Saudade de quem já se foi se intensifica no fim do ano: como superar o luto e encontrar a paz?

Fim de ano é momento de reflexão e lembranças. Com a emoção à flor da pele, a saudade dos que morreram é maior e se intensifica. Como lidar com essa falta?

por Lilian Monteiro 11/12/2016 10:00

Valf / EM / D.A Press
Apesar de ser finito, grande parte dos seres humanos não consegue conversar, discutir e pensar sobre esse seu limite (foto: Valf / EM / D.A Press )
“O que é a vida?” Essa indagação, feita pelo premiado diretor de teatro, ator e apresentador Antônio Abujamra no talk show Provocações, da TV Cultura, por 15 anos, é das mais inquietantes. Dos seus entrevistados, ele, que morreu de infarto em 2015, aos 82 anos, recebeu respostas de todos os tipos. A dele, revelada por seu filho, o músico André Abujamra, em um aniversário do programa, era “a vida é uma causa perdida”.

A única certeza da vida é a morte. E que ela tem começo, meio e fim. É como se a vida fosse uma fantasia e a morte a realidade. Mesmo assim, com toda a sabedoria e racionalidade, encarar o luto é uma imensa barreira. Há quem lide com a perda de maneira mais consciente, mas há quem sofra.

Especialistas da alma dizem que o ser humano precisa ter espaço na vida para o luto, que é um direito ter o tempo de vivenciá-lo. Mas, na realidade, esse é um assunto tabu, pouco falado, e que, na maioria das vezes, causa incômodo, inquietação e barreiras na hora do diálogo. Difícil de falar, difícil de ouvir.

Cada um vive o luto de uma maneira. Não há receita, não há antídoto, não há escapatória. Por mais duro que seja, ele é um processo em que o enlutado tem a chance de criar nova história, de redescoberta. Mesmo que seja essencialmente solitário, o momento de dor é de evolução e a maior oportunidade de lidar com seus sentimentos.

Não se fala da morte abertamente. Apesar de ser finito, grande parte dos seres humanos não consegue conversar, discutir e pensar sobre esse seu limite. Mesmo fazendo parte da vida. Médicos, psicólogos, psiquiatras e quem tem essa clareza dizem que falar faz bem. Mas essa é uma construção e uma descoberta individual.

SAUDADE A morte deixa saudade. Ela pode até se transformar, mas será sempre presente. Quem fica tem de aprender a viver uma nova vida com as ausências. Vazios que são físicos, mas que podem (com a evolução de cada um) ser preenchidos com boas lembranças e carinho. Às vezes, o choro, o aperto no peito e a angústia virão... E vão embora.

No fim do ano, quando as pessoas se reúnem e freiam o corre-corre da vida, as emoções se afloram e nos encontros das famílias e amigos quem se foi é lembrado. É natural e o importante é que os pensamentos sejam elevados, que façam bem, que de alguma maneira confortem. Especialmente este 2016, marcado pela tragédia com o voo da delegação da Chapecoense, com 71 mortos, quando iam disputar o jogo de ida da final da Copa Sul-Americana, contra o Atlético Nacional, em Medellín, na Colômbia, a fatalidade (ou o destino) se impõe e provoca um luto coletivo, uma dor com alcance além fronteiras, com e sem laços de sangue. Como superá-lo?

Fases do luto
A psiquiatra suíça Elizabeth Kübler Ross, no seu livro 'On death and dying', publicado em 1969, elaborou cinco estágios pelos quais as pessoas passam ao encarar a perda, o luto e a tragédia. São eles:

1) Negação: “Isto não pode estar ocorrendo”. Recurso para afastar a realidade que dói. O isolamento é comum nesse período
2) Raiva: “Por que eu? Não é justo”. É comum procurar um responsável e não aceitar a impotência. Há oscilações entre os sentimentos de raiva e culpa
3) Negociação: “Deixe-me viver apenas até ver os meus filhos crescerem”. Frequente em processos de doenças terminais. É tentar uma negociação com o destino
4) Depressão: “Estou tão triste. Por que hei de me preocupar com qualquer coisa?” É quando sai da condição de controlador do seu destino e passa a reconhecer as limitações humanas
5) Aceitação: “Vai tudo ficar bem. Não consigo lutar contra isto, é melhor me preparar”. É quando se torna capaz de ver, tocar, falar sobre a morte. É quando cada um consegue modificar o espaço da dor internamente e passa a ser capaz de se lembrar dos bons momentos que viveu com quem partiu.

