Coração de mãe: A solidão da lua vermelha

"É hora de repensar como conduzir nossos passos, atitudes, pensamentos, e como acabar com os abusos. Chega de estupro, de pancadaria, de tiro na cara"

por Déa Januzzi 21/01/2019 07:00
Ilustração/EM
(foto: Ilustração/EM)

Hoje, quando a superlua de sangue surgir no céu, vou anunciar em nome de todas as mulheres o eclipse de um mundo velho. Quero apagar as estatísticas que somam 33 assassinatos de mulheres nos primeiros 11 dias de 2019. Parênteses: infelizmente, hoje, os números devem ter aumentado, mas vou aproveitar o aparecimento da lua vermelha para limpar todas as mãos sujas de sangue de um mundo masculino autoritário e inflexível, que diminuiu, baniu, pisoteou, enclausurou, acendeu fogueiras para incendiar as sábias senhoras das raízes e da cura. Um mundo que excluiu, maltratou, maltrata e inferniza o feminino que há em cada um de nós.

Em nome de todas as mulheres, quero que os tiranos se lembrem de que somos apenas um cisco no universo, poeira de estrela a pedir socorro diante da barbárie. Quero lembrar aos tiranos que eles estão matando a melhor parte de si mesmos, a salvação do planeta, porque só o feminino sabe o que é o cuidado essencial, conhece o poder do útero cósmico que abriga o que é fértil. Em nome de todas as mulheres, lanço a nave da salvação, dou um jeito de chegar mais perto da ternura, de curar feridas ancestrais, de acalmar meu coração agitado com essa lua de sangue.

Em nome de todas as mulheres maltratadas, violentadas, humilhadas e ofendidas, quero lembrar que a Lua é mais poderosa que a mesmice do ser humano. Ela não compactua com atentados nem com crimes banais cometidos em nome de nada, do fútil e superficial. Em nome de todas, pergunto: quem precisa de homens assim? Por que eles estão caçando as mulheres?.

Apesar do eclipse, vou sair em busca de mim mesma, pois estou farta de tantas atrocidades. Pelo caminho encontro a anciã Vitória Régia, que, como a flor amazônica, tem raízes profundas. Mulher sábia, centenária, que conseguiu chegar aos 103 anos - digo centenária pois não gosto da denominação contemporânea de supervelha - ela corta o meu caminho para dizer aos tiranos: “Que descemos das estrelas mais brilhantes não tenho nenhuma dúvida. Nós mulheres somos as flores desse planeta, os perfumes mais raros, as cantigas que tocam a alma. Então, por que nos deixamos ofuscar quando aqui aportamos? Será que esquecemos quem somos? Volto a lembrar para que não se esqueçam nunca: somos terra fértil onde sementes germinadas trazem novos seres à luz desse planeta. Somos eixo, pilar, colo, intuição. Somos mágicas sem varinha de condão. Por que estamos em silêncio? Por que nos submetemos à extinção da espécie?”.

Sem saber das estatísticas, Vitória Régia pergunta: “O que tira nosso poder dessa forma? O que nos acontece? Que medo é esse que chega ao cúmulo da violência, dos abusos mais sutis e perversos? Imagine um mundo sem mulheres, sem o crepitar das labaredas no fogão a lenha, sem xales no inverno de nossas vidas? Sem um colo de mãe? Sem o abraço quente da companheira? Venham, senhoras sábias, explicar por que os homens do Brasil estão querendo acabar com as mulheres por tão pouco. Eles não sabem viver sozinhos? Não sabem falar de sentimentos? Não conseguem enxergar além do que chamam supremacia de gênero?”.

Em nome de todas as mulheres, sob o poder da lua de sangue, preciso apagar os rastros de um mundo tão masculino, patriarcal e machista que nunca deu certo, que está falido. Um latifúndio improdutivo, em desuso. Por medo ou por omissão contribuímos para que ele continue a existir. É hora de repensar como conduzir nossos passos, atitudes, pensamentos, e como acabar com os abusos. Chega de estupro, de pancadaria, de tiro na cara.

Chega de educar filhos garanhões, domadores de cavalos e de búfalos, que gostam de rodeios e de laçadas. Não há mais lugar para esse tipo de ser, mesmo que pareça o contrário. Sob o eclipse da lua de sangue, digo: chega de educar filhas para a beleza do corpo, para a competição, a intriga, o desrespeito e a desvalorização da outra.

É preciso aprender com as coisas do coração, que ensina o amor, a compaixão, a justiça, o perdão, a presença mental, a tolerância e a paz. Essa educação é necessária, desde o jardim de infância até o ensino médio e as universidades. Uma aprendizagem social, emocional e ética. Dar força a uma iniciativa mundial para educar o coração e a mente nesta era de intolerância, como alerta o 14º dalai-lama, Tenzin Gyatso, líder espiritual do Tibete e Prêmio Nobel a Paz.

A anciã Vitória Régia será a minha companhia nessa noite de superlua. Só quem enxuga as lágrimas da natureza pode entender o choro de mulheres que sofrem. No caminho encontro também Aurora, uma psicóloga aposentada. Só quem tem nome de amanhecer pode analisar: “Em algumas culturas, a morte brutal das mulheres é inclusive um direito legítimo do homem, vê se pode! Chego a pensar que o assassinato da mulher é uma espécie de 'psicose da misoginia', quando o ódio à mulher revela a sua face de loucura, de insanidade. Seja lá por qual motivação um homem se julga no direito de assassinar uma mulher, estará cometendo um crime bárbaro e inaceitável. Doentes de misoginia, eles não se encaixam em nenhuma ordem animal porque, diferentemente de qualquer outro bicho, matam por vingança, por inveja, por prazer ou por puro ódio. São estupradores da alma”.

Perdido, meu filho único - que eduquei para um mundo que ainda não existe - vê estrelas e planetas num céu sem estrelas e sem planetas, onde apenas a lua vermelha vai dar as caras. Será que vão querer matar a Lua por causa da cor vermelha? Sinto muito, mas a Lua é soberana, não dá atenção à idiotice dos homens.

Com os olhos grudados no universo - uma de suas paixões -, o filho diz que a via láctea mandou um beijo para mim. Eu mando outro e ele conversa sério com o céu e diz que agora pode chover: “Chove, chove, chove”, ele pede, para acalmar o fogo que pulsa dentro dele. Aí, ele detona a solidão da superlua com a música Beatriz, de Milton Nascimento, que diz assim: “Será que é loucura? Será que é cenário?” e a voz do cantor penetra nas minhas profundezas, nos recôncavos da minha alma. E vem depois com Elis cantando Se eu quiser falar com Deus, de Gil. “Se eu quiser falar com Deus tenho que comer o pão que o diabo amassou com os pés.” Ainda bem que na play list dele não cabem gêneros musicais como sertanejo universitário, funk, pagode, axé e sei lá que nomes recebem essas drogas avassaladoras que transformam homens em animais ferozes.

Hoje, noite de lua vermelha, vou seguir cantando a música Cigarra, de Violeta Parra, na voz de Mercedes Sosa, duas mulheres à prova de fogo, que desnudaram para o mundo aquilo que o feminino não pode mais ocultar: intuição, sensualidade, amor, gentileza, paciência, força e coragem para enfrentar os vendavais da vida. “Tantas vezes me mataram/Tantas vezes morri/Entretanto estou aqui/Ressuscitada”.

* Déa Januzzi escreve esta coluna quinzenalmente