Reportagem do EM acompanha ritual do Candombe do Açude

Uma das festas sincretistas mais importantes em homenagem à Nossa Senhora do Rosário foi realizada apenas com os moradores do quilombo da Serra do Cipó devido à pandemia

Leandro Couri 21/09/2020 04:00
ENVIADO ESPECIAL
FOTOS: Leandro Couri/EM/D.A Press
Ritual na Serra do Cipó reuniu os moradores do quilombo do Açude, que dançaram até o amanhecer (foto: FOTOS: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Jaboticatubas – “Tá caindo fulô! Tá caindo fulô! Cai no céu, cai na terra, eh tá caindo fulô”. O batuque para celebrar Nossa Senhora do Rosário foi até o amanhecer como de costume e somente o boi não saiu, mas também “pudera”: “Não é época pra isso!”, exclamou um candombeiro ao falar do ritual neste ano de pandemia – restrito, íntimo, mas fervoroso.

Mesmo somente com a família quilombola presente no Candombe do Açude, na Serra do Cipó, em Jaboticatubas, a 100 quilômetros da capital mineira, a reza aconteceu e os tambus, tambores seculares forjados em madeira bruta, rufaram a ‘noite toda’.
None
Reza e devoção à Nossa Senhora é feita com os tambus, tambores seculares forjados em madeira bruta

O Estado de Minas, por meio deste repórter, que acompanha há mais de 20 anos a história do lugar, reportou com exclusividade o ritual ancestral afrodescendente de grande expressão do estado. Um dia após a festa, como combinado, voltamos ao quilombo para mostrar, em primeira mão, as imagens captadas neste Candombe, o mais importante dos últimos tempos.

Em 2020, o ritual foi todo realizado pelos moradores da comunidade, com cerca de 120 pessoas e, como testemunha privilegiada, vi as várias gerações se revezando nas funções: reza inicial, procissão, reza na “casa aberta” de dona Mercês, como já foi citada na canção do saudoso compositor mineiro Flávio Henrique, hasteamento da bandeira de Nossa Senhora do Rosário e roda de batuque.

Porém, no ano da pandemia, não houve o tradicional boi que, após bandeira levantada, corre atrás de quem estiver por perto. “Só não teve boi, mas ele está aí, no terreiro afora para proteger e vigiar. Também não pôde vir turista e visitantes, mas teve muita alegria e renascimento. Foi um momento de magia com a família reunida pra ver realmente como a nossa fé está firme”, pontua Florisbela Santos, a Flor, filha de dona Mercês. 

A matriarca ainda completou: “Tive a oportunidade de apresentar o Candombe para a minha filha Amora só com a família de candombeiros e ela ficou apaixonada. Só chorou quando parou. Meus sobrinhos me impressionaram o tanto que eles estavam com vontade desse Candombe. Com certeza foi um dos mais bonitos, estamos todos em estado de graça, mesmo neste momento tão delicado”, orgulha-se.

Com a bandeira em riste, a roda se abriu e os candombeiros cantaram e dançaram a noite inteira. “O senhor me dá licença, preu cantar nessa baixada, nessa baixada oiá.” “Iê dindinha, agulha puxa linha dindinha. Iê conceito, o que Deus fez tá feito”, se revezaram nos versos até o raiar do dia: “Vamos embora que já é hora e até o galo já deu o fora. Saiu de casa, desceu o morro. A estrela Dalva já clareou”.

Considerada uma das festas sincretistas mais tradicionais em homenagem à Nossa Senhora do Rosário, e que acontece no segundo sábado de setembro, normalmente, neste dia, a pequena comunidade de apenas 120 pessoas chega a receber milhares de pessoas vindas de todos os cantos do mundo, mas neste ano somente moradores puderam estar presentes. Assim como nas primeiras festas, devotos voltam às raízes e fazem o ritual dos tambús, sem a presença de convidados, que se tornaram tão comuns nesta data. “A firmeza foi forte e valeu para todos, até mesmo para os que não conhecem o Açude”, frisa Flor.

Convidados com exclusividade para reportar o Candombe neste ano, “para mostrar a quem não pôde vir”, voltamos ao quilombo no dia seguinte ao evento para mostrar as imagens captadas. “É muito importante devolver isto pra gente. Infelizmente, quase ninguém que vem aqui volta pra nos mostrar o que levou”, se queixa Florisbela.

Com a luz da cozinha de dona Rita, outra filha de dona Mercês, a família de reuniu em volta do meu computador para ver os vídeos e fotos realizadas num documentário montado às pressas e que vai ser divulgado. “Quem não pôde vir poderá ver como foi e, em hora oportuna, estaremos juntos de novo”, comentou Flávio Santos, mais conhecido como Cuta.
None
"Tá caindo fulô! Tá caindo fulô! Cai no céu, cai na terra" foi o refrão repetido pela comunidade quilombola

MEMÓRIA VIVA  
Em outros anos, seria a roda de capoeira que “abriria os trabalhos” no final da tarde, antes da reza, ao lado do altar da santa, mas, neste ano de exceção sanitária, no local onde se faz a roda, haviam somente familiares conversando no banco de madeira, enquanto outras pessoas da família estavam envolvidas nos preparativos da festa e, para quem nunca esteve lá, nada transparecia alguma mudança na rotina.

“No dia que tem Candombe é um dia normal de tarefas. A gente trabalha, toca a vida normal, mas é o dia que a gente espera o ano inteiro. Acaba E a gente já está pensando na festa do ano que vem”, orgulha-se Rinaldo dos Santos, de 47 anos. Candombeiro da quarta geração desde o tempo da escravidão, Cotó, como é conhecido, se deixasse fazia Candombe toda semana. “Mas como é uma vez por ano, a gente fica esperando e é por isso que a gente não cansa, toca a noite toda e amanhece o dia numa boa”, conta outro filho de dona Mercês.

Segundo relatam os mais velhos do quilombo, foi após os tambus irem morar na comunidade, há cerca de 35 anos, que a festa, então, começou a ser celebrada naquele pedaço de chão, com remanescentes de escravos, que trabalharam para os senhores da região conhecida como Cipó Velho. 

“Antigamente, na minha adolescência, tinha aqui quatro Candombes de tradição: o de Lena, o na Zareia (área perto da Cachoeira Grande), o do senhor Marcelino e o de Laide, perto do asfalto. Depois, muitos foram mudando a religião e o pessoal parou de fazer. No Zareia, já tinha parado, Laíde e Marcolino viraram evangélicos e até Lena parou por um tempo, mas voltou após promessa para Nossa Senhora, depois de um acidente sofrido pelo filho dela”, detalha Cotó.

E foi após estes Candombes pararem de ser celebrados que os tambús foram morar no quilombo do Açude. “Depois que os Candombes de tradição pararam, os tambús vieram morar aqui em casa e meu avô Sabino Félix, chamado de vovô Bill, que era o pai da minha mãe, nasceu na senzala e cresceu juntos com os tambús. Daí, veio a ideia de começar o Candombe aqui no Açude, homenageando o aniversário do meu avô. Enquanto tiver um da família em pé, nós manteremos a tradição viva”, afirma Cotó.

MAIS SOBRE E-MAIS