A fé de cada um
De religião a plataforma on-line, cada pessoa encontra sua forma de aceitar a morte e viver o luto. A experiência é individual e a compreensão também


Não há medida para a dor da morte. Lidar com o luto é uma vivência dilacerante. E cada um busca sua forma de seguir em frente. Cada um encontra conforto na fé que lhe convém. Segundo o padre Renato Alves de Oliveira, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), professor de teologia da PUC-Minas e estudioso e pesquisador sobre a morte, a religião surgiu para resolver o problema da morte. “O ser humano deseja viver permanentemente nesta condição terrena da existência. No entanto, ele é um ser finito, provisório e delimitado pela morte, que coloca um ponto final e conclui sua existência. O ser humano, desde o seu nascimento, já está condenado a morrer. A religião surge fazendo uma oferta de continuidade da vida, porém, num outro plano da existência. Com a morte se dá o fim da nossa condição terrena e o início de nossa condição definitiva. Todas as religiões creem numa vida pós-mortal. O que as diferencia é a doutrina de cada uma sobre o tipo de vida pós-mortal (ressurreição, reencarnação etc.). As religiões de matriz oriental (hinduísmo, budismo, tradições indígenas etc.) creem na reencarnação já as presentes no Ocidente (judaísmo, cristianismo e islamismo) creem na ressurreição como forma de resolver e responder ao problema da morte. Para a fé cristã, a ressurreição significa a vida plena e realizada junto de Deus.”

Arquivo Pessoal
Padre Renato Alves de Oliveira, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), professor de teologia da PUC-Minas e estudioso e pesquisador sobre a morte (foto: Arquivo Pessoal)

Na visão de padre Renato, não estamos preparados para lidar com o luto, que chega de forma imprevista. “A experiência da elaboração e da duração do luto é vivida de forma diferente por cada pessoa, porque depende do grau de afinidade, comunhão e relação daquele que vive para com aquele que morreu. Depende de como cada pessoa lida com as perdas. Quanto mais próxima é a pessoa, mais intenso é o luto e mais impactante é a dor. Nós sabemos quando o luto começa, mas não sabemos quando ele termina.” Ele lembra que há pessoas que passam a vida enlutadas. Geralmente, são aquelas que têm dificuldade em lidar e aceitar a morte. Cada pessoa experimenta o luto de forma individualizada.

FÉ CRISTÃ Para a fé cristã, segundo o padre Renato, tanto o velório quanto a missa de sétimo dia são cerimônias que têm a missão de levar palavra de esperança e conforto aos vivos, e não para o morto. “Não são ocasiões para exaltar a morte e nem o morto, mas momentos de consolo e conforto para quem se encontra ali.”

O religioso conta que o cristão não pode ter medo da morte, porque a fé cristã faz uma proposta de vida pós-mortal, que é a ressurreição. Para a fé cristã, a morte não é o fim absoluto e nem tem a última palavra sobre a vida. Ela é o evento que conclui nossa biografia terrena e a última possibilidade no campo espaço-temporal. É a única certeza que temos sobre o nosso futuro. A morte é certa e a hora é incerta. A sua ocorrência significa que o prazo de validade de nossa vida terminou. “No entanto, a fé cristã acredita numa única vida experimentada em duas etapas, mas que estão em continuidade: a terrena e a pós-mortal, que é a definitiva. A morte decreta o fim da primeira e o início da segunda.”

A tragédia com a delegação da Chapecoense na semana passada – em que 71 pessoas morreram com a queda do avião da LaMia, em Medellín, na Colômbia, quando o time de futebol viajava para disputar o jogo de ida da final da Copa Sul-Americana contra o Atlético Nacional – retrata a finitude, a impotência, e expõe a dor sobre-humana na hora da perda.

