Gingko Biloba não protege contra perda de memória e demência, mas ainda vende milhões de dólares; entenda o que é 'reversão médica'

Processo de atualização do conhecimento médico melhora a informação sobre combate a doenças mas nem sempre chega à população

Pixabay /Open products facts
Gingkgo biloba, produto que promete combater a perda de memória e demência sem comprovação científica ainda arrecada centenas de milhões de dólares em vendas (foto: Pixabay /Open products facts)

Nos anos 1980, o arquiteto norte-americano e visionário Buckminster Fuller descreveu em seu livro Caminho Crítico que a curva de crescimento do conhecimento da humanidade começa a partir do ano 1 DC.

Foram necessários 1500 anos para o conhecimento humano dobrar pela primeira vez. Em 1750 o conhecimento humano dobrou de novo, levando portanto 250 anos para isso tenha ocorrido, ou seja, seis vezes menos tempo do que na primeira vez. Em 1900, o conhecimento humano já dobrava a cada 100 anos e, no final da 2a Guerra Mundial, passou a dobrar a cada 25 anos.

Hoje, estima-se que o conhecimento humano dobre a cada ano, e a velocidade de produção de conhecimento tem só aumentado.

Algumas previsões estimavam que, em 2020, o conhecimento humano dobraria a cada 73 dias. Contribuem para a aceleração desse processo o advento da aprendizagem de máquina e o avanço da inteligência artificial.

No caso do conhecimento médico, todo mundo espera que as novas práticas ganhem popularidade em relação aos antigos padrões de cuidado, com base em evidência robusta indicando superioridade clínica ou não inferioridade (quando não é melhor mas também não é pior que o padrão), com benefícios alternativos como, por exemplo, administração mais fácil e menos efeitos adversos. 

Os médicos tratam uma enorme variedade de condições que requerem uma ampla base de conhecimento em face da literatura em constante evolução. Conhecimentos que foram ensinados na faculdade de medicina e residência médica, ou que são promulgados ao público, podem não resistir a novas pesquisas e, de fato, serem revertidos devido a evidências de novos estudos de alta qualidade.

Situações em que as práticas médicas são implementadas e posteriormente consideradas ineficazes ou prejudiciais, quando comparadas com os padrões anteriores ou inferiores através ensaios clínicos randomizados conduzidos adequadamente, são chamadas de reversões médicas. Essas “reversões médicas” ocorrem quando novos estudos com melhor desenho metodológico, melhor controle e com maior poder científico, contradizem uma prática corrente que parecia consolidada.

Identificar práticas médicas que não funcionam se faz cada vez mais necessário. O uso continuado das práticas médicas inúteis acabam levando ao desperdício de recursos, prejudicando a saúde dos pacientes e a confiança na medicina.

O interesse por este tópico cresceu nos últimos anos. Em 2013, foi publicado na revista Mayo Clinic Proceeding uma revisão de 10 anos das publicações de artigos científicos originais em periódicos de alto impacto como o New England Journal of Medicine entre 2001 a 2010. Esse estudo envolveu o exame de 2044 artigos e identificou 146 reversões médicas. As reversões incluíram medicamentos, procedimentos, testes de diagnóstico, testes de triagem e até mesmo dispositivos de monitoramento e orientação de tratamento. Não teve uma única classe da prática médica que não tenha tido alguma reversão do padrão de atendimento descrito previamente.

Entre vários pesquisadores, dois autores médicos que têm estudado muito este assunto de “reversão médica” têm se destacado. Um deles é o Dr. Vinay Prasad, um hemato-oncologista e professor de medicina da Universidade de Oregon. O outro é o Dr Adam Cifu, um famoso clínico geral e também renomado professor da Universidade de Chicago nos Estados Unidos. Eles têm várias publicações em periódicos científicos revisando este tema. A quatro mãos, os pesquisadores escreveram um livro em 2015 que aborda essa questão polêmica e interessante envolvendo a prática médica atual. O nome do livro é Ending Medical Reversal, e não foi traduzido para o português.

Neste livro, Prasad e Cifu abordam com exemplos de casos concretos de modificação da prática médica após estudos de reversão médica. Remédios como o Vioxx e procedimentos como a vertebroplastia para dores nas costas estão entre os "avanços" médicos que se revelaram perigosos ou inúteis.

