitura: “As pessoas acreditam que, por ter envelhecido, não podem mais aprender coisas novas. Sou um velho estudante. Tenho pelo menos 15 coisas diferentes para fazer todos os dias. As pessoas mais velhas têm que fazer coisas interessantes para se manter ativas. O trabalho de cognição me ajuda na parte intelectual e acredito que ainda posso desenvolver outras partes do cérebro. Por exemplo, a música sempre fez parte da minha vida, desde os 5 anos. Quando tive problema de visão há poucos anos, iniciamos um trabalho que me permitiu usar a memória e não a visão para tocar. Hoje, toco de memória, de ouvido todas as músicas de que gosto. Ainda toco piano, violino e teclado todos os dias. Toco de olhos fechados”.

Rosana Hosken afirma que, a partir do momento em que as atividades rotineiras começam a ficar prejudicadas em função dos esquecimentos, isso é um alerta para a questão da memória. “Um excelente indicador é quando as pessoas que estão ao nosso redor fazem observações sobre nossa fala repetitiva. A perda da memória deve ser avaliada por profissionais médicos ou neuropsicólogos, por meio de consultas e avaliações que permitem, por meio de bateria de testes, medir os tipos de memória e comparar com a população de mesma caraterística demográfica.”

É verdade que o cérebro precisa ser estimulado constantemente. Rosana Hosken destaca que há diversos tipos de exercícios que contribuem. “É interessante, quando se fala em atividade para o cérebro, pensar, em primeiro lugar, em ‘surpreendê-lo’, tirando-o da zona de conforto e fazendo atividades que diferem das feitas habitualmente. Por exemplo, um engenheiro em sua atividade laboral utiliza muito a matemática e o raciocínio lógico. Para essa pessoa, um exercício interessante para o cérebro seria leitura, lidar com palavras, já que essas atividades divergem do seu cotidiano.”

Arquivo Pessoal
"É interessante, quando se fala em atividade para o cérebro, pensar, em primeiro lugar, em %u2018surpreendê-lo%u2019, tirando-o da zona de conforto e fazendo atividades que diferem das feitas habitualmente" - Rosana Hosken, neuropsicóloga (foto: Arquivo Pessoal )

A neuropsicóloga enfatiza que, para treinar e exercitar o cérebro, é importante pensar sempre em atividades que, de alguma forma, lhe deem prazer e tragam satisfação, “senão desistimos da tarefa na primeira semana de treinamento”. Ela lembra que para cada faixa etária, os exercícios serão diferentes, já que um estímulo que interessa a uma criança é completamente diferente para o adulto ou idoso. “As atividades têm que estar em consonância com a vivência da pessoa.”

TECNOLOGIA

Muito se critica a tecnologia sobre sua interferência na saúde da memória. Rosana Hosken analisa que, como mecanismo de auxílio externo, o mundo digital contribui muito, já que temos recursos atuais inimagináveis há 50 anos. “No entanto, o avanço tecnológico propiciou aumento do número de informações a uma velocidade maior que a nossa capacidade de retê-las. Assim, sofremos problemas com esse avanço. Entre eles, a ‘atenção’, uma vez que ela está sempre muito dividida entre as inúmeras informações disponíveis. Podemos dizer que a atenção é uma ‘porta de entrada’ para que possamos reter uma informação. Como ela fica muito difusa, devido ao volume e velocidade do mundo digital, isso pode atrapalhar o processo de memorização. Hoje, temos esse sentimento de estar com problema de memória e muitas vezes se trata apenas de um problema de atenção.”

Quem não estiver confortável com a memória vale a pena fazer uma avaliação neuropsicológica. Rosana Hosken explica que ela consiste em instrumento usado por neuropsicólogos para investigar e diagnosticar o funcionamento cognitivo das pessoas. Funções como memória, linguagem, praxias, atenção e funções executivas são avaliadas por meio de uma bateria de testes e questionários e os dados são analisados e comparados com a população de mesma característica demográfica, para verificar se os processos cognitivos do paciente se encontram dentro dos padrões esperados para a sua população. “É um instrumento auxiliar ao médico para diagnóstico de transtornos de memórias como as demências, entre elas o Alzheimer. A avaliação verifica a acuidade da memória, assim como consegue detalhar e especificar os tipos e quantificar os resultados. Vários tipos de enfermidades podem acometer diferentes tipos de memória. A avaliação é um instrumento de grande valia para o auxílio diagnóstico.”

