'Olho no espelho e sinto um vazio': mulheres vítimas do câncer esperam por anos por reconstrução da mama

Conheça a história de mulheres que retiraram o seio no tratamento do câncer e aguardam na fila há anos pela cirurgia reconstrutora que, por lei, deveria ser realizada logo após o procedimento

por Valéria Mendes 24/04/2015 09:00

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Quinho / EM / D.A Press
Identidade mutilada: especialistas alertam para efeitos psicossociais quando reconstrução imediata da mama não é realizada (foto: Quinho / EM / D.A Press)
Há dois anos, entrou em vigor a Lei nº 12.802 que garante acesso no Sistema Único de Saúde (SUS) à cirurgia plástica reparadora em mulheres que retiraram a mama em razão do câncer. No dia 25 de abril de 2013, pacientes que acabavam de receber o diagnóstico, quem já estava em tratamento e, principalmente, mulheres que já tinham sido mutiladas pela doença e esperavam na fila pelo procedimento se encheram de esperança. Na grande maioria dos casos, em vão. Dados da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) mostram que apenas 10% das brasileiras que passam pela cirurgia de retirada da mama conseguem a reconstrução imediata do seio. Apesar de o dado ser anterior à lei e de ter havido um aumento de 16% nas cirurgias de reconstrução mamária entre 2013 e 2014, especialistas e mulheres reafirmam que a realidade no país está longe do que a legislação prevê. Vale ressaltar que, no Brasil, o sistema público é responsável por 85% de todos os tratamentos de câncer.

A faxineira Alaíde Figueiredo Moreira, de 58 anos, e a cozinheira aposentada Geralda Conceição de Souza, 60, esperam o dia em que o retrato refletido no espelho colocará um ponto final na história do diagnóstico de câncer de mama. Mesmo com os avanços da medicina e as abordagens cada vez mais personalizadas, o tratamento do câncer é de grande impacto e não altera apenas a imagem, mas interfere na sexualidade, na qualidade de vida, na autoestima. Para a plena superação da doença, as cicatrizes, tanto físicas quanto emocionais, precisam ficar para trás para que essas duas mulheres possam, por exemplo, colocar um biquíni e curtir um dia de sol na praia sem se sentirem constrangidas pela falta do seio.

“Desde a cirurgia que eu nunca mais coloquei um decote, tem momentos que eu ainda me envergonho e me sinto triste, mas que seja feita a vontade de Deus”, afirma Alaíde que está há dois anos e meio na fila para reconstrução do seio esquerdo. Geralda, que vive a expectativa da cirurgia há um ano e quatro meses, completa: “Eu gosto muito de praia e clube, mas não posso ir. Se eu coloco maiô, mesmo com o enchimento, fica visível. A gente fica chateada, se olha no espelho e sente aquele vazio”, diz. No lugar do seio que amamentou a filha única de Alaíde e os três filhos de Geralda, essas mulheres usam um enchimento feito com alpiste.

Técnica semelhante à tatuagem vem conquistando mulheres que passaram pela retirada do seio

De acordo com o presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia - Regional Minas Gerais, Clécio Lucena, para que a Lei nº 12.802 de 2013 seja cumprida em sua integridade e as brasileiras tenham acesso à reconstrução imediata da mama três condições são fundamentais: “O hospital precisa fornecer toda a infraestrutura adequada para o procedimento cirúrgico, a prótese precisa estar disponível e a equipe da instituição capacitada para a cirurgia plástica”. A boa notícia, segundo Clécio Lucena, é que os próprios mastologistas estão cada vez mais se tornando autossuficientes para realizar a cirurgia de retirada do tumor e a reconstrutora da mama. Dessa forma, tem-se aumentado o número de profissionais habilitados.

O mastologista é categórico quanto aos benefícios da reconstrução imediata do seio. “Pelas claras evidências científicas, mas também pela experiência profissional, são grandes os efeitos psicossociais nas mulheres que não tem acesso à cirurgia imediata de reconstrução. Elas ficam estigmatizadas, se afastam de suas atividades, se sentem constrangidas e não têm vida social normal. Sabemos que as mulheres com boa autoestima evoluem melhor em relação ao tratamento como um todo”.

Para 2015, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) prevê 52 mil novos casos de câncer de mama no Brasil. Em 2014, segundo o Ministério da Saúde, foram realizados pelo SUS mais de 13,6 milhões de procedimentos oncológicos, entre radioterapia, quimioterapia e cirurgia oncológica. Considerando apenas o tratamento para câncer de mama no SUS, foram registrados mais de 4 milhões de procedimentos no ano passado.

Projeto Scar / David Jay / https://www.thescarproject.org/
'The Scar Project': Após uma amiga de 29 anos ser diagnosticada com câncer de mama, o fotógrafo norte-americano David Jay decidiu iniciar um projeto para retratar mulheres vítimas do câncer de mama e suas cicatrizes.Centenas foram clicadas ao redor do mundo e puderam encarar suas imagens por um outro ângulo. Com o objetivo de fazer um alerta sobre a importância da detecção precoce do tumor, o trabalho se transformou em uma exposição. No ano passado, o Museu de Arte Contemporânea em Niterói, no Rio de Janeiro, recebeu a mostra em comemoração ao Outubro Rosa (foto: Projeto Scar / David Jay / https://www.thescarproject.org/)


Luta pela vida

Alaíde e Geralda também reclamam que a ausência de um dos seios prejudica os movimentos e provocam dor. “Eu ando um pouco torta já que minha mama direita é grande e pesada”. Além da cirurgia que mutilou um dos lados, Alaíde passou por seis sessões de quimioterapia, 26 de radioterapia e agora está na última fase do tratamento, a hormonioterapia. A história da faxineira teve ainda um capítulo infeliz que atrasou o início do tratamento em quase dois anos. “Eu descobri o câncer no dia 6 de junho de 2010. Estava no banho e senti um carocinho, fiz vários exames e biópsias que confirmaram a suspeita, mas a cirurgia foi em 1º de novembro de 2012”, conta. A faxineira, que andava para cima e para baixo com todos os seus exames e laudos, foi assaltada, os ladrões levaram tudo, incluindo essa documentação, e Alaíde precisou recomeçar do zero todo o processo.