“A comoção é ainda maior por terem sido mortes imprevistas, ou seja, de pessoas que não estavam doentes, e por serem jovens. A sociedade tem dificuldade de aceitar a morte de crianças e jovens. É como se a morte fosse inoportuna ou inconveniente para essas faixas etárias. Causa indignação, porque pensamos que ela ocorreu no momento em que não deveria. Pensamos que mortais são somente pessoas enfermas e idosas. Mas o ser humano nasce e vai morrendo lentamente. No caso da queda do avião, a dramaticidade da aceitação está em reconhecer que são mortes que poderiam ser evitadas. Infelizmente, a falha de alguns decretou a morte de várias pessoas.”

AMOR E MEMÓRIA Lembrar os mortos no fim de ano é comum e natural. A saudade e as lembranças num momento de reunião familiar, celebração e comemoração deixam todos mais emotivos. “Dois sentimentos atingem as pessoas: a euforia, a alegria, a solidariedade, o nascimento de Jesus; e a tristeza por se lembrar das perdas e por saber que há pessoas passando fome, enquanto muitos estão se banqueteando.” Nessa ocasião, o luto pode voltar com intensidade, porque ele reativa a memória da pessoa que se foi. Antigamente, o luto era bem definido e caracterizado: os enlutados vestiam-se de preto, tinham um semblante de consternação, as pessoas ficavam em casa, tinham mais tempo para chorar o morto e elaborar o luto. “Hoje, com a velocidade dos processos, da informação, a correria e o consumo vive-se um luto forçado e com tempo marcado. O capitalismo não suporta a ideia da morte porque ela representa a ruptura, a ausência de comunicação e a imobilidade, e o sistema busca produção e competição permanentes”, diz o religioso.

TEMA TABU E tudo fica ainda mais duro porque conversar sobre morte é tabu na sociedade. Padre Renato afirma que hoje as pessoas têm muita dificuldade de discutir temas existenciais profundos, entre eles a morte. “Vivemos em uma sociedade que nos ensina a tratar só de assuntos que atingem a epiderme da vida (esporte, carnaval, novela etc.). Há uma censura social quando se busca falar e lidar com a morte, porque falar dela significa meditar sobre o meu limite, a minha dissolução e o meu não-ser mais. Aceitamos falar da morte dos outros, mas não de nossa condição mortal. Pensamos que somente os outros morrem. Vivemos numa realidade sociocultural, que censura, oculta e nega, de forma sutil, a morte, por meio da cultura do vitalismo, que é a cultura do culto ao corpo, da obsessão pelas academias, da busca pela beleza eterna, por meio da cirurgia plástica e dos cosméticos. A cultura do vitalismo patrocina uma vida eternamente jovem, negando as marcas do tempo no corpo. Trata-se de uma negação do envelhecimento.”

Mesmo com toda dor, padre Renato ressalta que há espaço para o conforto. “A morte ceifa a pessoa, mas não apaga a sua memória no nosso coração. O amor pela pessoa que morreu a torna viva dentro de nós. Ninguém passa despercebido pela vida. O amor eterniza aquele que partiu no coração daquele que ficou. O amor nos dá força para seguir. O tempo ameniza a perda, mas não apaga a lembrança. O amor transcende a morte. É como disse o filósofo existencialista Gabriel Marcel, 'Amar é dizer: tu não morrerás para sempre'.”

DEPOIMENTO

Marcelo Gardini - segundo vice-presidente da União Espírita Mineira

“A doutrina espírita, codificação de Allan Kardec, não crê na morte. O que cremos é que o corpo acaba, mas a alma procede além do plano, da vida material. Não temos o luto porque encaramos a morte como natural, sentimos, sim, saudade, tristeza, choramos... Mas a doutrina espírita nos esclarece e conforta a nossa fé como alicerce na esperança da vida após a morte. Esperança na vida além, no reencontro. Com a morte, o espírito retorna à pátria espiritual e acreditamos que a vida prossegue além da morte física. Cremos na reencarnação. A morte é um processo, um estágio cármico. A doutrina nos instrui a encarar a morte física com naturalidade e o que precisamos é orar por aqueles que perdemos. A doutrina nos instrumentaliza para ter essa força.”