O que fazer?

“Imagine que nossas funções cognitivas, tais como memória, atenção, linguagem etc., são como bolhas de sabão. Quanto mais estimuladas, maiores elas ficam e por mais tempo permanecerão cheias. No entanto, se forem pouco estimuladas, elas ficarão pequenas e continuarão cheias por pouco tempo. Isso ocorre porque, quando acionamos uma área ou circuito neuronal específico, precisamos enviar nutrientes para ele, o que faz com que essa região se fortaleça. Porém, circuitos neuronais sem uso não demandam nutrientes e consequentemente se enfraquecem”, ensina a neuropsicóloga Rosana Hosken, ao indicar atitudes que contribuem para uma boa memória:

1) Treino cognitivo acompanhado por profissional, na qual metas de curto e longo prazos são estipuladas

2) Atividades físicas: estudos recentes realizados na UFRJ apontam que a liberação do hormônio irisina é importante para a formação da memória e proteção dos neurônios liberados pelos músculos durante prática regular de exercício físico

3) Aprender idiomas

4) Fazer tarefas fora do ordinário. Exemplo: ir por um caminho diferente para o trabalho

5) Jogos tradicionais, como baralho, xadrez, dama, palavra cruzada, quebra-cabeça e sudoku

6) Plataformas digitais de treino cognitivo: memorado, lumosity,fit brain

7) Meditação

Academia da memória

Com programas a partir de R$ 125 a diária, o Espaço Master - Memória e Vitalidade, construído em um casarão dos anos 1960, com mais de 1 mil metros quadrados com amplos jardins no Bairro Cidade Jardim, desenvolveu pacotes para atender às necessidades específicas de uma variedade de clientes. A metodologia tem como base a associação entre o desenvolvimento cognitivo e a estimulação sensorial-motora, programa composto por três pilares:

1) Avaliação cognitiva/neuropsicológica Analisa por meio de testes, atividades e questionários o funcionamento cognitivo de cada pessoa. Essa avaliação identifica fatores que possam comprometer a memória e pontos fracos que precisam ser trabalhados, bem como os pontos fortes a serem usados como suporte nesse processo.

2) Academia do cérebro O cérebro é igual à nossa musculatura corporal e tem a capacidade de se desenvolver quando estimulado da maneira correta. Exercitar nossa mente é tão importante quanto exercitar nosso corpo. A ginástica cerebral é a prática de exercícios cerebrais que favorecem a produção de neurotransmissores (dopamina, serotonina e adrenalina) e melhora as conexões entre as células nervosas, estimulando o desenvolvimento de novas redes neurais. Por isso, investir na ginástica cerebral pode ser eficaz para quem precisa estimular a memória, a atenção e o raciocínio. A ideia da plasticidade cerebral e de reserva cognitiva são conceitos bastante utilizados para a estimulação cognitiva.

3) Laboratório de força, equilíbrio e coordenação A longevidade das pessoas, adquirida com o maior acesso aos avanços da medicina e a maior consciência dos seres humanos por uma vida mais saudável, trouxe a necessidade de que essas pessoas mantenham por mais tempo sua vitalidade. Tendo em vista esse objetivo, o programa prevê a prática de uma série de atividades que promovem o fortalecimento físico, o equilíbrio e a coordenação motora que vão se perdendo com a chegada da idade.

O que comer?

A neuropsicóloga Rosana Hosken afirma que uma boa alimentação é essencial para o bom funcionamento cerebral, já que nosso intestino vem sendo considerado nosso segundo cérebro. Conforme ela, uma má alimentação pode provocar pressão alta, alto índice de colesterol, o que poderá comprometer o sistema vascular e o transporte de oxigênio e nutrientes para o cérebro, afetando, assim, o funcionamento da memória.

