Professora da UFRS fala sobre estudos da sexualidade e do gênero

Guacira Lopes Louro se tornou uma das maiores referências da chamada teoria queer no país

por Márcia Maria Cruz 22/09/2017 15:27

 

Youtube/Reprodução
(foto: Youtube/Reprodução)

Guacira Lopes Louro se dedicou, na sua trajetória acadêmica, ao aprofundamento nos estudos acerca da sexualidade e do gênero e se tornou uma das maiores referências da chamada teoria queer no país. Professora titular aposentada do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela acaba de lançar Flor de açafrão: takes, cuts, cluse-ups, livro com o qual pretende levar a discussão a público mais amplo. Em entrevista ao Pensar, ela fala sobre teoria queer, apontando as inúmeras possibilidades de existência que ela descortina. Guacira diz que “é mais visível essa ideia de ambiguidade, de escrever no corpo os códigos de dois gêneros, como por exemplo ter barba e batom.” A entrevista foi concedida antes do fechamento da exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira, no espaço cultural do Santander, em Porto Alegre, ato que indicou a tensão na discussão de sexualidade e gênero no Brasil.

Fale um pouco sobre construção e desconstrução de gênero, questões que estão no debate público.
A ideia de construção de gênero aponta que não nascemos como homens e mulheres, mas o gênero vai se fazendo ao longo da vida. Comento, em meus livros, que a própria designação, quando da chegada de um bebê, se é menina ou menino e a própria nomeação, são o que faz daquele corpo um sujeito de gênero. Ao longo da vida, podemos elencar série de circunstâncias: o tipo de comportamento que se espera, tipo de roupa, de educação que faz o sujeito feminino ou masculino. Essa é uma ideia de construção de gênero que muitos teóricos entendem. Ao longo da vida, os sujeitos vão se fazendo como sujeitos de gênero.

E o que podemos dizer da desconstrução?

Não uso esse termo nos meus livros, mas essa desconstrução é feita e refeita pela vida. O sujeito pode se desviar de rotas planejadas para ele, pode desfazer aquele gênero previsto. Pode transitar por outros gêneros – algo que está mais visível agora do que há um tempo. A ideia de trânsito seria a possibilidade de se sentir um sujeito feminino, mas buscar referências, códigos, comportamentos associados a outro gênero e assim fazer esse movimento. Desfazer o gênero não é absolutamente uma opção. Tem a ver com circunstâncias de vida e história.

Até porque o processo de transição não e fácil...
É muito difícil e extremamente criticado. Há pessoas que querem e preferem viver na ambiguidade, ideia que está mais visível agora. Sujeito que de dia é homem e à noite é mulher. É mais visível essa ideia de ambiguidade, de escrever no corpo os códigos de dois gêneros, como por exemplo ter barba e batom. Uma das questões básicas é que as formas de apresentação (ou representação) de gênero são diferentes de uma sociedade para outra, de uma época para outra. Efetivamente, o que pode ser considerado feminino em uma sociedade, em outra pode não ser. Contemporaneamente, abrimos o leque da forma de se apresentar. Vemos essa mistura, a possibilidade de viver a ambiguidade: de usar indicadores, códigos, vestimentas que não identificam de imediato o gênero do sujeito. 

A possibilidade de várias identidades está abarcada nesse guarda-chuva que é o movimento queer. O que podemos dizer sobre essa teoria?
O que a gente chama de teoria queer, movimento queer, é um guarda-chuva que abarca todos os sujeitos não heterossexuais. Cobre os sujeitos homossexuais, transgêneros, travestis, bissexuais e tal. O termo queer tem potencial subversivo muito grande. O queer é algo que vai contra as normas, contra a corrente. É esse potencial subversivo que está dentro dessa denominação.

Como você vê a questão da sigla LGBTQI? Sempre é necessário um adendo para abarcar nova identidade, porque temos identidades múltiplas. Em que medida a sigla faz sentido frente à diversidade de identidades?

Não tenho acompanhado tanto os processos de discussão sobre isso. A cada momento se reivindica mais uma identidade. Parece incoerente. Tem uma tensão entre essas várias identidades e o queer. O queer sugere a transitoriedade, a provisoriedade, a ambiguidade. Não necessariamente você vai se fixar numa nova identidade. Mas tudo isso pode ser tomado, visto num conjunto como queer. É essa ideia de não se fechar numa identidade.

