Celebridades promovem debate sobre temas espinhosos em saúde, mas podem levar a conclusões precipitadas

A estrela de reality show Kim Kardashian declarou ter interesse em comer sua placenta após dar à luz o primeiro filho. Entenda o porquê e saiba mais sobre casos recentes como os de Angelina Jolie e Michael Douglas

por Letícia Orlandi 07/06/2013 08:30

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Dimitrios Kambouris, ALBERTO PIZZOLI e LEON NEAL/AFP PHOTO
Kim Kardashian (esq.), grávida de 8 meses, está interessada na prática da placentofagia; Michael Douglas deu declarações confusas sobre a origem de seu câncer de garganta; e Angelina Jolie motivou uma corrida de mulheres aos consultórios médicos em busca de informações sobre a mastectomia dupla preventiva (foto: Dimitrios Kambouris, ALBERTO PIZZOLI e LEON NEAL/AFP PHOTO )
Depois de Angelina Jolie e Michael Douglas, Kim Kardashian - estrela de um reality show norte-americano, ela está grávida de oito meses do rapper Kanye West - fez uma declaração polêmica sobre sua saúde: no último episódio da série televisiva, ela disse que deseja comer a placenta após o parto. Mas quais são os efeitos desse tipo de declaração, cada vez mais comum entre as celebridades?

Em relação aos casos de Angelina Jolie e Michael Douglas, o oncologista e mastologista Bruno Ferrari afirma que há um lado positivo nesse tipo de 'revelação': a prevenção. “As pessoas acham que nunca vai acontecer com elas. Entretanto, quando veem que uma pessoa famosa, com todos os recursos à sua disposição, passou por uma doença grave, lembram que pode acontecer com qualquer um”, explica.

Ferrari conta que, desde que Jolie esclareceu os argumentos que a levaram a decidir pela mastectomia dupla preventiva, o telefone na clínica não parou de tocar. “Só que a maior parte dos telefonemas era de pessoas cuja história familiar e médica não indicava qualquer necessidade de alarme ou de um exame genético como o que ela realizou. Por outro lado, recebi pacientes que haviam retirado tumores e, por se sentirem bem, não faziam uma mamografia há dois anos. Ou seja, já serviu para que essa pessoa se cuidasse melhor”, define o diretor técnico do Oncocentro, uma da principais clínicas de tratamento de câncer de Belo Horizonte.

REUTERS/Neil Hall
Angelina e Brad Pitt na primeira aparição da atriz após a revelação da mastectomia dupla preventiva, no último fim de semana (foto: REUTERS/Neil Hall)
Já no caso de Michael Douglas, que inicialmente atribuiu seu recém-superado câncer de garganta ao sexo oral, as coisas ficaram menos claras. O agente do ator chegou até a desmentir a informação. “Neste caso, a declaração pode confundir e levar a conclusões precipitadas. Embora parte dos tumores de cabeça, pescoço e cavidade oral esteja relacionada à infecção pelo HPV, no caso dele havia outros fatores de risco, como o tabagismo e o uso de álcool”, pondera o oncologista. Nem todas as pessoas infectadas pelo vírus – a contaminação acontece pela via sexual, na maioria dos casos; mas também pode ocorrer no momento do parto – vão desenvolver tumores. “Mas o HPV tem, sim, potencial carcinógeno. De qualquer forma, a informação não pode vir apenas de uma declaração de celebridade. Ela deve ser acompanhada de uma explicação médica”, alerta o médico.

REUTERS/Andrew Kelly
Declarações de Michael Douglas, apesar de confusas, reforçam a importância de ampliar a cobertura vacinal contra o HPV (foto: REUTERS/Andrew Kelly )
Em relação ao HPV, a maioria das pessoas infectadas não tem qualquer sinal aparente e mesmo assim pode transmitir a doença. Por outro lado, a evolução para lesão maligna pode acontecer de forma discreta, o que faz com que, muitas vezes, o diagnóstico ocorra já na fase avançada. “Casos como este, em um país em que a incidência de câncer de colo do útero é tão grande, como no Brasil, lembram a importância de discutir – apesar dos custos – a inclusão da vacina no calendário obrigatório do Ministério da Saúde”, resume Bruno Ferrari.

Além de estar presente em mais de 90% dos casos de câncer do colo do útero, o HPV está associado a 75% dos casos de câncer de pênis, de acordo com pesquisa do Instituto Nacional do Câncer (INCA) em parceira com o Instituto de Virologia da Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente, a vacina é licenciada no Brasil para homens e mulheres de 9 a 26 anos, com o objetivo de prevenir os quatro principais tipos de vírus: 6, 11, 16 e 18. O ideal é que a aplicação seja realizada antes do início da atividade sexual. Mas, ainda que tenha havido contato com o agente infeccioso, a vacinação pode proteger contra os outros três tipos.

Prevenção sim, desespero não. “A cada ano, são mais de 500 mil novos casos de câncer no Brasil, e a maioria pode ser prevenida primariamente – quando o paciente muda seus hábitos e nem chega a desenvolver a doença – ou secundariamente – com o diagnóstico precoce”, alerta o oncologista. “A maioria das pessoas que me procurou após o efeito Angelina Jolie não tinha nenhuma indicação de um procedimento específico, mas é importante visitar o médico regularmente. É muito mais simples e barato fazer a prevenção”, conclui Ferrari.