Em Ending Medical Reversal, Prasad e Cifu narram histórias fascinantes de todos os setores da medicina e exploraram por que as reversões médicas ocorrem, como são prejudiciais e o que pode ser feito para evitá-las. Eles exploraram a diferença entre as inovações médicas que melhoram o atendimento e aquelas que pareciam ser promissoras. Eles também esboçam um plano abrangente para reformar a educação médica, o financiamento e os protocolos de pesquisas, e o processo de aprovação de novos medicamentos para garantir que o que seja feito nos consultórios médicos e hospitais seja realmente eficaz.

Em um trabalho recente de julho de 2019 de Pradad, Cifu e colaboradores, foram identificadas quase 400 dessas práticas médicas em uma variedade de disciplinas e condições médicas. Essas práticas foram identificadas pela revisão de ensaios clínicos randomizados em 3 periódicos médicos de alto impacto (publicados entre 2003-2017), e representou quase todas as disciplinas médicas.

Os pesquisadores identificaram 396 reversões médicas ou práticas encontradas por meio de ensaios clínicos randomizados como sendo não melhores do que um padrão anterior ou até inferior ao padrão prévio de tratamento. Em 53% dos casos, uma revisão sistemática confirmou que o dispositivo, procedimento ou prática era de fato uma “reversão médica”.

No presente estudo, 13% de todos os ensaios clínicos randomizados foram “reversões médicas”; 29% das reversões foram encontradas no Lancet, 33% no NEJM e 39% no Journal of the American Medical Association (JAMA). A maioria dos estudos (92%) foi realizada em países de alta renda, com o restante feito em países de baixa ou média renda, como China, Gana, Índia, Malásia, Tanzânia e Etiópia, de acordo com a publicação. Foram encontradas reversões em todas as especialidades, sendo as doenças cardiovasculares (DCV) a categoria médica mais comum (20%), seguida da saúde pública/medicina preventiva (12%) e cuidados intensivos (11%).

Quanto ao tipo de intervenção, estudos sobre medicamentos foram os mais comuns (33%,), seguidos por um procedimentos médicos (20%), uso de vitaminas/suplementos (13%), dispositivos médicos (9%) e intervenções sistêmicas (8%).

O estudo sobre as reversões médicas destacou ainda a importância da necessidade do financiamento das pesquisas clínicas ser feito de forma independente, governamental e sem conflitos de interesses uma vez que a maioria dos estudos que encontrou reversão médica foi financiada por tais fontes (63,9%), com uma minoria sendo financiada exclusivamente pela indústria (9,1%).

Entre vários exemplos citados de “reversão médica” está a constatação de que o uso de Gingkgo biloba não protege contra perda de memória e demência, descrito em publicação de 2008, que mostrou definitivamente que este suplemento era inútil para esse fim. Mesmo assim, a venda de Ginkgo biloba ainda arrecada 249 milhões de dólares em vendas. Será que as pessoas simplesmente não entenderam ou não receberam a mensagem com a informação deste conhecimento?

A ocorrência de extrassístoles (batimento irregular do coração), quando frequentes e em determinadas situações como no Infarto Agudo do Miocárdio, está associada a um risco maior de morte. A flecainida, uma droga antiarrítmica, era usada para estabilizar os batimentos cardíacos de pacientes com extrassístoles. Nos anos 1990 a impressão geral era que a flecainida seria a melhor droga para tratar essa arritmia. Mas em 1992 um grande estudo chamado CAST (Cardiac Arrhythmia Supression Trial) demonstrou algo surpreendente: apesar de a flecainida diminuir as extrassístoles, por outro lado aumenta as chances dos pacientes morrerem. Obviamente essa conclusão estarrecedora foi uma reversão médica importante que levou ao abandono da medicação e que trouxe à tona a falibilidade de conclusões e modelos científicos.

Com o envelhecimento e degeneração das articulações, estima-se que 460 mil pacientes nos Estados Unidos realizem cirurgias a cada ano para tratar um lesão dos meniscos, uma cartilagem do joelho que pode se romper geralmente por causa da osteoartrite. A laceração é dolorosa e muitos pacientes temem que, se não forem tratados cirurgicamente, a dor permanecerá. Mas quando os pacientes com rompimento do menisco e artrite moderada foram randomizados para seis meses de fisioterapia ou cirurgia, ambos os grupos melhoraram, e na mesma proporção.

