A genômica e o desenvolvimento de vacinas para a COVID-19

Existem mais de 100 projetos de desenvolvimento de vacinas para COVID-19 em todo o mundo; 8 vacinas já estão em testes clínicos em seres humanos

CHANDAN KHANNA / AFP
(foto: CHANDAN KHANNA / AFP)

Vivemos uma verdadeira corrida entre as principais potências mundiais, que buscam em tempo recorde desenvolver uma vacina eficaz contra o COVID-19. De forma geral, uma vacina é projetada para proteger as pessoas antes de serem expostas a um vírus - neste caso, o novo coronavírus SARS-CoV-2, cuja infecção já acometeu mais de 20 milhões de indivíduos em todo o mundo e já matou mais de 700 mil pessoas, 100 mil somente no Brasil.

 

A função da vacina é “treinar” o nosso sistema imunológico para reconhecer e atacar o vírus quando o encontrar. As vacinas protegem tanto a pessoa que é vacinada quanto a comunidade, uma vez que os vírus não podem infectar as pessoas vacinadas, o que significa que as pessoas vacinadas não podem transmitir o vírus a outras pessoas.  Isso é conhecido como imunidade de rebanho.

 

Existem mais de 100 projetos para desenvolvimento de vacinas para COVID-19 em todo o mundo e 8 vacinas já estão em testes clínicos em seres humanos. Aqui, nem comentarei sobre a vacina russa, visto não haver nenhum dado científico publicado para análise. Mas, em relação às outras, acredito que toda a população precisa e quer entender quais são os seus fundamentos de desenvolvimento, em especial, das vacinas de DNA e RNA, que são as mais promissoras.


O que são coronavírus

 

O Coronavírus é uma família de vírus que causam infecções respiratórias. O novo agente do coronavírus (SARS-CoV-2) foi descoberto em 31/12/19, após casos registrados na China. Os primeiros coronavírus humanos foram identificados em meados da década de 1960. Outros coronavírus de importância são o SARS-CoV (causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave ou SARS) e o MERS-CoV (causador da Síndrome Respiratória do Oriente Médio ou MERS).

 

Frente ao grande poder de contágio do novo coronavírus e de sua letalidade em parte da população, a vacina possivelmente será a única forma de frear o seu poder devastador e colocar fim à pandemia vivenciada. No entanto, o desenvolvimento de uma vacina é um processo de longo prazo. É difícil dizer quando haverá uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. O desenvolvimento de uma vacina para uma nova doença infecciosa leva muito tempo, geralmente de 5 a 10 anos. Antes que uma vacina que funcione bem possa ser desenvolvida, uma quantidade substancial de pesquisas deve ser feita sobre o próprio vírus.

 

Além disso, a possível vacina também precisa ser testada clinicamente em humanos para segurança e eficácia. Para que uma vacina cumpra todas as etapas de pesquisa e possa, então, ser comercializada, ela precisa passar por três fases principais de desenvolvimento. Todas estas fases devem ser concluídas de maneira adequada, mas podem ocorrer ao mesmo tempo - especialmente se uma vacina for necessária rapidamente, como é o caso do novo coronavírus.

 

- Fase I: a vacina é administrada a voluntários saudáveis para verificar se é segura e qual a dosagem (quantidade) mais eficaz.

- Fase II: a vacina é administrada a grupos-alvo que seriam vacinados para se identificar qual dosagem (quantidade) é mais eficaz e como o sistema imunológico responde a ela.

- Fase III: a vacina é administrada a um grupo ainda maior, consistindo de milhares de pessoas, para se avaliar o quão bem a vacina funciona para prevenir COVID-19. As pessoas que recebem a vacina são comparadas com pessoas que não receberam a vacina através de um sorteio (estudo randomizado).

 

Somente quando todas as fases forem concluídas com sucesso, a vacina pode ser aprovada para lançamento no mercado. Depois, pode ser usada em consultórios ou centros de vacinação. Existem cinco tipos diferentes de vacinas. Cada um funciona de uma maneira distinta.

 

1: Vacinas vivas atenuadas

 

Algumas vacinas bem conhecidas para outras doenças infecciosas são baseadas em versões enfraquecidas de um vírus. Estas são conhecidas como vacinas vivas atenuadas. Os vírus são enfraquecidos para reduzir a virulência por meio da cultura de células em um laboratório e, em seguida, processados em uma vacina. Depois que as pessoas entram em contato com esses vírus atenuados por meio da vacinação, o vírus não será capaz de se replicar facilmente em humanos. Como resultado, nosso sistema imunológico tem tempo suficiente para aprender como lutar contra essa forma mais fraca do vírus. Essa abordagem permite que nos tornemos imunes sem ficarmos doentes.

