Existe alguma relação entre ganho de peso e cirurgia da vesícula?

Pacientes submetidos a colecistectomia relatam em consultório terem engordado após a extração do órgão; o que há de verdade nisso?

Mohamed Hassan/Pixabay
(foto: Mohamed Hassan/Pixabay )

A obesidade atualmente tem apresentado um enorme crescimento no mudo todo e, apesar de não ser “contagiosa”, entendemos como um problema epidêmico.

Ao nos referirmos dessa forma, usamos o termo epidêmico emprestado das doenças infecciosas, mas que acaba sendo apropriado como analogia, diante da rápida e disseminada elevação de casos da obesidade em quase todas as populações.

A comunidade científica ainda não conseguiu identificar uma razão única que explique a causa da obesidade. Temos compreendido como um problema multifatorial que combina fatores genéticos e ambientais dos mais diversos e que podem estar presentes desde o período fetal e que, ao longo da vida, outros fatores podem se sobrepor. 

Uma dúvida e questionamento frequente, que costumo escutar por parte de alguns pacientes, é de que eles percebem uma relação de ganho de peso após terem sido submetidos à colecistectomia (cirurgia de retirada da vesícula biliar). Será que os pacientes tem razão ao fazer essa correlação?
 
A vesícula biliar é um órgão anexo presente no organismo humano em forma de pera que armazena a bile mas não é responsável por sua produção.

O suco biliar (bile) é um fluído produzido pelo fígado (em torno de um litro por dia) e armazenado na vesícula biliar, que tem capacidade de armazenar 20 - 50 ml de bile. A bile é caracterizada por ser alcalina e amarga sendo 85% água, 10% bicarbonato de sódio e outros ácidos biliares (também chamados de sais biliares), dos quais seriam 3% pigmentos, 1% gordura, 0,7% sais inorgânicos e 0,3% colesterol.

Após sua produção e secreção hepática, a bile é armazenada e concentrada na vesícula biliar durante o período de jejum, e é liberada no intestino durante a contração da vesícula biliar, um passo iniciado por estímulo neuro-hormonal induzido pela refeição - e é lançada apenas quando o alimento que contém lipídeos (gordura) entra no trato digestivo.

Na bile, os sais biliares têm por objetivo auxiliar a absorção de diferentes tipos de gorduras, por meio de sua emulsificação. Esses sais biliares atuam na emulsificação das gorduras, com a homogeneização da suspensão de gordura e agem de forma análoga à do detergente no óleo. Facilitam a ação de uma enzima produzida pelo pâncreas (lipase), aumentando a superfície de contato gordura-enzima.

A bile tem um papel chave no processo de digestão porque melhora a solubilização dos lipídios da dieta (isto é, os triglicerídeos e colesterol) e das vitaminas lipossolúveis da dieta ao passarem pelo intestino. Além disso a bile é a principal via para excretar o excesso de colesterol do corpo.

Os sais biliares chamados de “primários” são os principais componentes dos lipídios biliares e são sintetizados a partir do colesterol no fígado. Eles passam por circulação entero-hepática (intestino-fígado) contínua devido ao transporte do intestino delgado (ileo) e do intestino grosso com retorno ao fígado através da veia porta. Assim, a síntese hepática dos sais biliares é inibida por um mecanismo regulador de retroalimentação negativo. As pequenas quantidades dos sais biliares que escapam à absorção intestinal entram no intestino, onde são transformadas pela microbiota (flora) intestinal residente em sais biliares "secundários"

A colelitíase (cálculo de vesícula biliar) pode obstruir a drenagem da bile e abrange um espectro de condições que variam de cálculos biliares assintomáticos, a doença de cálculo biliar sintomática não complicada (cólica biliar) e a doença de cálculo biliar complicada (manifestando-se com colecistite aguda, colangite ou pancreatite biliar).

Entre os fatores de risco para formar cálculo da vesícula estão o aumento da idade, sexo feminino e gravidez, rápida perda de peso, inatividade física, dieta rica em colesterol, estrogênio e contraceptivos orais e baixo teor de magnésio sérico. Além disso, alguns fatores metabólicos como resistência à insulina, obesidade, dislipidemia, diabetes mellitus tipo 2 (DM2) também aumentam o risco. Já a colecistectomia (remoção cirúrgica da vesícula biliar), é dos procedimento cirúrgicos mais comumente realizados mundialmente e é atualmente realizada em mais de 90% por via vídeolaparoscopica com um ótimo resultado em termos de morbidade a médio e longo prazo.

