Italianos e descendentes deixam a sua marca no cenário gastronômico de BH

No meio-termo entre a tradição e a quebra de dogmas culinários, segunda geração de imigrantes à frente de restaurantes na capital mineira deixa de lado a formalidade e adota ambientes simples e despojados

por Eduardo Tristão Girão 16/04/2015 07:30
provincia.com.br/ Reprodução
Prato do restaurante Provincia di Salerno (foto: provincia.com.br/ Reprodução)
“Minha cozinha é de família. Lasanha, nhoque, capeletti. Não entendo nada dessas porcarias de hoje”, dispara a italiana Anella Peluso, que completa 95 anos na semana que vem. “É condimento, mamãe”, rebate Remo, um de seus nove filhos e proprietário do restaurante Provincia di Salerno, que ouve dela sem demora: “Eu falo porcaria!”.

A matriarca é memória viva do tempo em que Belo Horizonte tinha não só menos truques na cozinha, mas toda a cena gastronômica sendo construída. E os italianos tiveram papel importante nisso.

Entre os imigrantes do país europeu que para cá vieram, o clã é um dos mais significativos. Anella, que chegou em 1925, começou trabalhando em hortas que a família tinha pela cidade (uma delas ficava próxima ao cruzamento das avenidas do Contorno e dos Andradas). “Naquela época, mulher tinha cerimônia de mexer com lavoura. Nós, não. Levávamos tudo em balaios na cabeça, vendendo para os árabes da Rua dos Caetés e no mercado municipal”, lembra ela, que nasceu em Pisciotta, Sul da Itália (não por acaso, na provínica de Salerno).

Em 1950, ela e o marido, o também italiano Theodoro, abriram uma fábrica de massas – Pastificio Peluso – na Rua Maranhão, no Santa Efigênia, ao lado de onde Remo abriria, 33 anos depois, o Provincia. Da cidade italiana de Pistoia, foi trazido o maquinário para a produção de duas linhas de massas, uma mais popular e outra especial. Restaurantes, hospitais, escolas e armazéns do interior eram os principais clientes, mas também havia venda a varejo na porta.

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Chef do Provincia di Salerno com a mão na massa (foto: provincia.com.br/ Reprodução)
As velhas máquinas ainda funcionam, mas não são mais usadas, ficando expostas no restaurante que leva o nome da nonna, aberto em 1986 no Santa Amélia e hoje comandado por um de seus netos, Theodoro. A casa produz todas as massas diariamente (inclusive espaguete, o que é incomum), sendo uma das mais especiais o fusilli: diferente do habitual macarrão em forma de parafuso, é enrolado à mão com o auxílio de uma vareta de metal, ficando com formato de tubo. Tanto lá, como no Provincia, é servido com braciola e molho de tomate.

“Esse fusilli é feito como se fazia lá na região dos meus pais, é comida do dia a dia”, conta Remo. A receita é uma das muitas que Anella ensinou nos restaurantes da família (o que inclui o Pelusinho e os extintos Zia Pippina e Pippinela) e que, se hoje parece tradicional, não era vista assim no princípio. “Trouxemos a cultura do Sul da Itália. Abri o Provincia com a intenção de inovar. Na época, o pessoal não conhecia esse tipo de comida, mas a aceitação foi boa logo de cara”, lembra ele.

Com cardápio fiel às origens da família, música italiana (às vezes, trechos de ópera) e coleção de louças e quadros nas paredes, o público do Provincia vem sendo renovado, conta Remo. Entretanto, certos hábitos não mudam. “O pessoal gosta de ser bem servido, na prataria”, exemplifica. Daí manter em uso baldes de gelo antigos (fazem parte de coleção particular dele) e antigos pires de prata para servir o café. “Tenho expresso, mas não faço questão nenhuma de vender, pois prefiro o coado. O expresso brasileiro não tem gosto”, diz.

Paulo Filgueiras / Em / DA Press
O chef italiano Memmo Biadi, em seu restaurante Dona Derna, inaugurado em 1971 (foto: Paulo Filgueiras / Em / DA Press)
APRENDIZ
Antes de encarar a encrenca de fazer a comida típica de seu país na Belo Horizonte do início dos anos 1960 (sem os ingredientes de costume e para público com outras referências), o italiano Memmo Biadi foi aprendiz de torneiro mecânico, fez esculturas de cerâmica (quase sempre santos para igrejas) e, o que nem todos sabem, executou com o conterrâneo Alfredo Mucci os mosaicos da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em BH. Nascido em Monsummano Terme, na região da Toscana, ele chegou aqui aos 14 anos.

Só depois disso foi ajudar o pai no caixa do Fontana di Trevi, restaurante da família que funcionava no Gutierrez (onde hoje funciona o Cemitério dos Azulejos) e deu origem, em 1971, ao Dona Derna, em funcionamento até hoje, na Savassi. “Nessa mudança, não alteramos nada no cardápio”, lembra Biadi. Aliás, ao ler o cardápio atual, fica claro que muitos pratos de antigamente ainda estão por lá, o que inclui receitas trazidas pela mãe dele, Derna, e outras aparentemente inventadas (ou consagradas) no Brasil. Um retrato da época.

