Oliver Sacks evoca a memória em autobiografia

O neurocientista e escritor inglês reflete sobre si próprio e consegue arrebatar como seus personagens no livro 'Sempre em movimento: uma vida'

por Estado de Minas 11/09/2015 00:13
Rachel Botelho

Chris McGrath
Oliver Sacks concluiu a autobiografia aos 81 anos com mesma potência narrativa que cativou leitores leigos em medicina (foto: Chris McGrath )
Aos 18 anos, Oliver Sacks comprou sua primeira motocicleta, uma BSA Bantam de segunda mão, que levou para testar no Regent’s Park, em Londres. Não foi preciso ir longe para descobrir que um defeito no freio o impedia de parar ou desacelerar a máquina. Foram dezenas de voltas em torno do parque, as primeiras com a mão na buzina para que pedestres saíssem de seu caminho e, em seguida, sob aplausos e gritos de encorajamento enquanto ele passava mais uma vez, até que o motor engasgou e morreu. Esse quase motoperpétuo de seu ingresso no mundo da velocidade sobre duas rodas é um dos fios com que o neurologista e escritor inglês radicado nos Estados Unidos tece sua história e nos conduz em Sempre em movimento: uma vida.

Nessa autobiografia, concluída aos 81 anos, Sacks exibe a mesma potência narrativa que cativou leitores leigos em medicina já em Enxaqueca, publicado pelo jovem doutor em 1970, e os arrastou aos milhares nos 12 livros que se seguiram, todos editados no Brasil pela Companhia das Letras. Em Sempre em movimento, a escuta atenta do médico e o olhar obstinado do cientista que interroga os segredos do nosso cérebro e de como ele nos faz humanos mudam de objeto. Os pacientes que sustentam os relatos da maior parte de sua obra anterior deixam o foco para dar lugar ao próprio neurologista. Agora, doutor Sacks escrutina Oliver, ou vice-versa.

 Em seu último “relato de caso”, esse grande contador de histórias expõe franca, abertamente e com o humor que lhe é característico o homem nada comum que habita a figura pública do neurologista e escritor. Sacks já havia transitado na seara da memória autobiográfica em Tio Tungstênio, em que relembra sua curiosidade sobre o comportamento dos elementos químicos numa infância de menino judeu impregnada pelos efeitos da Segunda Guerra Mundial. Doses homeopáticas do eu narrador são injetadas também em suas obras de divulgação científica. Mas é nesse derradeiro livro – Oliver Sacks morreu de câncer, em 30 de agosto – que ele traz à tona todos os elementos, ou pelo menos uma vasta coleção deles, que talharam o poderoso e incansável pensador que conhecemos em seus escritos anteriores.

Com o mesmo vigor e impulso do médico recém-formado que abandonou abruptamente a Inglaterra em 1960 e construiu sua carreira nos EUA – nem sempre com o apoio de seus pares –, múltiplas facetas de Sacks emergem de suas memórias. Todas se revelam no amálgama de uma mesma inquietude: o motociclista que vara noites em corridas solitárias, o homossexual desconfortável com seus sentimentos sexuais, o competitivo levantador de pesos de Muscle Beach, o nadador destemido, o amante da música, devorador de literatura, obsessivo escritor, o dependente quase suicida que penou para se livrar das anfetaminas, o pesquisador desastrado no laboratório e preciso em campo, o membro da comunidade científica, filho, irmão e sobrinho em uma família judia com os pés fincados na ciência.

Companhia das Letras / Divulgação
Capa do livro Sempre em movimento: uma vida, de Oliver Sacks (foto: Companhia das Letras / Divulgação)
O resultado do mergulho do escritor no mar revolto de sua própria história é uma narrativa tão arrebatadora e cheia de surpresas quanto a dos assombrosos casos de portadores dos mais complexos distúrbios neurológicos que desfilam pelas páginas de livros como Tempo de despertar, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e Alucinações musicais. Parte indelével de sua passagem pelo mundo, esses e outros escritos de Sacks assumem novos sentidos, sob a luz dos bastidores de sua vida pregressa, por assim dizer, e das revelações do autor sobre si mesmo, suas trapalhadas e conquistas, ideias e pessoas que influenciaram sua invejável produção e de cujas contribuições para a ciência muitas vezes foi o motor.

Como sua BSA Bantam, Sacks só parou quando morreu. Dias antes, em 6 de agosto, o neurologista ainda encontrou fôlego para publicar seu último texto, no The New York Times, sobre as tradições judaicas das quais se reaproximou no fim da vida. Em 19 de fevereiro, um artigo assinado por ele no mesmo jornal e reproduzido mundo afora anunciava o fim próximo de sua trajetória pelo mundo. “Não há tempo para nada que não seja essencial”, prognosticou. Certamente, Sempre em movimento é dessas obras cuja essência as torna imperdíveis em qualquer tempo ou circunstância.


SEMPRE EM MOVIMENTO: UMA VIDA
De Oliver Sacks (Tradução Denise Bottmann)
Companhia das Letras
354 páginas
R$ 59,90

MAIS SOBRE PENSAR