Arquivo Pessoal
Intenção de Rita Almeida, uma das fundadoras do site' Vamos falar sobre luto?', é ajudar a tornar a experiência menos solitária (foto: Arquivo Pessoal)

Cura pela aceitação
Vamos falar sobre o luto? é uma plataforma digital de informação, inspiração e conforto para quem perdeu alguém que ama ou para quem deseja ajudar um amigo nessa etapa tão difícil. Uma tentativa de romper com o tabu e tornar a experiência menos triste e solitária. O projeto é voluntário e não envolve atendimento presencial ou digital.

O que as pessoas que viveram o luto fazem é oferecer conteúdo, ferramentas, caminhos e um pouco de luz e outro tanto de amor. “Acreditamos que nossa plataforma é única no Brasil. Apesar de percebermos alguns movimentos importantes de suporte e abertura ao luto, como o Instituto Quatro Estações (terapia especializada no assunto) ou os cuidados paliativos da médica Ana Cláudia Arantes, o Vamos falar sobre o luto? se diferencia por ser uma ajuda on-line, por meio de textos que permitem o contato e a identificação com quem passou pela mesma experiência e, consequentemente, maior compreensão do processo”, explica Rita Almeida, fundadora do site, ao lado de seis amigas.

A plataforma é um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar. Para Rita Almeida, a questão de não refletirmos e não pensarmos sobre a morte é cultural.

“Parece-nos mais fácil ou menos doído ignorar o fato de que a morte é parte da vida. Falo porque também era exatamente assim. Até viver a morte de meu pai e, mais grave, pela subversão da lei natural da vida, a partida de meu filho, Paulo, aos 28 anos, no auge de sua juventude e começando a ensaiar uma vida adulta. Depois dessa experiência entrei em um processo muito profundo de luto e, nessa vivência, entendi que as pessoas não querem pensar, falar e muito menos ouvir a respeito. Isso me colocava em uma situação muito desconfortável quando queria falar qualquer coisa sobre meu filho e meus sentimentos a respeito de sua partida. Na realidade, entendi que existe um grande preconceito a esse respeito, levando as pessoas a achar que esse assunto vai deixar tudo triste e de baixo-astral e tentam, na maior parte das vezes, mudar de assunto.”

Quando falar é possível
Rita afirma que a missão da plataforma é tornar o luto um assunto possível. “Penso que a maior ou menor aceitação da morte está relacionada às crenças, história de vida e ao tipo de relação que se mantinha com quem partiu. Dizem que, quanto mais resolvida for a relação (de quem fica com quem parte), maior será a aceitação do luto.” Ela lembra sobre o valor da fé, “outro apoio inquestionável: a aceitação dos fatos, um dos fundamentos do budismo; o suporte do espiritismo, que nos abre a possibilidade de a alma amada continuar; ou a fé da Igreja Católica são forças no percurso do luto. Mas o que sei é que quanto mais fácil aceitarmos a realidade da perda, maior nossa chance de entendimento e cura pessoal”.

Impossível falar em receita para viver essa dor. Rita ressalta que ela é pessoal, porém, existem agravantes e atenuantes. “Poderia citar alguns: o que fortalece é a aceitação e a serenidade em relação a essa vivência, o sentimento de que existem pessoas que desejam e podem ajudar nesse processo. A elaboração da perda por meio da meditação, terapias ou estudos do tema e o esforço para continuar a participar da vida e não desistir dela. O que pode atrapalhar a experiência do luto é a ausência de pessoas que amparem o enlutado ou mesmo sua falta de fé.”

ABRAÇO Na dor, imagina-se que quem precisa de consolo e apoio vá encontrá-los no encontro, na presença, no abraço, na fala... A plataforma substitui isso tudo? Rita Almeida explica que não. “Acreditamos que nada substitui o abraço, a companhia de quem se ama, o encontro. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que o site pode ser uma ajuda complementar a tudo isso, à medida que conforta, inspira, compartilha sentimentos e amor. Tentamos, por meio da nossa plataforma, abrir caminho para as pessoas poderem falar de sua experiência, seja on-line seja com as outras pessoas. Acreditamos que ela é uma forma de companhia para quem é solitário. Uma experiência como a do luto precisa de diferentes fontes de ajuda e compreensão. Queremos ser uma dessas fontes de ajuda.”