Modismo
AFP PHOTO/Emmanuel Dunand
A atriz January Jones revelou em março de 2012 que havia ingerido cápsulas feitas com sua placenta drenada (foto: AFP PHOTO/Emmanuel Dunand )
Enquanto os casos de Jolie e Douglas referem-se a problemas reais, que trouxeram consequências graves para os dois atores, Kim Kardashian já se envolveu em outras polêmicas relacionadas à saúde, só que um pouco mais superficiais. Ela continua aplicando toxina botulínica (botox) durante a gestação e divulgou uma foto em que revela um estranho tratamento de pele feito com o próprio sangue.

A principal questão em relação a essas atitudes é que o comportamento das personalidades de TV e cinema tem sempre grande potencial para se tornar moda. E, se ela resolver realmente comer sua placenta, não estará só. January Jones, a Emma Frost do filme 'X-Men: Primeira Classe' e a Betty Draper da série 'Mad Men', revelou em março de 2012 que havia ingerido cápsulas feitas com sua placenta drenada, após dar à luz um menino. Na época ela declarou que o material era desidratado e “convertido em vitaminas” e que “nó somos os únicos mamíferos que não fazemos isso”. Para completar, ela disse: “recomendo isso a todas as mamães”.

Frederico Amedée Peret, diretor científico da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais (Sogimig), é categórico em dizer que não existe nenhum estudo com respaldo científico adequado que comprove benefícios da ingestão da placenta entre humanos, seja para resolver problemas com a amamentação, depressão pós-parto ou ainda para ficar mais jovem, como deseja Kardashian, de 32 anos.

Há apenas um trabalho de 2003, mas de metodologia duvidosa – o estudo baseia-se no depoimento de 189 mulheres, que deram declarações subjetivas sobre a maneira como estava se sentindo após a ingestão. “Existem apenas estudos científicos realizados em animais. Portanto, não podemos recomendar a prática”, define Peret.

Também não há registros de que a prática ofereça riscos, desde que a origem da placenta seja a própria pessoa que vai ingeri-la. “Entretanto, a placenta, in natura, é capaz de transmitir uma série de doenças infecciosas, como as hepatites B e C e o HIV. Ainda que o feto não esteja contaminado, a placenta pode estar, porque ela está ali para proteger o bebê. Se outra pessoa ingerir esse material, pode adquirir uma doença grave”, lembra o diretor.

Mike Coppola/Getty Images/AFP
Kim Kardashian declarou em sua última visita ao ginecologista que estava interessada em comer a própria placenta para ficar mais jovem. Não há nenhuma comprovação de qualquer benefício dessa prática para a saúde ou para a pele (foto: Mike Coppola/Getty Images/AFP)
Se a gestante tiver uma boa alimentação e um bom acompanhamento, os supostos nutrientes existentes na placenta não terão nenhuma validade. “Como não há estudos, não podemos dizer nem que uma mulher desnutrida poderia se beneficiar. Qualquer novo tratamento só pode ser introduzido após testes que comprovem sua validade, após comparações com outros tratamentos consagrados. Nada disso foi feito com a ingestão de placenta in natura ou em forma de cápsulas, tornando essa recomendação antiética”, reforça Peret.

A opinião encontra respaldo em Mark Kristal, neurocientista americano que estuda a placentofagia há 20 anos. Ele afirma que a prática não tem fundamento e que muitas pessoas decidem adotá-la por acreditar que os outros mamíferos têm um bom motivo para fazer isso. E eles têm: evitar que os predadores carnívoros encontrem facilmente seus filhotes e os rastros deles. E, caso o animal tenha tido uma alimentação muito ruim durante a gestação, ele pode, sim, obter nutrientes a partir da placenta. “Mas, no caso humano, por tudo que já estudei até agora, não passa de modismo”, afirma, taxativo.

Indústria
Sob a alegação de que comer a placenta ajuda aliviar os sintomas da depressão pós-parto, auxilia na produção de leite e devolve nutrientes perdidos durante a gravidez, a psicóloga americana Jodi Selander começou um movimento (e uma lucrativa indústria) a favor da placentofagia em 2005, em Las Vegas, nos Estados Unidos. Jodi criou um método de encapsulamento, em que o material é é desidratado e colocado em cápsulas de gel. “O próprio processo de encapsulamento pode eliminar as supostas propriedades da placenta”, lembra Frederico Peret.

Por meio do site placentabenefits.info, Jodi oferece um curso pago a qualquer pessoa (a única exigência é o pagamento da taxa de US$295) e forma uma rede de 'profissionais' encapsuladores. Além disso, o site vende cápsulas de placenta de ovelha, por US$25, mas o produto não tem certificação do U.S. Food and Drug Administration (FDA), órgão similar à Anvisa.

Em vários países do mundo, inclusive no Brasil, o incentivo à ingestão da placenta acontece no parto domiciliar, o que torna o processo mais simples e não envolve questões legais. “No casos das instituições de saúde, qualquer material biológico exige descarte e transporte apropriados, definidos pela legislação específica. Ainda que seja direito do paciente requisitar seu material biológico, todos os procedimentos deverão ser seguidos”, pondera o médico.

De acordo com Frederico Amedée Peret, para que isso se torne, algum dia, uma prática aceita entre a comunidade médica, ainda existe um longo caminho a percorrer dentro da ciência. Até lá, o que é comprovadamente bom e amplamente indicado é a alimentação saudável, o acompanhamento pré-natal, a realização de exames periódicos e o ambiente tranquilo para a gestação.