Rastreados vírus que atacam o coração

Cientistas dos EUA descobrem como esses micro-organismos comprometem o funcionamento do órgão vital, causando infarto e outras complicações. Os sintomas da infecção começam com uma gripe

por Isabela de Oliveira 10/08/2015 15:00

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Valdo Virgo / CB / D.A Press
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Eles costumam estar por trás de febres, problemas respiratórios e infecções que alteram a rotina. Às vezes, porém, os vírus agem no corpo de forma despercebida. São discretos, assintomáticos e fatais ao atacarem, por exemplo, o coração. Normalmente, as miocardites acontecem pela ação dos enterovírus cardiotrópicos, responsáveis por cardiopatias agudas, crônicas, leves e até morte súbita. Um estudo pulicado recentemente na revista Science Translational Medicine traz novas informações sobre os mecanismos pouco conhecidos do ataque desses sorrateiros micro-organismos a um dos órgãos mais nobres do corpo.

Segundo pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, não é o ataque em si que prejudica o coração, mas os espólios da infecção. Fragmentos de uma proteína essencial para a estrutura do músculo, a distrofina, imitam a forma completa da proteína e, se passando por ela, tomam seu lugar. Sem a proteína que confere liga e resistência, o coração fica fraco. Eventualmente e no pior dos casos, para de funcionar.

O genoma de alguns vírus cardiotrópicos, como o coxsackievirus, codifica uma enzima chamada protease 2A. Ao longo do ciclo de vida, esses micro-organismos a utilizam para se ligar às células do infectado. Curiosamente, conta Matthew Barnabei, principal autor do estudo, verificou-se que a distrofina também sofre ataque da protease. Por si só, a fragmentação da proteína causa problemas graves, como as doenças cardíacas associadas à distrofia muscular de Duchenne.

Falsa proteína
No caso da miocardite viral, a fragmentação da distrofina gera dois tipos de resíduo, a porção N-terminal (NtermDys) e a porção C-terminal (CtermDys). Estudos anteriores demonstraram que as CtermDys são muito parecidas com a distrofina em seu estado natural, o que faz com que o corpo se confunda diante de tanta semelhança. “Pense em sua membrana muscular como um estacionamento com um número limitado de vagas. A distrofina normal é como um carro, transportando uma pessoa que precisa começar a trabalhar para manter a sociedade. Nesse caso, o músculo cardíaco”, compara Barnabei.

Porém, prossegue o cientista, as CtermDys são carros estragados que aparentam estar em pleno funcionamento. Ficam estacionadas com os demais veículos, mas sem poder se locomover ou executar o papel fundamental de levar a pessoa a seu local de trabalho. “Assim, se o estacionamento estiver cheio de CtermDys, a distrofina normal pode não encontrar espaço para buscar uma pessoa que realmente poderá contribuir para o bem geral. O músculo não funcionará bem”, elucida Barnabei.

Em ratinhos transgênicos criados especialmente para apresentar alterações nas CtermDys, observou-se que a distrofina normal foi gradativamente substituída por essas frações. Eles acabaram desenvolvendo doenças musculares semelhantes às ocasionadas pela ausência de distrofina. “Afirmamos que a CtermDys faz com que a distrofina perca sua funcionalidade ao tomar as vagas que normalmente são ocupadas pela versão normal da proteína na membrana muscular e, com isso, causa a doença”, conclui Matthew Barnabei.

Terapias
O problema não é uma raridade: de 5% a 10% de pessoas saudáveis e sem qualquer sintoma de problema cardíaco têm indícios de infecção por enterovírus no coração. E mais: a infecção por esse micro-organismo é detectada em 20% a 40% dos pacientes que morrem de repente após infarto agudo do miocárdio e em 40% daqueles com cardiomiopatia idiopática dilatada — o coração não consegue bombear o sangue direito, o que causa arritmia, coágulos e morte repentina —, indicando que a infecção aumenta a suscetibilidade de lesão e disfunção cardíaca.

Os pesquisadores acreditam que os resultados do estudo podem contribuir para o desenvolvimento de arranjos genéticos que desalojem esses resquícios de distrofina. Ou, talvez, que auxiliem na confecção e no desenvolvimento de medicamentos que facilitem o decaimento rápido das CtermDys. Se bem-sucedidas, essas abordagens poderiam melhorar a função cardíaca geral de quem tem cardiomiopatia provocada por coxsackievirus.

