João Gilberto dedilhou primeiros acordes da bossa nova em Minas

Em silêncio, como sempre gostou, o cantor e compositor se despede do mundo aos 88 anos

por Augusto Pio 07/07/2019 06:00
Orlando Suero/O Cruzeiro/EM/D.A Press - 27/11/1962
João Gilberto em foto de 1962: cantor e compositor brasileiro é considerado um dos mais importantes do mundo (foto: Orlando Suero/O Cruzeiro/EM/D.A Press - 27/11/1962)
O cantor, compositor e violonista baiano João Gilberto (1931-2019), considerado o pai da bossa nova, morreu ontem à tarde, no Rio de Janeiro. Nascido em Juazeiro, na Bahia, ele estava com 88 anos (completados em 10 de junho). A causa de sua morte não foi divulgada pela família no sábado. Odiado por poucos e querido por muitos, é preciso entender que o músico era um gênio. João criou um jeito suave de cantar e tocar violão, usando um ritmo meio que descompassado, que poucos sabem fazer igual a ele.

Para ouvir sua batida e sua voz, principalmente em shows, era preciso muita concentração e silêncio, por causa da maneira leve como o compositor executava as duas coisas. Exigente nos palcos, chegava a brigar com os técnicos de som e até exigir que o ar-condicionado fosse desligado para que não desafinasse o seu violão. O músico deixou a Bahia aos 26 anos, ainda nos anos 1950, com o objetivo de vencer na vida cantando e tocando no Rio de Janeiro, cidade na qual a música fervilhava.
O músico paulista Johnny Alf (1929-2010), que nos anos 1950 tocava piano e cantava em várias boates cariocas, dizia que todas as noites havia um cara que ficava ouvindo sua apresentação. Em entrevista ao EM, Alf contou que o rapaz chegava, se assentava, pedia água e fica observando-o. Ele imaginava que talvez fosse por causa dos acordes de jazz que ele introduzia nas músicas que interpretava. Mais tarde, Alf descobriu que o tal camarada era nada menos do que o próprio João Gilberto, que procurava copiar os tais acordes.

Com o violão embaixo do braço, se apresentou em inúmeros bares da cidade maravilhosa em busca de recursos para se manter e até ficar conhecendo pessoas famosas, como os cantores e compositores Tito Madi e Roberto Menescal. E, em 1958, João grava o seu primeiro disco em 78 rotações, pela Odeon. O disco trazia as canções Chega de saudade e Bim bom. Começava ali a sua carreira de sucesso.

O empresário e compositor mineiro Pacifico Mascarenhas foi amigo de João Gilberto  e exalta a genialidade do artista. “A música mundial perde um grande talento. Tive a oportunidade de conhecê-lo em 1956, em Diamantina, onde morou por uns tempos. É que a irmã dele e o cunhado, Péricles moravam lá. Mas, naquela época, ele ainda não era famoso, portanto muita gente nem sabia que ele estava residindo lá”, acredita.

Pacífico recorda que quem o apresentou ao músico baiano foi seu irmão Caetano Mascarenhas, que era muito amigo de João Gilberto. “Lembro-me que ficávamos conversando sobre música e tocando violão lá na terra de JK. E foi lá mesmo que ele começou a inventar, vamos assim dizer, a bossa nova, os primeiros acordes e a criar um ritmo que encantou o mundo inteiro. Ele tocava violão de uma maneira própria, ritmada e cantava de uma maneria ímpar. Poucos sabiam fazer como ele”, garante o compositor.

Ele conta que João voltou para o Rio de Janeiro e lá aprimorou o ritmo, passando a fazer composições já no novo ritmo. “Não chegamos a fazer músicas juntos. Certa vez, ele ficou de gravar uma música minha, cujo nome é Pouca duração, mas infelizmente isto não ocorreu. Acontece que, à época, ele era casado com a Astrud Gilberto, que também queria gravar a canção. Diante disso, ele deixou para ela gravar, porém Astrud mudou-se para os Estados Unidos e também não fez a gravação.”