Muitos dizem que, com as perdas ao longo da vida, é possível aprender. “Justamente pelo forte poder de ensinar, o luto é uma experiência que deve ser respeitada. Com ele aprendemos a aceitar os fatos da vida pelos quais não podemos lutar contra. Com o luto percebemos que a morte é um fato e uma parte da vida. Ele nos obriga a nos reinventarmos, a escolher entre a vida ou a ausência dela, a valorizar o amor e suas práticas mais do que nunca. O luto traz novas dimensões à vida e seus encontros.”

Reverenciar a memória

Voluntária e especialista expõem seus pensamentos sobre a morte e o luto e revelam como lidam com a dor da perda. Exemplos e referências que podem ajudar a quem precisa

Quando a mulher morre, o homem se torna viúvo. Se é a mãe, a filha fica órfã. Já para a morte de um filho não existe definição... Não há como falar em dor maior ou menor, mas, no entendimento da sociedade, haveria uma ordem natural da vida. Pai não enterra filho. O que, mais uma vez, é o homem imaginando ter um controle que não tem. “Os nomes são uma ilusão para nos dar sequência, é uma criação mental. Perder um filho é um grande dificultador, eu passei por isso. Agora, a perda maior é a dor que estamos sentindo. Não existe comparação, mas a maneira que cada um se orienta. Quer ser infeliz ou aprendiz? A vida nos é colocada para termos a capacidade de aprender”, declara a psicóloga Gláucia Rezende Tavares, presidente da Rede API – Apoio a Perdas Irreparáveis, que nasceu da necessidade da troca de ideias e experiências entre pessoas que haviam perdido filhos. Com o passar do tempo, passou a ser de pessoas que tiveram perdas em suas vidas e que desejam compartilhar suas vivências e ampliar suas percepções, aprendizados e buscas de novos caminhos.

Entidade sem fins lucrativos, desde a sua fundação, a API já conta com mais de 4 mil pessoas cadastradas e grupos em vários cidades de Minas, em outros estados e em Nova York. “Há um conjunto de fatores que influenciam na maneira de lidar com o luto. Há características pessoais e do ambiente. Aceitar é diferente de resignar, que pode ser traduzido tanto na apatia quanto na revolta, posições extremas que têm em comum a não-aceitação. O desafio, a grande questão que machuca e dói é: o que vou fazer?”, propõe.

Gláucia enfatiza que tem pessoas que conseguem “aceitar, sabendo que tem tristeza e dor, mas que é necessário buscar leveza e gratidão, porque se doeu é porque foi bom. Mas há quem entre na revolta, não admite o que é real, o que é a vida. O caminho é procurar formas e reflexões que darão sentido para a dor que cada um sente. Esse sentido é uma construção pessoal e intransferível”.

PRAZO A questão é que, segundo Gláucia, “culturalmente, temos tolerância para acolher com prazo de validade. A morte nunca é uma conversa fácil para se ter. De que maneira as pessoas se colocam para escutar? É difícil para todos e a tendência é desestimular e desencorajar com receitas “vida que segue”, “a fila andou”. Quem está vivendo o luto se sente violentado. É preciso cuidado”. Ela enfatiza que é preciso não ficar só na lamentação, mas ter a possibilidade de reverenciar a memória.

Uma ferramenta fundamental destacada por Gláucia é a espiritualidade, mais do que essa ou aquela religião. “Na presença de situações-limite há estudos, e com percepção acadêmica, de que o apoio e o amparo da espiritualidade para lidar com o mistério, com o silêncio e o vazio é importante, porque não explicamos tudo. Mas que ela seja com lucidez e não fanatismo.”

A abelha é o símbolo da Rede API: há a produção do mel e a presença do ferrão. “As abelhas são as operárias da colmeia, retiram o pólen das flores sem retirar o viço. A representação da rede aproxima-se ao trabalho de cooperação desenvolvido em uma colmeia: partilha-se a dor e busca-se transformá-la em impulso de restauração de vida.” Vale destacar que não há restrição às pessoas enlutadas, quanto à posição filosófica, política ou religiosa, que se interessem em participar. O essencial para a participação das reuniões é a disponibilidade para se abrir diante de vivências comuns, nunca iguais, respeitando o direito de todos os presentes de se manifestarem. A troca de experiências do cotidiano dessas pessoas, o expressar livremente seus sofrimentos e dores e, principalmente, o escutar esses depoimentos traçam a linha mestra na busca de conforto, orientação e ajuda de uns aos outros.

