Conheça as delícias do único restaurante de Portugal com duas estrelas no Guia Michelin

Restaurante Belcanto cobra 145 euros (R$ 617) por um almoço de 13 etapas, e faz a experiência valer cada centavo

por Eduardo Tristão Girão 28/10/2015 10:06
Eduardo Tristão Girão/EM DA Press
Ambiente do Restaurante Belcanto, em Lisboa, com citação de verso de Fernando Pessoa na estante (foto: Eduardo Tristão Girão/EM DA Press )
Lisboa -
São 145 euros por um almoço. Não um qualquer, mas o menu degustação mais longo do Belcanto, primeiro restaurante a ser distinguido com duas estrelas pelo Guia Michelin em Portugal. À frente dele está José Avillez, lisboeta de 36 anos, que hoje encabeça o movimento de renovação da cozinha lusitana e comanda mais cinco casas. Não fosse o câmbio (que faz a conta ultrapassar os R$ 600), o valor não assustaria tanto para um endereço estrelado.

São nada menos que 13 etapas, reunindo receitas resultantes das últimas experiências de Avillez, além de um ou outro clássico que o chef apresentou nos últimos anos. Começa com azeitona, cenoura, alho e tremoço (espécie de fava, servida como aperitivo em cervejarias portuguesas), mas numa apresentação fora do habitual. A azeitona, por exemplo, foi reduzida à forma líquida e encapsulada com técnica de cozinha molecular para ser espocada com a mais leve pressão dos dentes.

Entretanto, engana-se quem pensa que o chef português tem feito fama com as espumas e outros malabarismos que o colega Ferran Adrià, do extinto restaurante espanhol El Bulli, ajudou a espalhar pelo mundo. No salão sóbrio, quase austero, do Belcanto, no charmoso Bairro do Chiado, em Lisboa, ele impressiona não só pelo domínio técnico, mas por levar os ingredientes locais a encontros inusitados (o que dizer de uma sobremesa que leva, basicamente, tangerina e cogumelo?), preservando seus sabores. Reconhecem-se todos, até os que não foram enunciados à chegada de cada prato.

De um lado, clientes satisfeitos pincelam o “leitão revisitado – 2012” com molho de pimenta enquanto falam inglês; do outro, pai e mãe portugueses tentam convencer o filho a provar a tal azeitona esferificada – sem sucesso. Enquanto isso, na mesa do repórter, chega um dos clássicos do chef, “vigia, o fundo do ‘meu’ mar – 2013”: numa louça meio kitsch (com a imagem de peixinhos nadando entre algas no fundo), está delicadamente disposta uma coleção de moluscos e mariscos da costa lusitana com água do mar texturizada, leite de coco, suco de maçã e óleo de gergelim. Sabores bem definidos e pedacinhos de alga como plus.

Eduardo Tristão Girão/EM DA Press
Na cozinha, funcionários preparam cone de tartar de atum-dos-açores, que é servido em vaso de flor. (Detalhe do cone de tartar de atum-dos-açores ) (foto: Eduardo Tristão Girão/EM DA Press )
MONTEIRO LOBATO
No mais, ele mexe na sagrada sardinha dos conterrâneos, vira ao avesso o cozido à portuguesa (mais uma vez, mantendo os sabores originais), dá textura melosa ao bacalhau, combina rabo de boi com enguia defumada e até inspira-se num episódio do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, para criar “a horta da galinha dos ovos de ouro – 2008”, prato no qual combina ovo, cogumelo, avelã e folha-de-ouro, com alho-poró frito a fazer o papel da palha do galinheiro.

Num lembrete de que a qualidade do ingrediente fala alto em sua cozinha, o chef manda à mesa um carabineiro, camarão vermelho e gigante do Algarve (região mais ao sul do país). Meramente grelhado e servido com cinzas de alecrim, chega com o corpo em perfeito ponto de cocção (o sabor beira o doce) e a cabeça servida à parte, para que se alcance com uma pequena colher o “molho” natural que se forma ali com os sucos e entranhas do crustáceo, de sabor intenso e prolongado – é uma das criações deste ano. Um momento de iluminação – e que faz ter certeza de que os 145 euros já valeram a pena.

