Antonio Carlos Secchin lança Percursos da poesia brasileira

O ensaísmo do escritor analisa nossa tradição lírica

por Sérgio Alcides* 31/08/2018 10:10
Editora UFMG / Reprodução
(foto: Editora UFMG / Reprodução)
O momento para Antonio Carlos Secchin é de balanço, depois de mais de quatro décadas de atividade literária. No ano passado, ele reuniu sua poesia a uma coleção de inéditos, em Desdizer. Agora junta uns vinte anos de ensaísmo em Percursos da poesia brasileira.


Secchin pertence a essa família moderna dos poetas-críticos, cuja escrita – em prosa ou verso – sempre toca um modo de pensar a poesia e seu lugar na vida e no mundo. Para muitos, trata-se de uma contradição em termos: o poeta, como crítico, nunca será mais que um diletante. Para outros, ao contrário, trata-se de uma inevitabilidade: “Todo verdadeiro poeta é necessariamente um crítico de primeira ordem”, escreveu Valéry (em causa própria).

Contraditório ou necessário, se não mesmo ambas as coisas, o poeta-crítico é uma figura em baixa nos dias atuais. A cultura do entretenimento é mais propícia ao poeta-relações-públicas, autoficcional e autoempenhado flâneur das redes sociais. Por isso aquele é mais oportuno, justamente por ser tão extemporâneo seu inconformismo. Aos três tapinhas nas costas, o poeta-crítico sempre acabará preferindo, como Maiakóvski, dar uma “bofetada no gosto público”.

Embora para ser contundente ele nem precise perder a elegância. Seu ofício, como diz Secchin, é incitar a “fulguração da desordem”, tomar o “mau caminho” contra o senso comum. O que ele está buscando é um sentido menos comprometido, enquanto pesquisa “fraturas na sintonia do homem com o real”. Desse modo, os “percursos” investigados pelo autor são na verdade os descaminhos tomados pelos poetas que ele aborda em seus ensaios, que vão “do século 18 ao 21”.

Contudo, ao afirmar uma concepção da poesia como “discurso da desordem consequente”, Secchin sem perceber aponta o nexo entre seus Percursos de crítico e sua “desdicção” como poeta. Na origem de tudo está um “leitor voraz e constante de bibliotecas públicas”, despertado por essa atração negativa das possibilidades desconformes. A face oculta do poeta-crítico pode ser entrevista nas “memórias de um leitor de poesia” que antecedem seus ensaios. Desdizendo o título, não são “da poesia brasileira” os percursos que vamos ler, e sim os de um leitor assíduo através de uma tradição dentro da qual ele acaba por se ver inserido.

Daí o autor não ter a menor pretensão de formar um tratado, nem de escrever uma história. Quem lê seus Percursos junto com Desdizer compreende bem as afinidades que motivaram as escolhas e as exclusões. Poeta surgido no Rio de Janeiro dos anos 1970, no contexto de uma virada subjetiva de resistência às vanguardas construtivas que se impuseram antes em São Paulo, o crítico não se anima a explorar, por exemplo, o concretismo e seus sucedâneos. Mas relê os “clássicos” do romantismo, com olhar dessacralizador, capaz de espanar a poeira que cobre as joias deixadas por Gonçalves Dias (como o Leito de folhas verdes), Álvares de Azevedo (É ela! É ela! É ela! É ela!), Fagundes Varela (Aurora) e outros.

Trocando de livro, o leitor achará os ecos de tanta leitura. Por exemplo, num poema como É ele!: “No Catumbi, montado a cavalo, / lá vai o antigo poeta / visitar o namorado”. Ou em muitos outros em que o poeta pode brincar com a biblioteca do crítico, ou para homenagear o “negro cisne” Cruz e Sousa ou para explorar em alexandrinos impecáveis a tríade do Parnaso nacional, formada por “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”, “Antônio Mariano Alberto de Oliveira” e “Raimundo da Mota Azevedo Correia” (salvo para a metrificação com o uso esperto de um trema tão improvável quanto proscrito).