No livro Flor de açafrão: takes, cuts, cluse-ups, você apresenta vários ensaios que tratam da questão de gênero e sexualidade no cinema e na literatura. Você trabalha com obras de Virginia Woolf, James Joyce, Pedro Almodóvar. A gente pode pensar numa linha evolutiva em termos de representação na literatura e no cinema, ou é algo mais complexo, com tensões de representação em todas as épocas?
Gosto muito de cinema e me dei conta de que talvez uma das formas de acesso, não só para estudiosos do tema, mas para um público mais amplo, seria apresentá-las ou discuti-las em algumas instâncias em que todo mundo circula, como o entretenimento. As questões de gênero e sexualidade estão na obra de arte, no filme, no texto, mas não estou preocupada de quais foram as intenções dos autores. Parece importante deixar claro que é muito mais significativo a maneira com que a gente olha um produto qualquer: obra de arte, filme, livro. Procuro pensar nas formas como as pessoas estão vivendo o que na nossa sociedade entende como masculino e feminino. Parece ser possível discutir, a partir da cultura popular, uma porção de questões significativas sobre gênero e sexualidade.

Em 1928, Virginia Woolf em Orlando: uma biografia, inaugura uma discussão que ganhou corpo muito contemporaneamente que é a androgenia. O livro é bem anterior a O segundo sexo (1949), de Simone Beauvoir, considerada obra pioneira na desnaturalização das noções de gênero.
As motivações da Virgínia para escrever esse romance estão muito relacionadas à mulher com quem ela teve um caso. Mas o que a motivou é o menos importante, pelo menos para mim. O que é relevante é o que podemos pensar através do que ela escreveu. Orlando tem muito a ver com o que a gente discute hoje.

No capítulo “Chapéu, coldre e colete” você analisa a pedagogia de masculinidade que os filmes de faroeste construíram ao longo de muito tempo. Esses filmes dizem muito de como os homens ainda exercem a masculinidade na atualidade? 
Nesse capítulo digo que não se fazem filmes de faroeste nem homens como os de antigamente. Mas há a reiteração do que é ser masculino, o que esses filmes repassaram por muito tempo. A minha aposta é que se foi construindo um jeito de pensar a masculinidade. Temos muitos resquícios dela por aí. Por exemplo, a questão de homem expressar pouco sentimento. Não digo que os homens, na atualidade, sejam somente assim. Mas essa pedagogia de masculinidade foi reiterada anos e anos.

No cinema que apresenta novas pedagogias da sexualidade, como o proposto por Almodóvar, podemos pensar num pacto dessas novas pedagogias na constituição do que é o masculino e o feminino hoje ou isso leva tempo para influenciar, de forma mais clara e evidente, no comportamento? 
Produz efeitos. O problema é pensar se é amplamente. São tantas instâncias que estão nos ensinando modos de ser e de viver. Algumas têm mais condições de se estabelecer. Outras são marginalizadas, mas elas estão aí. O Almodóvar mostra figuras que são contemporâneas e permite que as pessoas se identifiquem. No capítulo sobre ele, tentei mostrar que há muito de feminilidade nos seus filmes. Ele mostra sujeito que tem pênis, mas que é feminino.

Com tantas formas de masculinidade e feminilidade, como viver essas mudanças de maneira menos conturbada?
Vamos nos construindo com tantas informações, sugestões e representações, isso não é tranquilo. Esse se fazer sujeito masculino e feminino é sempre complexo e provisório. No mundo todo, mas num país como o nosso, com tanta diversidade de grupos sociais e possibilidades, é mais ainda. Está mais aberto o leque de possibilidades, mas está longe de se dizer que seja tranquilo, principalmente para aqueles homens e mulheres que têm a ousadia de transgredir o que é tradicionalmente demarcado para o gênero. Geralmente, se faz isso com bastante sofrimento. Uma coisa é o artista. Outra coisa é o sujeito comum, que amanhã tem que ir para o trabalho. Essas possibilidades estão mais visíveis, mas elas se fazem com bastante conflito.