Esse tipo é o causador mais frequente da miocardite, sendo responsável por cerca de metade de todos os casos dos Estados Unidos. O ataque ao coração começa com uma gripe, e a infecção dura de dois a 10 dias. “O paciente chega ao consultório médico umas duas ou três semanas depois dessa gripe com falta de ar. Às vezes, após um quadro diarreico”, descreve Roberto Cândia, cardiologista do Laboratório Exame. Normalmente, o vírus não leva à morte, mas pode resultar em danos permanentes no coração, particularmente se houver uma segunda infecção.

Apenas os casos mais graves realmente precisam de tratamento. Para amenizar os sintomas, são utilizados corticoides, que diminuem a inflamação. “Tratamentos direcionados para a distrofina poderiam evitar essas alterações. O estudo é muito inicial e ainda precisará passar por muitas etapas até ser feito com humanos. Mas, se os dados forem confirmados, conseguiremos reverter casos que hoje não conseguimos, como a disfunção ventricular grave e arritmia grave”, acredita o médico brasileiro.

Progressão rápida

Causada por uma mutação genética, a doença hereditária e degenerativa se caracteriza pela ausência de distrofina. Isso faz com que o músculo degenere progressiva e rapidamente em comparação a outros tipos de distrofia, como a muscular de Becker. Curiosamente, apenas os homens desenvolvem a distrofia muscular de Duchenne. Mulheres até possuem o gene desregulado, mas não apresentam os sintomas, como quedas frequentes, falta de firmeza para caminhar ou correr e fadiga.

Falhas em vacina fortalecem doença
Para funcionar corretamente, uma vacina deve proteger o indivíduo imunizado e prevenir a transmissão do vírus. Não é sempre que se dão os dois resultados. Um estudo divulgado na revista PloS Biology alerta que, em casos de falha, o procedimento pode ter efeito contrário: gerar micro-organismos ainda mais poderosos e ameaçadores à saúde humana.

“Nossa pesquisa mostra que o uso de vacinas permeáveis pode promover a evolução das variações mais ‘quentes’, mais desagradáveis de um vírus, o que coloca os indivíduos não vacinados em um elevado nível de risco”, explicou Venugopal Nair, chefe do Programa de Doenças Virais Aviárias do Instituto de Pirbright, no Reino Unido.

A constatação deu-se em aves contaminadas pelo patógeno causador da doença de Marek, também conhecida como paralisia das aves, que não acomete humanos. O processo, segundo os autores, ainda não é tão claro como a evolução dos germes que desenvolvem resistência aos antibióticos.“Em nossos testes com galinhas vacinadas e não vacinadas, o segundo grupo morreu enquanto o primeiro sobreviveu, mas transmitiu o vírus para outras aves deixadas em contato com elas”, relata Nair.

Novas práticas

Também participante do estudo, Andrew Read, professor de biologia e entomologia da Universidade Penn State (EUA), ressalta que os resultados têm implicações para a saúde humana. Uma das justificativas é de que há casos confirmados de infecção humana pelo vírus da gripe aviária, indicando um novo fluxo de contaminação de aves e humanos.

Read destaca ainda que a constatação deverá ser levada em conta no desenvolvimento de novas gerações de vacina. “O desafio para o futuro é identificar outras vacinas que também poderiam permitir versões mais perigosas de um vírus. Não queremos que o combate à evolução de doenças mortais, como o ebola, ocorra nessa direção”, justifica.

Por isso, os investigadores recomendam rigorosos testes e monitoramento de imunizações em desenvolvimento. “Se algum dia nós tivermos uma vacina contra a malária ou uma contra o HIV, é claro que vamos usá-las, mas não gostaríamos de estar em perigo significativo caso elas não sejam eficazes em erradicar quaisquer tensões que possam tornar essas doenças mais virulentas”, reforça Read.

Peter Sopense, do Imperial College London e integrante do estudo, também ressalta que os resultados atingidos pelo grupo não devem servir como justificativa para o boicote a campanhas de imunização. “É importante não interpretar esse estudo como um argumento contra a vacinação de crianças contra a gripe ou outras doenças.” No início deste ano, os Estados Unidos enfrentaram um surto de sarampo devido ao fortalecimento de um movimento contra a imunização de crianças.

"O desafio para o futuro é identificar outras vacinas que também poderiam permitir versões mais perigosas de um vírus. Não queremos que o combate à evolução de doenças mortais, como o ebola, ocorra nessa direção” - Andrew Read, professor de biologia e entomologia da Universidade Penn State