Uma vez feita a remoção da vesícula biliar, isso influencia a circulação entero-hepática da bile, já que tanto sua função rítmica atuando como um reservatório biliar como também sua ação de bomba contrátil estarão perdidas com sua remoção cirúrgica. Além disso, o metabolismo e a recirculação da bile podem influenciar algumas vias homeostáticas no fígado, intestino, tecido adiposo marrom e músculo. Além de suas funções digestivas únicas, os sais biliares também atuam com reguladores críticos do metabolismo, uma vez que também atuam quase como moléculas sinalizadores "hormonais" que interagem com alguns importantes receptores nucleares. Assim, os sais biliares podem regular a energia, a glicose, o metabolismo lipídico, o controle do gasto energético, a inflamação e o microbioma intestinal. Por outro lado, anormalidades no metabolismo e circulação dos sais biliares podem iniciar, perpetuar ou agravar distúrbios metabólicos e doenças hepáticas.

Esses processos, por sua vez, podem levar a consequências metabólicas negativas, incluindo a síndrome metabólica (SM). A SM é uma condição em que coexiste no mesmo paciente a obesidade central com aumento da circunferência abdominal, elevação dos triglicerídeos, redução do HDL-colesterol, aumento da pressão arterial e da glicemia de jejum.

Essa é uma combinação importante de fatores de riscos cardiometabólicos e faz com que o paciente com SM represente um grande problema de saúde pública. A SM já atinge uma prevalência de cerca de 25% dos adultos em todo o mundo e está associada ao aumento do risco de doenças cardiovasculares (DCV), DM2, doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA), câncer hepático, elevação ácido úrico e gota e também de colelitíase. Mais recentemente vem merecendo grande atenção a possibilidade de a colecistectomia já ser considerada um fator de risco adicional para o desenvolvimento da SM. Isso desperta uma preocupação uma vez que existe um número elevado de cirurgias realizadas no mundo todo o que poderia potencialmente afetar milhões de pacientes. 

Não quero entrar demais nos detalhes das questões técnico-cientificas mas vou destacar rapidamente algumas das ações dos sais biliares em um dos tipos de receptores no núcleo das células. Vou citar o do receptor-1 de ácido biliar acoplado à proteína G (GPBAR-1, também conhecido como TGR5). Comento sobre esse receptor pois está implicado em regular o controle metabólico de energia e da glicose. No intestino delgado, especificamente no íleo, ocorre a ativação do GPBAR-1 pelos sais biliares e isso aumenta os níveis do peptídeo YY (PYY) que possui efeitos anorexígenos, ou seja, da redução do apetite. A ativação da GPBAR-1 também gera níveis crescentes de GLP-1, que é um dos mais importantes hormônios intestinais e que chamamos genericamente de incretinas, e que por sua vez são implicados no controle da glicose pois ajudam a aumentar a secreção de insulina. Vale destacar que atualmente dispomos de uma nova classe de medicamentos para diabetes que são denominados de agonistas dos receptores do glucagon-like peptide-1 (arGLP-1) que são 50-97% homólogos com o GLP-1 humano. Algumas dessas drogas dessa classe de medicamentos dos arGLP-1 também foram aprovados para tratamento da obesidade e ajudam na perda de peso. 

A vesícula biliar, com sua função de reservatório, atua como um marca-passo fisiológico da circulação entero-hepática dos sais biliares. Essa função é mediada pela coordenação de mecanismos neuro-hormonais distintos envolvendo o fígado e o intestino. Portanto a remoção da vesícula biliar acaba levando ao aumento das taxas de recirculação entero-hepática dos sais biliares em pelo menos duas vezes em relação à frequência normal, particularmente durante o jejum, levando à reciclagem intestinal acelerada, aumento das taxas de secreção de sais biliares e colesterol na bile mas com a absorção de gordura preservada.

Esta nova condição anatômica leva ao aumento da proporção dos sais biliares “secundários” pela ação de bactérias intestinais diante reciclagem intestinal acelerada e prováveis mudanças na microbiota intestinal. Tais alterações podem induzir diarréia osmótica, pelo tempo de trânsito do intestino grosso acelerado. Os indivíduos colecistectomizados não são capazes de provocar uma rápida liberação dos sais biliares para o duodeno em resposta à ingestão de alimentos e como resultado, isso pode alterar o ritmo de ativação dos receptores induzidos pelos sais biliares, resultando em anormalidades metabólicas. As respostas de glicose e lipídios nos indivíduos operados tornam-se exageradas após uma refeição, já que nos indivíduos colecistectomizados as ações induzidas pelos sais biliares seriam incapazes de levar prontamente uma resposta protetora para equilibrar flutuações nos níveis de glicose e lipídios induzidas pela ingestão de alimentos aumentando o risco de SM. De acordo com essa visão, a função da vesícula biliar não seria apenas fornecer um “maior poder digestivo”, mas também permitir que a bile possa equilibrar melhor o estresse metabólico causado pela ingestão periódica de alimentos.