 

2: vacinas inativadas

 

As vacinas inativadas contêm vírus ou bactérias que foram mortos, inteiros ou em pedaços. Quando nosso sistema imunológico detecta esses vírus ou bactérias mortos ou seus fragmentos, ele pode aprender a reconhecer os fragmentos. Depois disso, estamos protegidos. Se formos infectados pela versão ativa do vírus ou bactéria no futuro, nosso sistema imunológico reconhecerá o vírus ou bactéria e responderá mais rapidamente para nos proteger da infecção - portanto, não ficaremos doentes. A vacina chinesa CoronaVac para a COVID-19 é uma vacina inativada. Seu desenvolvimento conta com a parceria do Instituto Butantan, em São Paulo com a empresa chinesa Sinovac Biotech. Ela mostrou segurança e boa resposta imune em 600 voluntários durante a fase II de testes. Atualmente, encontra-se em fase III, que inclui 9 mil voluntários brasileiros.

 

3: Vacinas de subunidade

 

Se a vacina contiver apenas fragmentos específicos de um vírus ou bactéria, é conhecida como vacina de subunidade. Quando essa subunidade pode ser reconhecida pelo sistema imunológico, é chamada de antígeno. Uma extensa pesquisa está sendo realizada em vacinas de subunidade para proteção contra COVID-19. Uma subunidade importante do SARS-CoV-2 é a proteína spike ou proteína S, que está ligada ao exterior do vírus.

 

O vírus usa a proteína S (spike ou espícula) para fazer contato com outra proteína localizada no exterior das células em nossas vesículas pulmonares. Se o vírus se liga a uma célula humana através da proteína S, poderá penetrar no exterior e entrar na célula. Então, a célula é infectada. Como a proteína S desempenha um papel essencial no processo de infecção, ela é alvo de muitos desenvolvedores de vacinas. Se formos infectados pela versão ativa do vírus no futuro, nosso sistema imunológico reconhecerá imediatamente o vírus e não ficaremos doentes.


4: vacinas de DNA e RNA

 

As vacinas de DNA e RNA adicionam um novo pedaço de material genético - ácido desoxirribonucléico (DNA) ou ácido ribonucléico mensageiro (mRNA) - a células imunes específicas em nosso corpo. As células-alvo geralmente são de um tipo específico, que absorvem e decompõem vírus ou bactérias. Essas células mostram, então, um fragmento do vírus ou da bactéria (uma subunidade conhecida como antígeno) a outras células do sistema imunológico (linfócitos) para que aprendam a reconhecer o antígeno.

 

É por isso que essas células do sistema imunológico também são chamadas de células apresentadoras de antígenos (ou células dendríticas). As células que aprendem a reconhecer o antígeno são chamadas de linfócitos. As vacinas de DNA e RNA permitem que as células apresentadoras de antígenos detectem um fragmento do patógeno sem que seja necessário absorver e decompor a versão viva do vírus ou bactéria.

 

Se formos infectados pela versão viva do vírus ou bactéria no futuro, os linfócitos reconhecerão o antígeno do patógeno, neutralizarão o vírus ou bactéria e não ficaremos doentes.

 

Papel do RNA e das proteínas na replicação do vírus e como isso é usado na vacina

 

Dentro do corpo humano, o RNA mensageiro (mRNA) fornece as informações que o DNA usa para fazer proteínas, que regulam nossas células e tecidos. Os vírus usam o RNA para um propósito muito mais deletério.

 

Eles não têm a maquinaria celular própria para se replicar. Por isso, invadem células saudáveis, por meio da ligação de uma das 4 proteínas virais (a proteína S, que se liga a um receptor celular chamado ACE-2), e então aí se propagam dentro de nossas células, mais especificamente em organelas chamadas de ribossomos. Dentro dos ribossomos, o mRNA do novo coronavírus forma novos RNA’s virais por meio de uma enzima chamada replicase (ou RNA polimerase). Quando os vírus invadem o tecido respiratório, isso se torna particularmente, deletério, pois dificulta a troca gasosa que normalmente ocorre nos alvéolos pulmonares. A partir daí, os vírus podem se disseminar para quaisquer outros órgãos ou tecidos do nosso corpo. 