Nesse contexto, diversos alimentos podem contribuir para o bom funcionamento da memória

» Kombucha: bebida probiótica produzida a partir da fermentação do chá; é excelente para o intestino e, consequentemente, para o funcionamento cerebral

» Alimentos que contêm ômega 3 são poderosos antioxidantes e os encontramos nos peixes, principalmente

» A gema do ovo contém colina, precursor do neurotransmissor acetilcolina, que pode beneficiar a memória

» Quinoa e linhaça também são bons alimentos

» A cúrcuma, conhecida como açafrão-da-terra, um tempero de cor alaranjada, tem curcumina que também tem sido estudada como benéfica para a memória

Arquivo Pessoal
(foto: Arquivo Pessoal )
ENTREVISTA/ ÂNGELA MATHYLDE, NEUROCIENTISTA

» Vida equilibrada
Qualidade de sono, horário definido para as tarefas diárias, atividade física, socialização e alimentação balanceada são algumas atitudes práticas e individuais para manter a memória ativa

“A neurociência estuda as funcionalidades do sistema nervoso, seja em nível funcional ou estrutural. Ao longo do tempo, esse estudo passou a se dedicar quanto à repercussão dessas funções nos comportamentos, sentimentos e até mesmo no pensamento humano”, define a professora-doutora Ângela Mathylde, neurocientista pela Universite Livre Dês Sciences de l’Homme de Paris, na França, onde deu ênfase para a neuroaprendizagem. Idealizadora do Congresso Internacional Brain Connection (Congresso de Neurociências e Aprendizagem) e única brasileira no Grupo de Investigação Clínica em Saúde e Educação da União Europeia/G3TES, ela conversou com o Bem Viver sobre vários aspectos que envolvem a memória. Confira:

Hoje, quando se fala em perda de memória, as reações iniciais são de medo e pavor, até. Isso porque, no caso das pessoas mais velhas, sempre se relaciona com Alzheimer. A perda de memória é sempre uma demência?

A perda de memória não é exclusividade de demências. Ela pode ser ocasionada, sim, pelo estresse da vida contemporânea. A correria do dia a dia, os mil afazeres e o excesso de informação de todos os cantos, sempre, podem gerar um desgaste emocional no indivíduo que, como consequência, pode ter lapsos de memória. Fatores como depressão, insônia, ansiedade e até mesmo má alimentação podem gerar tal desgaste. Vários estudos têm associado o estresse crônico com a liberação desenfreada do hormônio cortisol, capaz de danificar a memória a curto prazo e, inclusive, atrofiar certas áreas do cérebro.

Acabou de ser publicada uma pesquisa falando da atividade física como aliada contra o Alzheimer. Cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) conseguiram estabelecer uma relação entre os níveis de irisina - hormônio produzido pelo corpo durante exercícios físicos - e um possível tratamento para a perda de memória causada pela doença de Alzheimer. O estudo, feito em parceria com outras universidades e institutos, foi publicado em 7 de janeiro na revista Nature Medicine. É mais um alerta para todos sobre a importância da atividade física?

A atividade física é fundamental para a saúde do organismo como um todo, inclusive o funcionamento do cérebro. Pode-se dizer, literalmente, que os exercícios físicos “turbinam” o cérebro. Isso porque as células nervosas são estimuladas com a atividade física, prevenindo doenças e diminuindo quaisquer riscos de danos cognitivos. Quanto ao Alzheimer, inúmeros estudos associam a prática de atividade física com a melhora na qualidade de vida do indivíduo, já que não há cura para a doença. Primeiro, é preciso considerar que o Alzheimer é caracterizado pela atrofia cerebral, processo que mata os neurônios. Tal atrofia gera efeitos colaterais, como perda de memória recente, entre outros. A pesquisa pode ser explicada à medida que a atividade física aumenta o oxigênio do cérebro, assim como o fluxo sanguíneo. Ao melhorar a circulação sanguínea, substâncias capazes de contribuir para o funcionamento do sistema nervoso central são liberadas, como o fator neurotrófico derivado do cérebro, uma das proteínas neurotrofinas, que atuam no cérebro preservando funções como a aprendizagem e a memória.