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Com seu eterno violão em uma de suas últimas fotos

Pacífico diz  que, em outra oportunidade, João ficou de gravar uma outra composição dele, mas não apareceu no estúdio, embora tivesse garantido que iria lá fazer a gravação. “Aluguei um estúdio no Rio de Janeiro e combinamos dele participar do disco, mas ele não compareceu no dia marcado.” Por outro lado, o mineiro se orgulha de ter gravações caseiras de João Gilberto cantando algumas de suas músicas.

Pacífico conseguiu encontrar em antigas fitas cassetes algumas gravações caseiras de João Gilberto, inclusive com músicas de sua autoria. “Até encontrei uma com a minha canção Pouca duração, que ele gravou ao vivo em 1959, que até coloquei no YouTube. É uma gravação precária, mas já dá para sentir bem a maneira de como ele interpretava e de como a bossa nova já dava seus primeiros passos”, orgulha-se o compositor mineiro.

LEGADO O escritor carioca, Sérgio Sant'Anna, que escreveu o livro 'O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro' (1982) e relançado recentemente pela Cia. Das Letras, lamenta a morte do artista. “Estou muito comovido, mas acredito que todas as homenagens que poderia dedicar a ele, o fiz por escrito quando escrevi o livro. Infelizmente, todo mundo morre um dia e o gênio nos deixou. Mas fica o legado, pois a sua obra jamais será esquecida. Acredito que daqui a 100 ou 200 anos ainda ouviremos suas músicas. João era perfeccionista e muito competente.”

O cantor e compositor Bob Tostes Martins lamenta a morte do ídolo. “É uma pena, pois ele mudou a música brasileira. A partir dele a minha geração e, mesmo de antes de mim, passou a se interessar mais, porque a música brasileira não estava conectada com a anterior, ou seja, não estava falando com a anterior. Ele chegou com uma maneira completamente diferente, que chocava as pessoas. Alguns diziam até que ele estava cantando desafinado. Na verdade, ele revolucionou a concepção musical, no repertório, na maneira de cantar.”

Reprodução/Facebook
João Gilberto ao lado da Neta Sofia, de 3 anos (foto: Reprodução/Facebook )

Tom Jobim sempre fazia questão de dizer que, em pouco tempo, João Gilberto conseguiu influenciar toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores. Nos últimos anos o músico, morando no Rio de Janeiro, vivia recluso e muitos dizem que até passava por problemas financeiros. Coincidentemente, nos últimos dias, os familiares chegaram a publicar fotos de João, nas redes sociais, como a neta Sofia, que colocou uma foto do avô no Twiter. O velório sera nesta segunda-feira no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, mas a família ainda não confirmou o local. 

Disputa familiar marcou últimos anos

Sempre muito discreto em toda a sua vida, João Gilberto se viu nos últimos anos envolvido em uma disputa familiar envolvendo o produtor musical João Marcelo Gilberto,  seu filho com a também cantora Astrud Gilberto, e a meia-irmã, Bebel Gilberto, da união com Miúcha. João também deixou a filha Luísa, com a ex-mulher Cláudia Faissol.

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João Gilberto completou 88 anos ao lado da família, em 10 de junho (foto: Reprodução/Facebook )

“Os abutres já desceram para o apartamento do meu pai. Não haverá shows, nem caixão aberto (conforme o pedido dele) e peço a esses idiotas que me atacando, Maria, e minha família para que imediatamente se f****, e mostrem um pouco de respeito”, postou ontem João Marcelo no Facebook. "Gostaria de agradecer a Maria do Céu por estar a seu lado no final. Ela foi sua verdadeira amiga e companheira", escreveu,  em referência à moçambicana Maria do Céu Harris, com quem o músico morava.

O produtor musical acusa Bebel de ter interditado o pai sem seu consentimento. Em 2017, Bebel começou a mover um processo de interdição do pai. O motivo era sua idade avançada e sua situação financeira, precária – ele chegou a ser despejado do apartamento em que vivia no Leblon, zona sul do Rio. Ela também havia pedido proteção judicial contra o meio-irmão, que a acusava de estar roubando o dinheiro do pai. Com a interdição, a tutela de decisões sobre o compositor passou a pertencer à cantora.

No mês passado, Cláudia Faissol, mãe da caçula, afirmou em entrevista à Folha de S.Paulo que estava havia cerca de um ano sem poder ver o músico, e que, se as brigas entre os dois filhos mais velhos continuassem, ele morreria de tristeza.

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