Zélia Duncan e Jaques Morelembaum gravam clássicos de Milton Nascimento

Invento%2b é uma reinvenção das canções compostas e interpretadas pelo compositor mineiro com doses certas de emoção e sentimento

por Kiko Ferreira 30/11/2017 08:00
Léo Aversa/Divulgação
(foto: Léo Aversa/Divulgação)

Alguns anos depois de se transformar em outras, Zélia Duncan vem se transformando em outros. Nos últimos cinco anos, revisitou obras de Itamar Assumpção e Luiz Tatit com maestria, sem fugir de seu estilo e respeitando as características das obras de cada autor. Seu mais recente disco, invento +, continua a saga. Acompanhada apenas pelo violoncelo de Jaques Morelembaum, recriou 14 músicas emblemáticas do repertório de Milton Nascimento. Não só do autor, mas também do intérprete. Cinco dos temas, escolhidos entre os mais populares dos discos de Bituca, são de outros compositores.

A ideia surgiu em 2015, quando o executivo e produtor André Midani criou, no Rio, o projeto Inusitado, com shows em que o tom era promover encontros experimentais e, como diz o nome, inusitados. O espetáculo, que chegou a ser apresentado em Inhotim em outubro daquele ano, chegou ao estúdio este ano, pela gravadora Biscoito Fino. A sugestão da parceria com Morelembaum veio nos shows do Prêmio da Música Brasileira, em que a cantora fez releituras de Jobim sob direção artística do violoncelista e arranjador, que já havia trabalhado com Milton nos anos 1970, na turnê de lançamento da obra-prima Minas.

Sabedora do risco que era se aventurar em músicas que tiveram versões clássicas e definitivas, não só com o mineiro, mas com cantoras como Elis e Nana Caymmi, a dupla resolveu trabalhar com intimidade e respeito, sem grandes ousadias nem soluções pirotécnicas. O tom do disco é sóbrio, com aquela beleza das coisas construídas com as doses certas de sentimento e emoção.

Já na primeira faixa, com o cello abrindo os trabalhos com uma pegada praticamente percussiva, O que foi devera (Milton/Brant) funciona quase como mote: “Se muito vale o já feito/ mais vale o que será/ e o que foi feito/ é preciso conhecer/ para melhor prosseguir”. Os dois conhecem bem a versão original e cuidaram de interpretar a canção fugindo da força dramática de Elis e achando caminhos próprios. O que será (Chico Buarque), a segunda faixa, fica entre silêncio de igreja e intimidade de pé de ouvido.

A épica Ponta de areia (Milton/Brant) surge grave como deve, solene como precisa ser. Na sequência, San Vicente (Milton/Brant) traz uma latinidade contida, mas eficaz. A trilogia de pegada mais política se fecha com Caxangá (Milton/Brant), em que impressiona a atuação quase visual do violoncelo, emoldurando a voz para que o canto de trabalho não perca sua força.

Faixa mais curta do disco, com pouco mais de dois minutos, a folia Calixbento (adaptada por Tavinho Moura) faz bem a ponte entre a religiosidade da rua e da igreja. Aqui, sem dúvida, a ideia original de incluir a percussão de Naná Vasconcelos seria bem-vinda. Já Cravo e canela (Milton/Ronaldo Bastos) soa como música de balé. Poderia estar na trilha original de Maria, Maria, do Grupo Corpo.

Para reler Encontros e despedidas (Milton/Brant) e Canção amiga (Milton/Carlos Drummond de Andrade), a voz fica como fala, narrativa, mas com uma dinâmica que ostenta momentos dramáticos, sem sustos. Conforto para quem canta e toca e para o ouvinte.

A belíssima Mistérios (Joyce Moreno/Maurício Maestro) ganha contornos de intimidade, de conversa ao pé de ouvido entre amantes. O clima sugere o álbum Voz e suor, de Nana Caymmi e César Camargo Mariano. Desarmada e despida da sua pujança original, Travessia (Milton/Brant) emociona pela delicadeza da releitura. E o clássico latino Volver a los 17 (Violeta Parra) recebe aqui sua versão mais contida, mas vestida de baile.

Antes de chegar ao final, em um seguro fim de viagem no Cais (Milton/Ronaldo Bastos), com um fade final denunciando, mais uma vez, as intenções de menos ser mais, Zélia e Morelembaum ainda duelam num Beijo partido (Toninho Horta), em que o grito vira sussurro, quase pétala. Ao fim dos 45 minutos, a sensação de acerto de um projeto que, segundo intenção dos dois, ainda deve render mais horas de palco e estúdio.