Ter uma boa memória é também questão de hábito?

Hoje, nós temos uma preocupação com a memória, mas não mudamos o hábito. A falta de hábitos de leitura e o avanço da tecnologia têm inibido a memória. Antigamente, para ir a um lugar eu pegava a lista telefônica, procurava o endereço, buscava saber como chegar lá, quais as ruas. Hoje, aciono recursos como Google Maps e chego no lugar. Então, tem alguém para dizer faça isso, vire à esquerda, à direita. Isso me deixa robotizada. Se eu estou nesse estado, não ativo a memória, apenas sigo um comando, o que prejudica muito a atividade cerebral. Outro exemplo: antes nós tínhamos que buscar na Barça, no dicionário, hoje basta procurar no Google, em menos de um minuto você consegue uma informação que antes poderia gastar meses em pesquisa. Isso facilita o cotidiano, mas prejudica a memória, já que menos sinapses são feitas. Além disso, quanto mais significado eu incutir naquilo que vou fazer, mais eu vou me lembrar. Então, por exemplo, lembro-me do meu cônjuge porque eu o amo, então está ligado ao sentimento, questão emocional; lembro-me da minha profissão porque tenho obrigações, então tenho que fazer relações, isso é uma técnica.

O que cada um pode fazer na sua rotina para preservar a memória funcionando da melhor maneira possível por mais tempo?

As pessoas devem ter uma vida equilibrada, sono regular de no mínimo oito horas, ter uma rotina, como horário de trabalho, para dormir, tomar banho, estudar. Fazer atividades que proporcionem prazer, bem-estar e sossego. A rotina é uma estratégia para a qualidade de vida, já que disciplina significa tomar decisões. Claro, rotina não como hábitos inflexíveis. É preciso diferenciar rotina de previsibilidade, pois nesse caso não há estímulos. Você pode ter a rotina de ir a pé para a academia ou o trabalho, mas escolher novos caminhos para esses trajetos. Além de desenhar e fazer mapas mentais, é importante que a pessoa abuse de exercícios mentais, assim como os físicos, são excelentes recursos para melhorar e preservar a memória, além de outras funções cerebrais. Como fazer caça-palavra, palavra cruzada ou aprender uma nova língua. É importante que a pessoa escolha algo que a agrade. A alimentação saudável rica em frutas, verduras, vegetais e com o mínimo possível de produtos industrializados também é fundamental para a saúde cerebral. É importante que o indivíduo socialize com famílias, amigos, namorado(a), quem for. Isso porque a conexão entre as pessoas libera hormônios da felicidade e contribui para a qualidade de vida e o desempenho cognitivo. Principalmente entre idosos, que tendem a se isolar.

De acordo com estudo publicado na revista Experimental Aging Research, existe uma maneira mais efetiva para as pessoas que vivem esquecendo as coisas conseguir manter as lembranças mais frescas: desenhando. Por quê? O que o desenho tem de especial?

No estudo em questão, assim como em outras pesquisas do gênero, por meio da neurociência, foi possível associar o desenho com a melhoria da memória. O ato de desenhar estimula a formação de estruturas neurais da memória, como as sinapses. Sinapses nada mais são do que conexões entre os neurônios. É por meio dessas ligações que as células do cérebro transmitem mensagens químicas, por meio de neurotransmissores. Quanto mais conexões são feitas, mais ativo é o cérebro e melhor é a memória. Assim, quem desenha está criando mais associações na mente, gerando uma maior memória sobre elas. Já que, enquanto uma informação é armazenada na memória como um aspecto lógico no cérebro, a outra é armazenada em outra área do cérebro, como uma forma criativa dessa informação, por meio do desenho. Além disso, qualquer desenho feito pede ao cérebro que, além de desenhar, decodifique a imagem em informação. Vale lembrar que as escritas são desenhos gráficos, tanto é que as primeiras informações, na época das cavernas do Paleolítico, eram desenhos. No mais, quando você busca subsídios auxiliares como agenda, relógios, despertadores ou pede alguém para lembrar, o cérebro fica aliviado. Toda vez que você coloca algo para auxiliar o funcionamento cerebral, com certeza ele vai funcionar melhor, pois o cérebro não tem como guardar tanta informação. Uma das técnicas são os mapas mentais, uma espécie de diagrama sistematizado por Tony Buzan. A estratégia serve para armazenar melhor informações e conhecimentos, sendo muito usado por estudantes. São expressões livres de pensamento por meio de desenhos, símbolos e até letras garrafais que contribuem para a memorização.

