Grupo de cientistas lança novo modelo de estudo do câncer

Banco de dados pode tornar os testes com medicamentos antitumorais mais precisos. O trabalho é resultado de uma combinação inédita de mutações genéticas detectadas em células de laboratório e em amostras retiradas de pacientes

por Carmen Souza 16/07/2016 10:00
Curiosos observam a projeção de células cancerígenas: compreender os detalhes genéticos da doença continua sendo um grande desafio
As linhagens de câncer têm ajudado médicos e cientistas a entenderem melhor a doença e a buscarem formas mais eficazes de combatê-la. Células são retiradas de pacientes e cultivadas em laboratório para reproduzir a evolução do carcinoma. Mas as simulações, que podem durar décadas, geralmente não replicam exatamente a realidade, dificultando o trabalho dos especialistas. Agora, um grupo internacional de estudiosos diz ter resolvido o problema por meio de um processamento inédito de informações sobre tumores. Segundo eles, o trabalho traz um novo campo de estudo de cânceres, mais voltado para as abordagens terapêuticas personalizadas.

“É o início da geração de excitantes ideias sobre como podemos atingir populações específicas de pacientes usando drogas específicas. Esse tipo de estudo não era possível há alguns anos porque não havíamos sequenciado suficientemente os tumores”, comemora Mathew Garnett, biólogo especializado em câncer do Wellcome Trust Sanger Institute, no Reino Unido. A pequisa foi liderada por estudiosos dessa instituição britânica; do Instituto de Bioinformática Europeia, também no Reino Unido; e do Instituto de Câncer da Holanda. Os detalhes foram divulgados na edição desta semana da revista Cell.

Inicialmente, os cientistas analisaram, em mais de 11 mil amostras de tumor, os genes ligados a 29 tipos de câncer. Esse material fazia parte, principalmente, do Cancer Genome Atlas e do Cancer Genome Consortium Internacional, bancos de informações públicas sobre a doença. Depois, compararam os primeiros resultados com cerca de mil linhagens de câncer usadas em laboratório, focando naquelas que tinham características parecidas com as do primeiro grupo. Ao combinar os dados, chegaram às mutações em comum e testaram como elas reagiram à ação de 265 compostos anticâncer prescritos para diferentes estágios da doença.

Os resultados geraram duas constatações significativas: que a grande maioria das anomalias encontradas no cancro de pacientes também é detectada em células de laboratório e que isso transforma essas linhagens em um material precioso para os testes com medicamentos. “Você não pode rastrear centenas de drogas por meio de um único paciente, mas pode fazer isso com linhagens de células. Pode expô-las a muitas drogas diferentes e fazer perguntas sobre o que é mais ou menos sensível”, explica Ultan McDermott, do Wellcome Trust Sanger Institute.

Compartilhamento
A equipe trabalha na criação de um portal na internet para que especialistas busquem linhagens celulares que sejam mais semelhantes às condições de cânceres específicos e vejam como elas reagem a medicações. Vice-presidente de Pesquisa da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc), Carlos Gil ressalta que o trabalho pode ser revolucionário. “Se confirmado, esse estudo surge como um novo modelo de estudo. Eles usaram superprocessadores e linhagens de alta qualidade e descobriram padrões idênticos de mutações genéticas nas amostras. Se isso se aplica a 29 tipos de câncer, podemos dizer que se aplica à maioria dos tumores”, avalia.

Gil explica que, mesmo com o fortalecimento das drogas-alvo e da imunoterapia — duas áreas em alta no enfrentamento ao câncer —, continua difícil para o médico escolher o melhor tratamento de um paciente. “Há uma possibilidade grande de combinações, o que pode levar a uma opção que não será a ideal. Agora, é diferente se houver um modelo em que se possa reproduzir o mesmo ambiente do tumor, testar combinações in vitro e, num passo mais adiante, chegar aos ensaios clínicos”, diz.

Uso estratégico
Para Tiago Góss dos Santos, pesquisador do Laboratório de Biologia Molecular e Celular do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, chama a atenção, nos resultados apresentados, a possibilidade de abordagens mais estratégicas contra os carcinomas. O biólogo usa como o exemplo o câncer de mama, tratado pelos especialistas como um conjunto de doenças com uma diversidade grande de tipos. “Se você fizer uma droga testando uma linhagem, estará, na verdade, experimentando para um subtipo da doença. Agora, se usa uma linhagem com mutações em comum, isso pode funcionar como um protótipo para outros testes”, explica.

McDermott também reforça o aspecto disseminador do trabalho que liderou. “Precisamos de melhores maneiras de descobrir quais grupos de pacientes são mais propensos a responder a um novo medicamento antes de executar ensaios clínicos complexos e caros. Nossa pesquisa mostra que as linhagens de câncer podem dizer muito mais sobre como um tumor é suscetível a uma nova droga antes de ela ser testada em pessoas. Esperamos que essa informação acabe por ajudar no desenho de ensaios clínicos que tenham como alvo os pacientes com maior probabilidade de se beneficiar do tratamento.”


Cada vez mais personalizado

“Hoje, há a possibilidade de ter uma linhagem de câncer personalizada. Você retira a amostra da doença de um paciente, a cultiva em laboratório e aplica em um animal, geralmente um camundongo. Funciona como se o tumor crescesse em paralelo na cobaia. Com esse modelo, você pode avançar e testar drogas em uma amostra muito específica. Não precisa fazer experimentos aleatoriamente. Há bancos de dados que estão trocando as linhagens por esses modelos de animais. Muitos institutos e hospitais também estão trabalhando nisso. Por isso, acho que o grupo que divulgou esse novo trabalho tem uma carta na manga, devem estar focando em algo parecido”

Tiago Góss dos Santos, pesquisador do Laboratório de Biologia Molecular e Celular do A.C.Camargo Cancer Center


Doadora histórica
As células HeLa são a linhagem celular mais antiga utilizada por cientistas. Têm como origem amostras de um câncer de colo do útero coletado em fevereiro de 1951 de Henrietta Lacks, uma ex-lavradora que acabou morrendo em decorrência das complicações da doença em outubro do mesmo ano, aos 31 anos de idade. O cientista George Otto Gey percebeu que as células eram extremamente duráveis e as doou para que fossem usadas para fins científicos. O material foi usado, por exemplo, nos testes da primeira vacina contra a poliomielite, em 1950. Hoje, ajuda estudos de áreas diversas, como oncologia, imunodepressão e genética.