O último grito, de Thomas Pynchon, mostrar que o mundo é um depósito de desacertos

Principal tempero da cozinha literária de Pynchon, todos os livros que escreveu estão recheados de paranoia, que transborda pelas páginas e nunca parece excessiva

por Paulo Paniago* 11/08/2017 12:52

Paranoia, diz uma personagem logo nas primeiras páginas de O último grito, de Thomas Pynchon, “é o alho da cozinha da vida”. Portanto, conclui em seguida, nunca é demais, pode e deve ser usado à vontade.

Principal tempero da cozinha literária de Pynchon, todos os livros que escreveu estão recheados de paranoia, que transborda pelas páginas e nunca parece excessiva. A rigor, é uma comida de sabores raros que não vai agradar a paladares habituados a ingerir qualquer coisa. Fino e sofisticado, o alimento de Pynchon tem no entanto legião de seguidores que discutem, apreciam, se esforçam para decifrar, compreender, assimilar. Em todos os cantos do mundo.

Comece por esse aspecto: a narrativa se desenvolve sem muita atenção a descrever os personagens, que são flagrados no meio de uma conversa e talvez abandonados no mesmo ponto. O leitor é forçado a “pescar” sentidos, sugestões, nuances, e tecer novamente o mesmo tapete para ver se entende a trama complexa em andamento. A única descrição física da protagonista, Maxine Tarnow, por exemplo, é uma comparação com a atriz Rachel Weisz. O leitor completa e fecha a questão por conta própria, se quiser ou puder. Aos outros personagens, nem isso. Apenas as falas, irônicas, descoladas, nova-iorquinas, ásperas, são reproduzidas em diálogos às vezes hilários, às vezes enigmáticos.

Maxine é especialista em fraudes fiscais, tem uma pequena agência de investigações chamada Vigiar e Flagrar e, sim, ela pensou em nomeá-la Vigiar e Punir, mas achou que ia ficar presunçoso demais. Procurada por um documentarista, Reg Despard, para checar a situação de uma empresa que sobreviveu ao estouro da bolha da internet, ela vai mais desencontrar do que qualquer outra coisa. Tudo se passa nos meses que antecedem a queda das torres gêmeas do World Trade Center, em 2001. Sim, é sobre isso, e muitos dizem que é o romance que a literatura esperava a respeito do assunto. O que é o elogio mais ou menos padrão para o escritor.

Tal como na vida, o romance de Pynchon não encontra reviravoltas muito mirabolantes que acontecem nos filmes de Hollywood ou em certos romances mais, vamos dizer, estruturados. E ainda assim, há muita coisa acontecendo. A empresa tem o nome de hashslingrz e um dono bilionário e jovem, Gabriel Ice, que parece estar envolvido com alguma maracutaia, provavelmente a aquisição do código-fonte de um videogame, DeepArcher, capaz de fazer a deep web um lugar habitável. A deep web, para quem não sabe, é a internet que existe no fundo da outra, visível e aparente, com a qual bilhares de humanos se habituaram a lidar. É o lado tenebroso, necessário e obscuro de sustentação de toda essa trama. Ou, se você quiser, uma supermetáfora para a obra de Thomas Pynchon, que gosta de lidar com camadas sobrepostas. As subtramas com os russos Micha e Gricha, ou com um especialista em odores, ou ainda com o ativismo da sogra de Ice colaboram para redobrar as possibilidades mais globais da trama principal.

Gabriel Ice, portanto, pode estar associado a uma rede de envio de recursos financeiros para paraísos fiscais e talvez o financiamento do terrorismo internacional que em última instância vai render... sim, a queda das torres gêmeas e a ascensão de mais paranoia e controle, fronteiras menos porosas, conflitos mais acirrados. E lucros. Mas lucros decorrentes de fraudes financeiras, o que muito interessa a Maxine e suas linhas de investigação. Lucros numa escala que sempre foge a qualquer poder de investigação. O capitalismo tem ramificações que são como a deep web, insondáveis. Maxine, sozinha, pode pouco, e é com ela que o foco da narrativa decide permanecer.

No fim, se resta ao leitor a sensação de que algo escapou à compreensão, ele pelo menos não se sente abandonado, por não ser o único. A mensagem de um dos sonhos de Maxine, “se mensagem havia, é corrompida, fragmentada, perdida”. Talvez nela a decifração de todos os meandros do jogo em andamento seria possível. Mas os barulhos da cidade, os ruídos excessivos, atrapalham um tanto a gente a pensar, não é? O real é complexo, ramificado, simultâneo, intenso, doloroso, mas é o que tem para hoje. Saiba-se ou não lidar com ele, está aí, se impondo.

A certa altura, numa conversa de Maxine com uma amiga, Heidi, ela faz uma análise do que gerou como consequência o ataque terrorista. “O Onze de Setembro infantilizou os Estados Unidos”, Heidi diz. “O país teve uma oportunidade de crescer, mas em vez disso voltou pra infância.” Os exemplos se multiplicam para ilustrar o ponto. Os filhos de Maxine não terão mais que ler livros de ficção na escola, diz uma professora, a sério. Uma nova diretriz de política educacional no mínimo estúpida, mas que é aceita como natural no contexto pós-traumático.

Há um dado e uma aposta curiosos no livro de Pynchon. Em vez de exacerbar os valores da internet e da virtualidade exasperante, ele faz com que os personagens retomem valores familiares e palpáveis. Ou pelo menos é o que ocorre com a protagonista. Maxine reata com o ex-marido, por exemplo, e melhora as relações tanto com os próprios pais e a irmã, quanto com os filhos pequenos. Como rescaldo da dimensão desproporcional que pareceram os ataques terroristas, é uma aposta pra lá de interessante. No fundo, relações humanas, de novo e novamente, parecem a resposta para tanta coisa, senão para tudo.

* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília e autor do livro de contos É um bom título.



O ÚLTIMO GRITO
De Thomas Pynchon
Tradução de Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
584 páginas
R$ 79,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)

TRECHO

“Lembra aquela cena no noticiário local, logo depois que cai a primeira torre, uma mulher vem correndo pela rua e entra numa loja, assim que ela fecha a porta vem uma nuvem negra horrível, cinzas, destroços, varrendo a rua, passa pela vitrine como se fosse um furacão... foi esse o momento, Maxi. Não em que ‘tudo mudou’. Em que tudo foi revelado. Nenhuma grande iluminação zen, mas uma lufada de negrume e morte. Nos mostrando exatamente o que a gente passou a ser, o que a gente sempre foi.”

“E o que a gente sempre foi é...?”

“Pessoas que já eram pra ter morrido. Que estão se dando bem. Nem aí pra quem está pagando o pato, quem está morrendo de fome, vivendo amontoado, pra que a gente possa ter comida, casa, um quintal no subúrbio, tudo isso a um preço camarada... No resto do planeta, a cada dia a conta aumenta. E enquanto isso a única ajuda que a mídia nos dá é chorar os mortos inocentes, buá, buá. Buá o caralho. Sabe uma coisa? Todos os mortos são inocentes. Não existe morto que não seja inocente.”
Depois de uma pausa: 

“Você não vai explicar isso, ou então...”

“Claro que não, é um koan.”