Mas a maior parte dos Percursos está voltada para o impressionante elenco da poesia brasileira do século passado. À bem conhecida contribuição de Secchin à fortuna crítica de João Cabral de Melo Neto, aqui se acham também acréscimos relevantes às de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e outros. Ao contrário de tanta gente que lida com poesia na Universidade, Secchin (que por muitos anos foi professor da UFRJ) leva para a crítica a marca do leitor de poesia, que nunca aceitaria subordinar um poema à retórica de filosofemas supostamente teóricos, apinhados de soporíferas notas de rodapé.

Essa marca se combina com outra, muito nítida em Desdizer: o crítico aqui conhece os segredos do ofício. O poema – “este local do crime” – tem em Secchin um artesão eficaz, cheio de verve e uma agudeza malandra, que faz o apuro formal trabalhar na contramão de uma dicção pomposa. Por exemplo, em Disk-Morte: “Para acabar com angústias e tormentos, / conheça nosso lançamento inédito: / basta ligar para o 0-800 / e compre a morte no cartão de crédito”. Ou, nesse verso euforizante: “Matou o analista e foi a Miami”. Assim descomplicado, ele pode até vestir um chapéu de Carmem Miranda para comemorar a liberdade de compor: “Disseram que voltei muito mecanizado, / com ritmo correto, muita rima rica, / que não tolero nada que não seja aquilo / que seja exatamente o que Bilac dita”.

O êxito desses poemas deve muito ao lastro de leitura de que os ensaios são uma amostra restrita à tradição brasileira. Isso alinha Secchin junto com outros poetas de sua geração que pretenderam buscar uma correlação forte entre a poesia e a vida, mas sem ingenuidade a respeito de nenhum dos dois termos dessa equação irresolvível. O primeiro nome que vem à mente é o de Ana Cristina Cesar, sua colega na marcante antologia 26 poetas hoje, lançada por Heloisa Buarque de Hollanda em 1976. Mas, por todos os outros lados, ele é bem diferente dela, que se inclina mais para o conceitual do que para o artesanato.

Mais parecido é Paulo Henriques Britto, que também é capaz de versificar como quem fala ao telefone e sabe “desconcertar” sonetos, metrificando o tom coloquial. Ao lado desse outro artesão, cujo humor entretanto é mais amargo e melancólico, Secchin se distingue por uma espécie irônica de eutrapelia (palavra que o Houaiss define como “modo de gracejar sem ofender, zombaria inocente” – mas a ironia é por definição a perda da inocência). Por aí se entende melhor, sem maior mistificação, a frase forte que o leitor encontra no começo dos ensaios: “O poema é a doença da língua e a saúde da linguagem”.

Paulo Henriques é um dos contemporâneos comentados por Secchin, pelo seu “jogo de acolhimento e recusa do legado de João Cabral”, reprocessado “em desleitura”. Valeria a pena considerar se essas observações não servem também para elucidar a poética do ensaísta. Essa possibilidade, descoberta no final dos Percursos, põe sob suspeita tudo o que foi percorrido antes. Dizem que o poeta-crítico, seja qual for seu assunto, está sempre falando de fato sobre a própria obra poética. Mas isso – alguém duvida? – apenas aumenta a importância do ensaísmo de Secchin.

 

*Sérgio Alcides é crítico literário, professor da Faculdade de Letras da UFMG

 

PALESTRA E DEBATE

O poeta e pesquisador Antonio Carlos Secchin vem a Belo Horizonte na próxima semana para dois eventos. Na terça (4/9), às 14h30, na Faculdade de Letras da UFMG, dará a palestra “(Re)desdizer”, sobre sua trajetória poética, e na sequência autografará o livro Desdizer (Topbooks, 212 pág., 2017, R$ 50), com sua poesia reunida. Na quarta (5/9), às 19h30, participa do projeto Sempre um Papo no debate e lançamento do livro Percursos da poesia brasileira, no teatro da Biblioteca Pública Estadual (Praça da Liberdade, 21, Funcionários), com entrada franca.Sérgio Alcides é crítico literário, professor da Faculdade de Letras da UFMG e autor de Píer: poemas (Editora 34).



PERCURSOS DA POESIA BRASILEIRA – DO SÉCULO XVIII AO XXI
De Antonio Carlos Secchin
Autêntica/Editora UFMG
368 páginas
R$ 59,80 (livro) e R$ 29,90 (e-book)