Terapia comunitária alcança resultados expressivos e é adotada como política pública em saúde

A exemplo de experiência pioneira no Ceará há mais de três décadas, prática já é oferecida na capital com sucesso

por Lilian Monteiro 22/07/2018 07:00
Beto Novaes/EM/D.A Press
Psiquiatra Luciano Carneiro de Lima (de óculos) em roda de tratamento no Centro de Saúde Regina, no Bairro Lindeia. Terapia está presente nas regionais Barreiro e Noroeste e os resultados são positivos (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

Espaço da palavra, da escuta, de descobertas, da mudança, do autorresgate e da busca por saúde. A proposta da terapia comunitária é um bálsamo para quem enfrenta o sofrimento em lidar com os desafios diários, próprios da vida e, muitas vezes, não sabem como sair da posição de vítima para se enxergar como corresponsável e sujeito de ações que podem curar.

Quem conta a história e os efeitos da terapia comunitária é o médico e psiquiatra Luciano Carneiro de Lima, de 40 anos, com 15 de carreira, que aplica o método e já formou outros profissionais que se propuseram a trabalhar da mesma forma. Ele conta que tudo começou com o advogador Aírton Barreto, natural de Fortaleza, que depois de formado em direito entregou o diploma aos pais e decidiu seguir a vida que almejava. Foi trabalhar em um bairro pobre de periferia da capital cearense, chamado Pirambu, onde fundou o Centro dos Direitos Humanos do Pirambu. Num ambiente de violência e escassez de tudo, Aírton viu que seus moradores apresentavam adoecimento mental e pediu ajuda ao irmão, Adalberto Barreto, psiquiatra, antropólogo, filósofo, com formação em teologia, que passou a atender os moradores da comunidade no Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Tempos depois, explica Luciano Lima, Adalberto se questionou se esses moradores tinham uma doença mental ou viviam de sofrimento, passavam dificuldade na vida e reagiam a isso. Assim, a visão do médico cearense determinou que essas pessoas se unissem, se articulassem. E em vez de recebê-las no hospital, foi para a comunidade e formou pequenos grupos, criando a metodologia que hoje é reconhecida na forma de capacitação profissional ou especialização. “A biopsicossocial está na raiz da terapia comunitária, tem esses três preceitos e o ser humano é visto de maneira holística, não só biológica.” Tratamento que já se espalhou pelo mundo.

Luciano Lima se formou em terapia comunitária em 2008/2009, a partir de uma parceria da Prefeitura de Belo Horizonte, que articulou o curso na capital, o que ocorreu em vários estados do Brasil: “O curso é teórico-vivencial, ou seja, nós também temos de trabalhar nossas questões para ter condições de conduzir o trabalho com os pacientes. Fazemos a nossa autodescoberta”. Na época, o psiquiatra era médico de família, especialidade que exerceu por oito anos em centros de saúde e só depois foi arrebatado pela psiquiatria. A formação previa levar para os postos a metodologia, era a contrapartida. Hoje, ela está presente em regionais como Barreiro e Noroeste (veja quadro da PBH). Em BH, portanto, já são 10 anos de tratamento.

MÉTODO

A terapia comunitária é feita em roda e começa, explica Luciano Lima, com o acolhimento: “É o espaço para falar dos problemas, preocupações, alegrias e conquistas no cotidiano. Em seguida, temos uma parte de descontração, dinâmica, mais lúdica, para quebrar o gelo diante da tensão. Ao fim do acolhimento, peço que todos exponham de maneira resumida o problema e há uma votação sobre o que falaremos. Essa escolha não é sobre importância, não há juízo de valor, mas sim a questão de maior identificação naquela roda. O objetivo é ter maior número de pessoas interessadas”. Luciano Lima deixa claro que a terapia comunitária não é atendimento individual, já que tanto quem fala quanto quem escuta estão sento tratados naquele momento: “Quando faço as perguntas, as pessoas só respondem se quiserem e, a partir daí, tento construir o mote. Por exemplo, morte do filho. Vou perguntar na roda quem já viveu essa perda e o que fez para superar, para dar a volta por cima. Quando alguém conta sua experiência de forma livre, na perspectiva de expor o problema, o “conselho” é “dado” na forma de depoimento pessoal. O impacto é maior. E deixa de ser, você deve fazer assim ou assado, o que pode soar como desconsideração e diminuição da dor da pessoa”.

O psiquiatra constata que a terapia comunitária “coloca o poder nas mãos das pessoas. Ressalva o que cada um construiu. Não há dependência da fala de um catedrático, acadêmico, diplomado, é a valorização da sabedoria da vida. Quando pergunto o que levam da roda, as respostas são alegria, paz, sabedoria, a ideia de que seus problemas não são tão grandes assim... Forte e impactante”.

Luciano Lima conta que no início houve estranhamento maior de colegas de profissão (cenas de preconceito) do que dos pacientes. “A população e os agentes comunitários de saúde, que são mais próximos da comunidade, tiveram receio da fofoca. Explicamos e deixamos claro que na terapia comunitária não há pacto de segredo. A roda não é espaço para grandes segredos, portanto, fala-se o que se sente confortável e a vontade para expor, já que a fala não se encerra no grupo, a reflexão é levada para vida, para casa.” Os problemas são diversos: morte, morte do filho, depressão em forma de tristeza, falta de emprego, situação econômica, casamento, principalmente, questão da violência contra a mulher, ainda pouco empoderadas, droga, alcoolismo e tentativa de suicídio.