Mas não acabou. É hora da pré-sobremesa. O atendente anuncia simplesmente assim: “Pêssego e abóbora”. É outro experimento recente de Avillez, com elementos de texturas, formatos e cores diferentes no prato. Após ser questionado se os ingredientes são apenas aqueles dois, o funcionário sorri e diz que sim. Uma boa sacada, mas o ponto alto da seção doce do menu degustação fica por conta da “tangerina – 2010”. Trata-se de uma bola alaranjada com casca e interior feitos de suco congelado e espuma da fruta, respectivamente, além de sorbet e creme feitos dela. Folhas naturais ornam o prato, com migalhas doces de cogumelo que simulam a terra.

Depois de pouco mais de duas horas de uma experiência gastronômica de alto nível, chegam os petit fours, confeitos que anunciam o fim do almoço. Entre eles, um de azeite e outro de Amarguinha, licor de amêndoa típico português. Mimos delicados e de personalidade, que deixam boa impressão do que se experimenta. Apesar da variedade da extensa comilança, a exemplo de outros restaurantes estrelados, ali deixa-se a mesa tendo no estômago a sensação de leveza. A mesma que se sente no bolso, aliás. Mas vale cada centavo.
 
 
“Diria que é uma cozinha portuguesa revisitada. É alta cozinha, com bases técnicas clássicas, um bocadinho da minha formação francesa, inspirações da cozinha contemporânea espanhola e também produtos e técnicas portugueses. Ando cada vez mais a descobrir a cozinha portuguesa e a tentar que os nossos sabores sejam transmitidos na alta cozinha de forma delicada e intensa”, sintetiza o chef José Avillez. Para tanto, viaja, lê, come em lugares que não conhece e continua estagiando em cozinhas de colegas que admira.

Reiterando a fala mais comum entre os chefs atualmente, ele acredita que a técnica deve estar sempre a serviço do ingrediente, e não o oposto. Para criar um prato, conta, não há exatamente um método, mas o processo costuma ocorrer quase todo fora da cozinha: “Olho para um prato vazio e penso no que poderia fazer. Olho para uma maçã e penso no que poderia fazer. A realização de um prato é feita 80% fora do fogão. O cruzamento de elementos é feito mentalmente e isso ocorre mais nos meus momentos de descanso”.

As duas estrelas do Guia Michelin, feito inédito para um restaurante português, o alegram, mas o chef tende a ver os benefícios disso de maneira mais ampla. “Acima de tudo, isso é bom para Portugal. Não vejo como uma conquista pessoal, mas para a nossa cozinha. O número de turistas no Belcanto tem aumentado, gente que tem como principal objetivo da viagem visitar o restaurante. Isso proporciona negócios não apenas para a casa, mas para todo o entorno. Aos poucos, vão descobrindo o país como destino gastronômico”, observa.

Na opinião dele, Portugal poderia ter mais uma ou duas estrelas (atualmente, outras 13 casas têm essa distinção) e avalia que será preciso muito esforço para melhorar essa avaliação. E quando ele menciona a palavra esforço, não se refere apenas ao empenho na cozinha. “O Guia privilegia a durabilidade dos projetos. Aqui, muitas casas fecham com um ou dois anos, é uma pena. É preciso melhorar a consistência dos projetos, a gestão deles. Temos de dar o nosso melhor todos os dias, o que é difícil. Fazer almoços e jantares especiais a qualquer dia e hora é o grande desafio. Costumo dizer que, ao servir 200 jantares, se tivermos sido simpáticos em 198 não foi o suficiente.”
 
Eduardo Tristão Girão/EM DA Press
(foto: Eduardo Tristão Girão/EM DA Press )
Elo com o Brasil
 
José Avillez (foto) revela já ter recebido propostas para abrir restaurantes no Brasil, mas que não há nada previsto nesse sentido para o momento. “Tenho uma relação próxima com o Brasil. Tenho família no Rio de Janeiro, sou amigo de chefs locais. Já cozinhei com Alex Atala, Helena Rizzo, Tsuyoshi Murakami e Alberto Landgraf. Além disso, há uma relação especial da cozinha portuguesa com a brasileira, inclusive a de Minas, que é onde se nota mais essa influência”, conta. Ele sempre visita o país a trabalho, mas não deixa de arrumar tempo para comer sem compromisso. Não perdoa feijoada e picanha.

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