A novidade deste fim de ano que Gláucia Tavares conta é que, depois de 14 anos do livro Do luto à luta, a entidade lança, quinta-feira, no Memorial Minas Gerais Vale, às 19h, E a vida continua, que é o momento de solarizar a perda, sair do buraco negro do passado e saber que é possível colocar sol e luz no lugar. O livro foi produzido em parceria com o seu companheiro de quase 50 anos, Eduardo Carlos Tavares. Eles prepararam os textos e convidaram alguns colaboradores para partilhar com os dois os 18 anos da perda da filha Camile.

Repensar a vida

“Falar da morte é difícil exatamente porque sabemos que ela chegará para todos nós. É o fim conhecido da viagem que fazemos na vida, mas, ao mesmo tempo, a maioria das pessoas tem medo da morte porque é uma experiência com o desconhecido. Não pensar nela é uma maneira de continuar vivendo sem sentir medo do ponto de chegada. Quando se perde uma pessoa querida, é comum que os pensamentos fiquem voltados para ela durante a maior parte do tempo e pode-se sentir necessidade de falar a respeito do ente perdido ou dos próprios sentimentos de tristeza, medo, raiva, culpa, solidão. Pode ser difícil ouvir uma pessoa enlutada porque isso nos faz lembrar que também podemos perder e perderemos pessoas amadas, que também teremos que lidar com a morte e com o sofrimento”, explica Vânia de Morais, psicóloga, mestre em ciências da saúde, doutora em linguística e terapeuta cognitivo-comportamental (TCC) associada ao Instituto de Ensino, Pesquisa e Extensão (Insepe).

Arquivo Pessoal
Para a psicóloga Vânia de Morais, as pessoas têm medo da morte porque é uma experiência com o desconhecido (foto: Arquivo Pessoal)
A morte e o luto serão sempre sentidos com dor e pesar. Vânia afirma que o sofrimento pode ser maior ou menor. Isso vai depender das circunstâncias da morte, da maneira como cada pessoa a percebe e dos recursos internos de cada um para lidar com as perdas.

“Pessoas com doenças incuráveis, por exemplo, podem receber tratamentos destinados a aliviar o sofrimento e a melhorar a qualidade de vida, um belo trabalho que é realizado por equipes de cuidados paliativos. As crenças pessoais sobre a vida e a morte terão grande impacto nas maneiras como cada um lida com ela. Crer na existência de vida após a morte, em reencarnação, céu, inferno ou acreditar que a morte põe fim definitivo à vida fará diferença na maneira como o adoecer e o morrer serão enfrentados, tanto no que diz respeito à própria morte quanto no que se refere à perda de pessoas queridas. A maneira como cada um vê a vida e atribui sentido a ela também é fator fundamental na hora de lidar com o seu desfecho.”

Estresse
A terapeuta cognitivo-comportamental enfatiza que o luto é um processo psíquico caracterizado pelo sentimento de profunda tristeza, que se instala em reação a perdas importantes e incomuns. “As pessoas costumam passar por fases de entorpecimento, saudade, procura pelo objeto de amor perdido, desorganização, desespero, até que se recuperam e reorganizam a vida. O que se espera é que, com o tempo, os pensamentos tristes deem lugar às lembranças boas, que se tornam, aos poucos, mais frequentes e importantes que as dolorosas.” Agora, enfrentar as mortes inesperadas provoca uma carga de estresse muito maior que as previsíveis. “O sujeito pode apresentar mudanças fisiológicas semelhantes aos estados de ansiedade, com aumento da atividade do sistema nervoso autônomo e sintomas como boca seca, inquietação, pânico, dificuldade de se concentrar em outra coisa, ruminação dos acontecimentos que levaram à morte e frequente necessidade de procurar a pessoa perdida. Nesses casos, o processo de luto pode ser mais conturbado. Mas, em geral, as pessoas são capazes de atravessá-lo e reconstituir sua vida.”