O psiquiatra faz questão de destacar ponto importante da terapia comunitária: “A identificação com o sofrimento do outro. As pessoas não compartilham, se sentem sozinhas e ao se deparar com alguém que vive e passa pela mesma situação, é como se legitimasse o sofrimento”. Luciano Lima destaca a necessidade de frear diagnósticos de que “a tendência atual é apontar tudo como transtorno, doença, quando na verdade grande parte é do sofrimento humano, que pode ser tratado com psicoterapia. Às vezes, a ansiedade será resolvida com uma caminhada e a depressão com ioga. No entanto, a tudo que envolve adoecimento mental é dado um juízo moral”.

Como bem lembra Luciano Lima, no texto O mal-estar na civilização, do médico e fundador da psicanálise Sigmund Freud, não há como o ser humano escapar de três sofrimentos: “Primeiro, o do corpo, que se deteriora e chega à morte; segundo, as forças esmagadoras, grandes desastres, e o terceiro, o relacionamento com outros homens”. Não há escapatória e é preciso saber e aprender a lidar com a vida real.

As regras da roda

1) Silêncio: no sentido de que enquanto eu escuto o outro, eu escuto a mim mesmo
2) Sempre falar na primeira pessoa. É a maneira de não falar mal do outro, já que não se muda o outro
3) Sempre buscar o próprio sentimento
4) Não dar sermão
5) Não dar conselho
6) Não fazer julgamento
7) Respeitar a história de cada um
8) Se a pessoa falar sobre um tema que o faz se lembrar de uma música, provérbio, dito popular, aí sim, pode falar porque irá ajudá-lo a processar o problema. É como se a memória fizesse conexão com sua experiência, contribuindo com a elaboração do seu problema
9) Não existe uma única interpretação, o terapeuta não tem esse viés. Ele só faz pergunta e, mesmo se indagado a dar opinião, ele a devolverá com outra pergunta.

Personagem da notícia
Vicentina José de Rezende de 55 anos, revendedora autônoma

Da desconfiança à luta

"Estou na terapia comunitária há um ano, mais ou menos. Também faço individual, mas em grupo é minha primeira experiência. No início, confesso, fiquei desconfiada, mas quis saber como funcionava. Por curiosidade, fui descobrir como era. Gostei tanto que não saí mais e já convidei várias pessoas para conhecerem. Faz muito bem. Você vê as experiências dos outros e se sente forte para continuar a sua luta. Muitos contam problemas que nos fazem perceber que, às vezes, os nossos não são tão graves assim. A terapia de roda também é um lugar de relação de companheirismo, importante nos dias de hoje em que as pessoas não escutam mais umas as outras. Enfim, acho que todos deveriam ter acesso, viver essa experiência. Para isso, é preciso que ela esteja presente em mais centros de saúde. Eu recomendo."

Oferta de TCI

A Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA), informa:

1) Atualmente, a prática de terapia comunitária integrativa (TCI) é oferecida em oito locais: os centros de saúde Califórnia, Noraldino de Lima, Vila Pinho e Alto Vera Cruz, além de algumas escolas municipais e em outros espaços públicos nas regionais Oeste, Noroeste, Leste e Barreiro

2) A TCI é um instrumento de intervenção social e contribui para prevenção de doenças, promoção à saúde e qualidade de vida dos participantes. Para participar da roda de TCI, o usuário pode procurar qualquer unidade de saúde que ofereça a prática. Em média, são 30 participantes por grupo, porém, não há limite estabelecido, sendo possível realizar a roda a partir de dois participantes

3) A TCI é um método de trabalho em grupos com participação democrática, sem caráter substitutivo de outros serviços já existentes. Procura contribuir para o empoderamento no enfrentamento saúde-doença, na melhoria da qualidade de vida de indivíduos e coletivos. Cria momentos de partilha de experiências, de forma a lidar melhor com a ansiedade. Tem como objetivo potencializar os recursos terapêuticos não medicamentosos, partilhar as estratégias de superação dos sofrimentos identificados como desafios existenciais, criar espaços de inclusão e valorizar a diversidade, resgatando a herança cultural e a história pessoal do sujeito

4) A TCI é a partilha de experiências tendo um terapeuta comunitário como facilitador. O terapeuta trabalha na valorização das histórias de vidas dos participantes, no resgate da identidade, restauração da autoestima e confiança em si, ampliação da percepção dos problemas e possibilidades de resolução. É função do terapeuta estimular as pessoas a serem corresponsáveis na busca de soluções e superação dos desafios do cotidiano, saindo da posição de vítimas

5) O SUS-BH disponibiliza a TCI como parte do cardápio ofertado às famílias que participam do Programa Família Cidadã. É uma oportunidade para o fortalecimento do vínculo entre os profissionais das diversas políticas públicas envolvidas neste trabalho e as famílias com os seus componentes