Teremos uma epidemia de casos avançados de câncer

Os casos de câncer têm chegado a uma fase mais avançada de estadiamento, quando tratamentos mais complexos e agressivos se fazem necessários

Teyssier Gwenaelle/Pixabay
(foto: Teyssier Gwenaelle/Pixabay)

Enquanto a vacinação lenta coloca a população em estado de ansiedade e de medo, o combate a outras doenças, que já assolavam a população, segue quase parado. Com isso, pessoas que não tiveram seus exames de rastreamento e de confirmação de diagnóstico de câncer, realizados desde março de 2020, têm seus quadros clínicos intensificados.

Novas restrições motivadas pelo agravamento da pandemia diminuíram e até cessaram atendimentos não relacionados à COVID-19. Em muitas regiões do país, incluindo Belo Horizonte, o quadro de super ocupação da estrutura de saúde pelos casos dessa doença tem piorado a situação. 

Presumo que o resultado será uma epidemia de casos graves de câncer. As estatísticas de redução são variadas para os diferentes tipos de tumor, mas todas apontam para o mesmo cenário de atraso no diagnóstico. Os casos de câncer têm chegado a uma fase mais avançada de estadiamento, quando tratamentos mais complexos e agressivos se fazem necessários. 

As mulheres que não realizaram seus exames de rastreamento desde o ano passado - e que porventura tinham tumores de mama em estágio precoce -, este ano começarão a perceber sintomas mais avançados, como nódulos, feridas, secreções e outras alterações estruturais das mamas. 

É assustador não haver exatamente uma previsão de normalização. Alguns centros de saúde tiveram suas estruturas modificadas para receber pacientes de COVID. Cinco ou seis centros de saúde de BH, por exemplo, foram transformados em Unidade de Pronto Atendimento - UPAS, para que estas fossem convertidas em centros de internações de pacientes com COVID. Obviamente, o funcionamento original foi comprometido e as pessoas deixaram de ter acesso à uma estrutura normal de prevenção e rastreamento do câncer e de outras doenças. 

Por exemplo, nós, da Faculdade de Medicina da UFMG e outras faculdades, deixamos de atender nos postos de saúde com os alunos dos cursos de medicina. Com isso, várias pessoas atendidas por nós e pelas próprias equipes das UBS ficaram sem mamografia, sem exames clínicos e sem outras intervenções necessárias.

Se engana quem acha que o setor privado está em melhores condições. Mesmo na Saúde Suplementar muitos pacientes deixaram de ir ao médico, assim como muitos especialistas, em função da idade e outras condições pessoais, deixaram de atender. 

Além disso, não estamos conseguindo realizar as cirurgias para diagnosticar ou até tratar casos de câncer. Faltam insumos como anestésicos, relaxantes musculares e alguns tipos de materiais, como próteses e expansores teciduais usados também na reconstrução mamária, pois foi tudo consumido ou a produção foi interrompida durante a pandemia. Os poucos hospitais que ainda têm estoques estão direcionando esses materiais para os pacientes de COVID e para outras emergências médicas. Os mesmos insumos que usamos para uma anestesia geral em uma cirurgia da mama são usados nesses pacientes para fazer uma entubação.

Mesmo em algumas instituições privadas, como nas maternidades - que se encontram em uma situação de menor restrição por terem atendimento direcionado -, a orientação é marcar cirurgias apenas para pacientes com diagnóstico de câncer já confirmado. O restante precisa esperar. 

Então, a rede privada também está em um contexto desfavorável para o combate de doenças além da COVID. Tenho pacientes com lesões muito suspeitas para câncer na mama, ou outras situações, para as quais, no lugar de indicar uma cirurgia, precisei indicar outros procedimentos ou mesmo adiar uma segunda etapa da reconstrução mamária, para algum momento, quando amenizar a pandemia e os estoques de insumos ficarem regularizados.  

Sendo bem otimista, acredito que, a partir do meio do ano, pelo menos em Belo Horizonte, onde a vacinação está um pouco mais adiantada, mas muito abaixo do que gostaríamos, será possível esperar um desafogamento das estruturas de saúde. 

Apesar disso, pela quantidade de pessoas que deixaram de fazer diagnóstico, será necessário muito tempo para reduzir a enorme fila de espera, sobretudo no âmbito do SUS. O cenário é ainda mais nebuloso por podermos estar lidando com pacientes em estágios avançados. 

Talvez, seja necessário, desde já, que as instituições privadas e públicas se planejem e se organizem conjuntamente para a realização de forças tarefas de diagnóstico e tratamento de câncer. Precisaremos de verdadeiros mutirões de combate ao câncer!

E-mail: cemlucena@gmail.com