Outro aspecto a considerar seria a ocorrência de uma disbiose intestinal, entendendo que quando há um desequilíbrio da flora bacteriana intestinal ocorre redução na capacidade de absorção dos nutrientes e carência de vitaminas. Este desequilíbrio é causado pela diminuição do número de bactérias boas do intestino e aumento das bactérias capazes de causar doença.

A obesidade pode estar associada com alterações da microbiota intestinal, influenciando tanto a diversidade e a função microbiana, agindo nos sais biliares e na sensibilidade à ação periférica da insulina que é altamente dependente das bactérias do filo Firmicutes.

Um estudo recente descobriu que, comparados aos controles, os pacientes com cálculos biliares têm altas concentrações de sais biliares fecais e uma diminuição da diversidade microbiana com redução das bactérias benéficas do gênero Roseburia e aumento de Oscillospira, o que correlacionou-se positivamente com os sais biliares “secundários”. Assim, a disbiose intestinal poderia ser uma característica importante em pacientes com cálculos biliares. Além disso, a colecistectomia, que altera o fluxo biliar para o intestino, pode ser seguido por interações prejudicadas entre os sais biliares e a microbiota intestinal

Diante do exposto até aqui, teoricamente a retirada da vesícula biliar poderia não ser assim tão inócua e teria a potencialidade de desencadear alterações metabólicas e ganho de peso - mas ainda é um assunto controverso.

Algumas poucas pesquisas mencionaram alteração de peso após a colecistectomia. Em um estudo com 103 pacientes no Reino Unido, foi descrito um aumento do peso corporal 6 meses após a cirurgia em relação ao pré-operatório, tanto em homens e mulheres, que ganharam 4,6% e 3,3%, respectivamente. Outros estudos que compararam indivíduos com e sem cálculos biliares relataram que os indivíduos com os cálculos biliares, tinham o índice de massa corporal (IMC) e circunferência da cintura que tendiam a ser mais altos comparados com os indivíduos que não tinham cálculo e essas diferenças foram ainda mais pronunciadas nos indivíduos colecistectomizados. Em um desses estudos realizado na China com 5672 pacientes os autores mostraram uma relação entre colecistectomia e aumento do peso, da glicemia de jejum e da SM. Já em um outro estudo a tendência para um aumento no IMC após a colecistectomia não foi observada nos pacientes submetidos a cirurgia não biliar. 

Portanto evidências recentes sugerem que a colecistectomia não é um evento neutro e poderia causar consequências metabólicas anormais. É provável que os mecanismos sejam mediados pelo fluxo anormal pelo intestino dos sais biliares que produzem sinalização metabólica e agem sem a função rítmica da vesícula biliar nos estados de jejum e alimentação. Esses papéis dos sais biliares envolvem ações em receptores celulares no fígado, intestino, tecido adiposo e músculo. Algumas alterações podem também ser decorrente da modificação na microbiota intestinal. Assim, a colecistectomia pode ser um fator de risco potencial adicional para a SM mesmo na ausência de grandes alterações metabólicas antes da cirurgia. Se a colecistectomia for inevitável, medidas preventivas, incluindo mudanças no estilos de vida, devem ser consideradas para minimizar riscos metabólicos adicionais.

Em resumo é um assunto complicado e ainda faltam muitas peças para montar esse grande quebra-cabeça com as lacunas do conhecimento desse assunto. Além do mais tipicamente o cálculo biliar é um tema no qual podemos facilmente usar o surrado ditado “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”. Temos o seguinte cenário: obesidade, resistência à insulina e DM aumentam o risco de formar cálculo. Mas a perda rápida de peso também aumenta o risco de colelitíase como ocorre nos pacientes após cirurgia bariátrica. Por sua vez a colecistectomia pode levar a um ciclo vicioso ajudando também a aumentar o peso e a piorar alterações metabólicas da SM. Mas isso não quer dizer que não seja importante, nos casos bem indicados, continuar recomendando a cirurgia da vesícula. Como tenho repetido muito em outras colunas, no final das contas, devemos sempre nos preocupar com a necessidade de mudanças nos hábitos de vida e não custa nada reforçar que a atividade física acaba sempre tendo um papel muito importante. 
 
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