Uma história de afeto

Como revisitar a obra de Milton Nascimento, homenagear esse mineiro e, ainda assim, se distanciar das versões originais de suas canções, tão enraizadas no nosso imaginário? As respostas estão no disco invento , em que Zélia Duncan e Jaques Morelenbaum interpretam o cantor e compositor. O trabalho registra o encontro repleto de afetividade de Zélia e Jaques, e seus respectivos instrumentos: a voz e o cello. Daí as composições de Milton e as canções de outros autores, que ficaram emblemáticas em sua interpretação, selecionadas para o repertório, soarem tão familiares e, ao mesmo tempo, tão renovadas. A presença solitária do cello de Jaques e o canto minimalista de Zélia, quase recitando as letras das músicas, causam esse efeito.

Cada um deles é conectado à obra de Bituca à sua maneira. Jaques se recorda de quando acompanhou Milton na turnê do álbum Minas (1975), fazendo parte de uma “superbanda”. “Lembro-me de minha emoção de tocar com essas feras em ginásios gigantescos e lotados, com média de 25 mil pessoas, inacreditável!”, diz ele. Zélia conta que a primeira música que cantou na vida, quando tinha 16 anos, em Brasília, foi Fazenda, do disco Geraes (1976). “Se você se sente segura para abrir o show com uma música de um repertório de um cantor, é porque já o ouvia há muito tempo. Então, o Milton já rolava na vida e na família. A voz dele tem gosto, tem cheiro, tem a cara da minha casa. Milton está na minha essência.”

Mesmoo assim, o desafio era grande. Zélia se perguntou: “Cantar Milton tudo bem, mas o que pode ser inusitado?”. Veio, então, a resposta. “Cantar Milton sem instrumento de harmonia. A obra do Milton é tão intocável para nós que a conhecemos, os arranjos estão no seu coração. Essa foi a graça que descobri com o Jaques: é quase que um truque chamá-lo, porque você chama só um instrumento, mas é um cara que corresponde a uma orquestra”, diz a cantora e compositora. “Ele sugere um arranjo grandiloquente que o Milton faz, mas ele é só um.”

O duo é equilibrado, com voz e cello se alternando e se complementando. Há momentos em que eles caminham lado a lado e, em outros, se encontram. Os dois têm o mesmo peso nesse trabalho. “O Jaques não fica me buscando como um violão me buscaria. Faz a parte dele – claro, integrado comigo e eu com ele –, mas são duas pessoas desempenhando ali. É um desafio muito grande para mim como cantora”, afirma Zélia.

Menos é mais

Conhecida por sua voz grave poderosa, Zélia preferiu aqui interpretações mais suaves. Herança clara, e confessa, de sua experiência no projeto Totatiando, dedicado à obra de Luiz Tatit “Tem a ver com meu jeito de olhar a música, a vida, o quanto aprendi com o Tatit, num extremo que acho maravilhoso e privilegiado de que o menos é mais e que o canto veio da fala”, observa ela. “Então, por que vou pegar o que uma das vozes mais impressionantes de todos os tempos cantou e ficar tentando fazer um vozeirão? Acho que seria tão inútil, acho que esse trabalho está chamando para o avesso, a beleza do avesso.”

O show nasceu antes do disco. Em 2015, o produtor André Midani chamou Zélia para participar de seu projeto Inusitado, cantando músicas de Milton. Depois, foi a vez de Jaques Morelenbaum ser convidado, conta o músico. Naná Vasconcelos também estaria no projeto. “Mas infelizmente ele se foi antes de realizarmos o concerto”, diz Jaques. “Daí veio a dúvida de substituí-lo, e por quem. Já tínhamos um nome, ou melhor uma lista de preferidos, mas afinal resolvemos encarar o desafio (autodesafio) de traduzir Milton para a linguagem voz e cello, minimalista.”

Os dois fizeram algumas apresentações. O próprio Milton assistiu ao show deles no Rio – “foi a maior emoção pra gente”, lembra Zélia. E o desejo de transformar aquele projeto em disco surgiu naturalmente. “Creio que, desde o primeiro momento em que transformamos teoria em prática e efetivamente ouvimos os sons de nossa ‘orquestrinha’ de cello e voz, já veio a vontade de registrar isso, e mais, a vontade de fazê-lo com um repertório muito mais extenso, dada a quantidade de pérolas que encontramos nesse universo ‘miltoniano’ que não pudemos incluir nesse espetáculo e disco agora lançado”, afirma Jaques.

Diante de uma obra tão ampla, Zélia conta que ela e Jaques montaram suas listas de canções, para depois cruzá-las. Muita coisa também foi definida nos ensaios. “É diferente você pensar e realizar. Quando você vai cantar, pode se apropriar daquilo. As músicas vão se sobressaindo à medida que você vai exercitando, e assim foi com a gente também”, diz ela.

Jaques conta que a escolha das canções se deu por critérios afetivos, e democraticamente. “No caso da Zélia, creio que as poesias a serem cantadas tiveram uma preponderância sobre as demais, assim como no meu caso, a estrutura melódico/harmônica/rítmica era o que mais me seduzia e atraía”, comenta. (Estadão Conteúdo)

invento
. Zélia Duncan e Jaques Morelembaum
. Biscoito Fino
. 14 faixas
. R$ 34,40

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