A precisão dos mapas mentais

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O bancário Paulo Henrique Lima de Resende Chaves, de 33 anos, desenvolveu técnicas de estudo para memorizar o conteúdo para concursos (foto: Arquivo Pessoal )
Gente jovem com problema de memória? Pode ocorrer, essa não é uma questão restrita aos mais velhos. Paulo Henrique Lima de Resende Chaves, de 33 anos, bancário, revela que “a minha memória nunca foi boa, sempre esqueço coisas do dia a dia. Sempre decorei fazendo repetições, o que não é errado. Mas com algumas técnicas de estudo percebi que não é uma maneira eficiente”.

Incomodado com seus esquecimentos, Paulo conta que decidiu fazer um curso de mapas mentais para aprimorar a técnica: “Para quem estuda para concurso é um diferencial. Atualmente, os concursos estão muitos disputados, o volume de matérias é altíssimo e qualquer ponto faz a diferença”. Ele, como um concurseiro, tratou logo de buscar ajuda: “Durante os estudos, faço um rascunho dos mapas mentais. Com eles, em outro momento, faço o mapa definitivo, desenhando e colorindo. O ato de desenhar ajuda na memorização do conteúdo”.

Paulo destaca que hoje trabalha no Banco do Brasil, é concursado, mas continua estudando para novos certames: “Com os mapas mentais, consigo fazer uma revisão de grande quantidade de matéria em pouco tempo, ajudando a memorização das informações. Depois que comecei a usar os mapas mentais para estudar tive melhores resultados em alguns concursos, chegando a fazer a prova oral (que é a última etapa) em duas oportunidades”.

Satisfeito com o resultado e sua evolução, Paulo explica que o curso de mapas mentais mostra como as imagens auxiliam na memorização, e o fato de desenhar ajuda ainda mais. “Não é preciso desenhos bonitos, qualquer desenho, por mais amador que seja, já facilita a memorização. O que mais gostei no curso é entender que o mapa mental é algo pessoal, nós aprendemos criando os mapas. Caso eu estude por um mapa mental feito por outra pessoa o resultado não é tão eficaz.”

Conforme a explicação de Paulo, os mapas mentais facilitam no armazenamento das informações a longo prazo: “Com eles, é possível fazer a revisão de uma grande quantidade de informações em menor tempo. Para quem estuda, ou trabalha com uma grande quantidade de informações, é uma técnica excelente”.

TECNOLOGIA

Para Paulo, o estresse, cansaço e avanço da tecnologia podem ser apontados como possíveis responsáveis por uma memória mais instável, que às vezes falha: “Acho que isso tem relação com como usamos a tecnologia. Dificilmente escrevemos no papel, usamos o computador e o ato de escrever ajuda mais a reter informações do que digitando. Hoje, os números dos telefones estão todos na agenda do celular, não discamos mais, apenas clicamos no nome da pessoa e a ligação é efetuada. Para fazer uma compra com cartão não precisamos mais digitar a senha, basta apenas aproximar o celular que o pagamento é efetuado com a confirmação da nossa digital (como o Apple Pay ou Samsung Pay). São tecnologias que facilitam o nosso dia a dia, mas acabamos utilizando menos o cérebro, a nossa memória. Acho que isso tem relação com a falta de memória da geração totalmente tecnológica”.