 

Uma vacina de mRNA contém uma versão sintética do RNA que um vírus usa para codificar proteínas, no caso da vacina contra o novo coronavírus, a proteína S. Essa vacina não contém informações genéticas suficientes para produzir proteínas virais: apenas o suficiente para induzir o sistema imunológico a pensar que um vírus está presente para que entre em ação e produza anticorpos, que são proteínas projetadas especificamente para combater um vírus.

 

As vacinas de mRNA da Moderna, empresa americana de biotecnologia e a da indústria farmacêutica Pfizer já estão em fase III de testes. A BNT162 da Pfizer está sendo desenvolvida em parceria com a empresa BioNTech. Dos 30 mil voluntários testados, mil serão brasileiros.

 

5: vacinas de vetor

 

Os pesquisadores podem modificar os vírus existentes para atuar como vacinas. Quando isso acontece, eles não são mais vírus, mas vetores. Os vírus foram adaptados de forma que não apresentem exatamente o mesmo comportamento dos vírus não modificados. A diferença em comparação com os vírus reais é que os vírus vetoriais não pode mais fazer alguém doente; frequentemente não podem se replicar, e; não apenas contêm seu próprio RNA ou DNA, mas também um pedaço de RNA ou DNA de outro vírus dentro deles.

 

Todos os pedaços de RNA ou DNA podem funcionar como um antígeno, então, as células em nosso sistema imunológico irão reagir ao vírus vetor, bem como a parte do vírus da vacina. É assim que a imunidade é desenvolvida. Uma categoria de vírus frequentemente adaptada a um vetor são os adenovírus.

 

Os adenovírus são um grupo de vírus aos quais as pessoas são frequentemente expostas, mas que não causam nenhuma doença ou causam apenas doenças leves. Como os adenovírus são tão comuns, nosso sistema imunológico é muito bom para lidar com uma infecção por adenovírus.

 

Vacina de Oxford (AZD1222) na prevenção da COVID-19

 

Um vetor de vacina para adenovírus chimpanzé (ChAdOx1), desenvolvido no Jenner Institute de Oxford, foi escolhido como a tecnologia de vacina mais adequada para uma vacina SARS-CoV-2, pois pode gerar uma forte resposta imune a partir de uma dose e não é um vírus replicante, portanto, não pode causar uma infecção contínua no indivíduo vacinado. Isso também torna mais seguro dar a crianças, idosos e qualquer pessoa com uma condição pré-existente, como diabetes.

 

Os vetores adenovirais do chimpanzé são um tipo de vacina muito bem estudado, tendo sido usado com segurança em milhares de indivíduos, com idade entre uma semana e 90 anos de idade, em vacinas direcionadas a mais de dez doenças diferentes.

 

Conforme o exposto acima, os coronavírus possuem espinhos em forma de taco em seu revestimento externo (proteínas S). Respostas imunes de outros estudos sobre coronavírus sugerem que esses são um bom alvo para uma vacina. A vacina de Oxford (AZD1222) contém a sequência genética desta proteína de pico de superfície dentro da construção ChAdOx1.

 

Após a vacinação, é produzida a proteína de pico de superfície do coronavírus, que ensina o sistema imunológico a atacar o coronavírus, se mais tarde infectar o corpo. Uma característica de extremo interesse é que a vacina de Oxford é dupla, ou seja, ela estimula tanto a imunidade humoral (produção de anticorpos) quanto a celular (Linfócitos T). O estudo de fase 1 publicado na última semana com 1000 voluntários na prestigiada Revista The Lancet foram muito auspiciosos e encorajadores.

 

Os pesquisadores verificaram que a vacina produziu anticorpos e células T “assassinas” para combater a infecção. Anticorpos neutralizantes, que são vitais para se obter proteção contra o vírus, foram detectados nos participantes após 28 dias. A vacina foi bem tolerada e não houve eventos adversos graves, de acordo com os pesquisadores. Fadiga e dor de cabeça foram os mais relatados.

 

Outros efeitos colaterais comuns incluem dor no local da injeção, dor muscular, calafrios e febre. Provavelmente serão necessárias duas doses para imunização duradoura. Aguardemos otimistas os resultados definitivos do estudo de fase III, já em andamento e com resultados previstos para mais alguns meses!

 

*André Murad é oncologista, pós-doutor em genética, professor da UFMG e pesquisador. É diretor-executivo na clínica integrada Personal Oncologia de Precisão e Personalizada e diretor Científico no Grupo Brasileiro de Oncologia de Precisão: GBOP. Exerce a especialidade há 30 anos, e é um estudioso do câncer, de suas causas (carcinogênese), dos fatores genéticos ligados à sua incidência e das medidas para preveni-lo e diagnosticá-lo precocemente.

 

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