Estão lá, por exemplo, bisteca à fiorentina e filé à parmegiana, polvo à napolitana e camarão surprise, tiramisù e pudim. “Nós é que introduzimos a bisteca em BH. Papai foi a um frigorífico, falando italiano, e eu traduzi para o açougueiro o que ele queria”, diz. Apesar de já existir uma cultura gastronômica italiana na cidade àquela época, a comida que Derna e a família faziam era diferente, explica Biadi: “Havia casas como Cantina do Angelo e Rondinella, mas a nossa era toscana, tinha origem. Algumas dessas casas nem eram de italianos”.

Inicialmente, muitas receitas trazidas por eles da Itália nem puderam ser feitas. “Cogumelo porcini não existia aqui, tomate era complicado no princípio, o galeto era meio como um frango e as berinjelas e abobrinhas eram enormes”, exemplifica. Muitas vezes, continua, as massas al dente eram devolvidas para que fossem cozidas por mais tempo e, como não havia arroz italiano, o risoto era substituído por arroz à piemontesa (com creme de leite, manteiga e parmesão, para tentar reproduzir a consistência do “primo” europeu).

Com a abertura do mercado brasileiro aos produtos importados, nos anos 1990, fazer comida italiana ficou mais fácil, inclusive porque o público passou a conhecer melhor os ingredientes. Já à frente da cozinha, Memmo começou a criar pratos mais sofisiticados (ele fez o primeiro festival de trufas na cidade), que deram origem, em 1995, ao Vecchio Sogno, que abriu com o chef Ivo Faria e, até hoje, é referência em cozinha italiana no Brasil.

Italianos à moda mineira

A história dos italianos com a gastronomia em Belo Horizonte é antiga, mas isso não significa que as principais mudanças tenham sido feitas no passado. Nos anos 1990, uma nova leva de imigrantes teve papel importante na renovação dos restaurantes típicos por aqui. As bandeiras são diversas, do resgate do rigor na forma de servir os pratos à preocupação em tornar o salão menos formal.

Um dos casos mais emblemáticos é o do chef Pino Quaglia, que abriu um restaurante sem nome e com apenas 24 lugares em 1996, na Savassi, frequentado só por italianos nos primeiros anos. Foi batizado de La Scaletta em 1999, quando mudou de endereço e os brasileiros começaram a aparecer. “Servia muito polvo, lula, frutos do mar. Achava que a cidade era carente nisso. Muita gente aprendeu lá a comer frutos do mar”, lembra.

E até hoje não serve carne e massa no mesmo prato. Primeiro prato é uma coisa, segundo prato é outra. Não adianta insistir. “Nunca fiz e nunca farei. Se você quer comer tudo junto, vá a um self service. Hoje, outras casas tentam seguir a rigidez da regra, como Est! Est!! Est!!! e Pecatore. Era uma luta. Hoje, as pessas já se acostumaram a ver entrada, massa, carne. As pessoas também viajam mais, veem o que há lá fora”, afirma. Hoje, o restaurante se chama Pino e fica no Anchieta.

Curiosamente, apesar da profissionalização geral no ramo na última década, ele achava mais fácil trabalhar com peixes e frutos do mar antes do que agora: “Naquela época, havia muito aventureiro trazendo produtos no próprio carro e toda semana aparecia alguém no meu restaurante. Cheguei a pagar R$ 3,50 no quilo de lagostim de um cara que não sabia o que fazer com ele. Hoje estou na mão de duas lojas. Por outro lado, a qualidade é mais garantida”, afirma.

JAZZ


“Sou informal, não me enxergo em outro ambiente”, resume o chef Massimo Battaglini, à frente da Osteria Mattiazzi desde 1999. A casa, no Santa Efigênia, chamou a atenção desde o início pelo ambiente despretensioso e por ter sido aberta fora da Zona Sul. “Abrimos no improviso, jazz total. Era para ser um depósito de importação de vinho do meu sócio. Um amigo dele quis abrir uma osteria lá dentro e quem tinha experiência no ramo era eu. Fiz um cardápio de sanduíches e massas feitas num fogãozinho de R$ 99”, lembra.

O espírito descolado serviu de inspiração para abertura de suas outras duas casas, as interessantes Salumeria Central e Pecatore, na Floresta, mais especificamente na Rua Sapucaí, num ponto sem qualquer tradição gastronômica. “Dei sequência ao trabalho que Memmo Biadi, Remo Peluso, Salvatore di Monda fizeram. Depois é que comecei a trabalhar mais os frutos do mar aqui. Acredito ter trazido um pouco de leveza para os restaurantes, um pouco de alegria. A gente precisava de informalidade. Aliás, continuamos precisando”, diz.

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