A vertebroplastia era um procedimento médico idealizado no final da década de 90 para tratar pacientes com fraturas da coluna vertebral causadas por osteoporose levando à dor crônica nas costas. O procedimento consistia em inserir através de uma agulha de um “cimento ortopédico” no osso fraturado. Com isso a fratura era corrigida e imaginava-se que melhoraria a compressão do nervo com consequente alívio da dor. Inicialmente os pacientes submetidos ao procedimento melhoraram muito, o que entusiasmava os pacientes e seus médicos. Anualmente um número crescente de pacientes era submetido a tal procedimento e, apesar da ocorrência de complicações ocasionais, geralmente o procedimento parecia funcionar bem. Em 2009 pesquisadores realizaram um estudo comparando 200 pacientes, sendo que metade foi submetida à vertebroplastia e com a outra metade foi feita uma simulação de cirurgia (funcionando como um placebo). Os pacientes do grupo “placebo” não receberam de fato a intervenção mas eram levados para o bloco cirúrgico, onde o “cimento” ortopédico era aberto, de tal forma que os pacientes podiam sentir o cheiro dele mas o cimento não era colocado. Em seu lugar era injetada apenas uma solução que não causava efeito. A conclusão surpreendente foi de que ambos os grupos de pacientes melhoraram da dor, e de maneira igual. A vertebroplastia não se mostrou superior a uma intervenção falsa (placebo).

Existem numerosas outras iniciativas e esforços para identificar práticas de baixo valor. Comentei em junho desse ano sobre isso aqui na coluna com o título O desafio do movimento das escolhas sábias, onde menos é mais. Uma delas, da American Board of Internal Medicine, que lançou a campanha Choosing Wisely (Escolhas Sábias), um apelo às sociedades profissionais médicas de várias especialidades diferentes para identificar os 5 principais diagnósticos ou práticas terapêuticas em seu campo que não deveriam mais ser oferecidos.

Na Inglaterra, o Instituto Nacional para Saúde e Excelência Clínica (NICE) tenta "desinvestir" de práticas de baixo valor, e identificou mais de 800 dessas práticas na última década. Algumas revistas médicas já apresentam uma seção específica contendo publicações referentes ao tema de "Menos é Mais" como no The Archives of Internal Medicine desde 2010.

Cada uma dessas maneiras de identificar “reversões médicas” ou práticas de baixo valor tem vantagens e desvantagens, mas identificar essas práticas pode ser desafiador pela sua heterogeneidade, a falta de métodos para identificar essas práticas, a dificuldade em aplicá-los à população correta ou a subpopulação, e o obstáculo de priorizar quais práticas são de mais ou menos valor baixo.

As reversões médicas identificadas nestes estudos do grupo de Prasad e Cifu não significam nem representam a palavra final para qualquer um destes práticas. Simplesmente porque estudos mais novos, maiores, mais bem-controlados ou projetados contradizem o padrão de cuidado não significa necessariamente que as práticas mais antigas estão erradas e as novas estão certas. Dito isso fica a mensagem que, em média, no entanto, os estudos melhor projetados, controlados e com maior poder de evidência alcançam mais conclusões válidas. No entanto, as reversões identificadas no mínimo colocam algumas práticas em questionamento. Em alguns casos, de fato, certas práticas médicas deveriam ser abandonadas após a reversão médica, enquanto outros justificam um novo estudo com investigações mais poderosas. 

É chocante saber que vários tipos de tratamentos, exames diagnósticos, rastreamentos ou dispositivos médicos têm sido utilizados em milhões de pessoas e bilhões de dólares são gastos, e muitos desses sem uma comprovação adequada por pesquisas de sua efetividade. E mais impressionante ainda é saber que pesquisas posteriores podem indicar que as impressões iniciais sobre determinados tratamentos estavam erradas. Mas por outro lado uma das maiores virtudes da pesquisa médica é a busca contínua para reavaliar isso. O cientista Carl Sagan (1934-1996) tinha uma frase importante que se aplica bem aqui neste cenário. Ele afirmava que "A ciência não é perfeita. Muitas vezes é mal utilizada. É apenas uma ferramenta. Mas é a melhor ferramenta que temos." 
 
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