VERDADES Vânia alerta que o apoio social e familiar será fundamental para a recuperação das pessoas que sofrem perdas irreparáveis. “Suas habilidades de abrir mão e de se refazer depois de mudanças importantes também são consideradas capacidades fundamentais nesse processo. Aquele que não consegue atravessar o luto, voltar-se para os fatos de sua vida e se refazer pode entrar em um quadro depressivo. Aí, o apoio médico e psicológico serão necessários.”

E como encarar a morte de 71 pessoas no trágico voo da delegação do time de futebol da Chapecoense, em Medellín, na Colômbia? Vânia ressalta que sobreviver a um acidente como esse levará o indivíduo a um grau de estresse muito elevado. A maneira como ele reagirá dependerá de suas características e capacidades, mas há uma probabilidade de desenvolvimento de quadros de estresse pós-traumático. “Seguramente, os envolvidos necessitarão de acompanhamento médico e psicológico. A perda abrupta de entes queridos, em circunstâncias catastróficas, tem consequências psíquicas mais graves.”

Aliás, o apoio psicológico, independentemente da linha terapêutica, é fundamental para quem não consegue superar uma perda. “A psicoterapia ajuda a pessoa a organizar-se internamente, repensar sua vida e fazer as mudanças necessárias na nova etapa que se apresenta. Perder uma pessoa amada, em geral, implica outras perdas que a convivência com ela proporcionava. Pode ser segurança emocional ou financeira, cuidados ou alguém para cuidar, amor, atenção, sexo, relacionamentos sociais e familiares, companhia e tantas outras coisas que fazem parte dos relacionamentos. O processo terapêutico cria as condições para que o indivíduo entre em contato com suas verdades não exploradas, suas necessidades, capacidades e limitações, ajudando-o a construir novas possibilidades para sua vida. A TCC, especificamente, tem como objetivo levar as pessoas a perceberem seus padrões cognitivos e as maneiras como estes afetam suas emoções e comportamentos, auxiliando o indivíduo a construir as mudanças que ele almeja em si mesmo e em sua vida.”

Objetivos da Rede API:

1) Acolher e dar suporte às pessoas enlutadas por perda de entes queridos;
2) Desenvolver e exercitar a habilidade de escutar e apoiar pessoas abaladas física, emocional, profissional, social e espiritualmente;
3) Motivar e inspirar a capacidade de recuperação a partir da vivência de perdas;
4) Despertar a consciência dos nossos limites e possibilidades como seres humanos por meio da troca de experiências, grupos de estudo e vivências;
5) Desenvolver e exercitar o comprometimento e senso de cidadania (participação em campanhas de prevenção à violência, apoio às situações de choque, acompanhar luto antecipatório e luto a distância, pesquisas sobre facilitadores e dificultadores na elaboração do luto).

Para ler e refletir

Ana Cláudia Quintana Arantes, médica especialista em cuidados paliativos pelo Instituto Pallium e Universidade de Oxford, além de pós-graduada em intervenções em luto, implantou as políticas assistenciais de avaliação da dor e de cuidados paliativos do Hospital Israelita Albert Einstein. No seu livro A morte é um dia que vale a pena viver – E um excelente motivo para se buscar novo olhar para a vida, ela mostra que a grande questão envolvendo a morte, na verdade, é a vida. Como estamos vivendo? Nossos dias estão sendo  aproveitados ou vamos chegar ao fim desta jornada cheios de arrependimentos sobre coisas que fizemos – ou, pior, que não fizemos? Como médica especialista em cuidados paliativos, ela compartilha suas experiências pessoais e profissionais e incentiva as pessoas a cultivar relações saudáveis, a cuidar de si próprias com a mesma dedicação com que cuidam dos parentes e amigos e a procurar ter hábitos saudáveis, sem deixar de fazer aquilo que têm vontade e as torna felizes. O livro apresenta uma reflexão fundamental para os dias de hoje, tempo em que vivemos com a sensação permanente de que estamos deixando a vida escorrer entre os dedos.