Geralda Conceição de Souza operou em 5 de dezembro de 2013. Na história do seu diagnóstico também não faltaram percalços. A cozinheira suspeitou do câncer após sentir um nódulo na mama direita, mas nem o ultrassom ou a mamografia atestaram a doença. Seis meses depois, entretanto, uma biópsia confirmou o tumor. “A notícia me desabou, passaram tantos pensamentos ruins pela minha cabeça, chorei muito, mas pensei: ‘se tantas pessoas enfrentam por que não posso?’ Foi então que comecei a quimioterapia para, primeiro, diminuir o tamanho do tumor, e só depois operei”, relata. Foram oito meses de quimio em intervalos de 21 dias, 28 sessões de radioterapia, a mastectomia e a medicação que Conceição toma até hoje.

Atualmente, além das blusas de renda que ela afirma não se sentir à vontade para usar e o desejo de ir à praia, a cozinheira diz que tem sentido muita dor na coluna: “Um lado do meu corpo é mais pesado que o outro”. Na época em que ficou sem os cabelos e usou e abusou de lenços e perucas, ela conta ter se surpreendido pelo fato de ninguém ter zombado de sua aparência. “As pessoas olham, olham muito, mas ninguém comenta e ninguém ri”, relata.

Identidade feminina
Especialista em oncologia, a psicóloga da Oncocentro Flávia Santos reforça o estigma que a doença carrega e que bate de frente com a identidade feminina. “Além da queda do cabelo, da mutilação, das consequências para a libido e a sexualidade, as mulheres ainda têm muita dificuldade em visualizar a própria imagem corporal, o que afeta diretamente a autoestima”, pondera. Segundo ela, pacientes do setor privado que têm a possibilidade da reconstrução imediata da mama conseguem refazer a identidade corporal mais rapidamente. “Aquela que faz a mastectomia, tende a repelir o outro por não querer ser vista naquela situação e a relação mais afetada por essa postura é a de marido e mulher. No caso das solteiras, a tendência é se fechar na busca por um relacionamento”, reforça.

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Por essa razão, a abordagem a pacientes com câncer deve ser multidisciplinar e contemplar o processo de aceitação da realidade no momento do diagnóstico e durante todo o tratamento. “A ideia da imperfeição e a dificuldade em se olhar no espelho impactam profundamente o lado afetivo da vida dessas mulheres. Nesses casos, é importante o acompanhamento também dos familiares para evitar o desencontro. O que percebemos é que a visão que a paciente tem de que o parceiro não vai gostar dela não é uma realidade. Saber como o parceiro se sente é uma maneira de se compreender melhor e propicia um tratamento mais tranquilo”, afirma. Flávia Santos reforça que a mulher que se permite ser apoiada, que não se isola, que aceita a ajuda dos familiares e amigos está prevenindo tanto a ansiedade quanto a depressão.

Reconstrução imediata: nem sempre possível
É importante dizer que a reconstrução imediata da mama não é possível em todos os casos. Também é verdade que a retirada do seio não é necessária em todas as situações em que o câncer é diagnosticado. O mastologista Clécio Lucena explica que o tratamento do câncer de mama avalia três polos principais. O primeiro deles é o estágio da doença. “A regra básica é quanto mais avançada esteja a doença, maior é a possibilidade de se fazer a mastectomia. Por isso, o diagnostico precoce é fundamental já que podemos oferecer às pacientes um tratamento menos agressivo”, diz.

O segundo ponto avaliado é a característica da mama: tamanho do seio versus o tamanho da doença. “Se essa relação for favorável, optamos pelo tratamento conservador. Caso não seja, vamos para o tratamento chamado ‘radical’, onde a mastectomia é necessária”, pontua. É claro, no entanto, que a opinião da paciente é não apenas considerada como parte da decisão. “Não posso retirar a mama sem que a pessoa entenda a real necessidade e as informações transmitidas pelo médico subsidie uma decisão consciente. Se, mesmo assim, não houver concordância, o especialista deverá criar uma alternativa para tentar minimizar o impacto da decisão da mulher para o tratamento”, reforça.

O terceiro ponto a ser avaliado é o da segurança oncológica que atesta os resultados do tratamento conservador em comparação ao tratamento radical. “O que é oferecido como alternativa precisa ser seguro tanto se tirar apenas uma parte da mama quanto no caso da retirada total. No caso do tratamento conservador, por exemplo, entra uma questão matemática: quanto maior for a mama, maior a chance de uma nova doença. “Parte da mama que permanece pode ter uma nova doença no futuro, independentemente da doença anterior e não necessariamente ligada à primeira”, detalha o especialista.

O tratamento para o câncer de mama engloba quatro etapas: cirurgia, quimioterapia, radioterapia e hormonioterapia. “Enquanto a cirurgia e a radioterapia têm o objetivo de retirar o tumor, a quimioterapia e a hormonioterapia tratam células do câncer que podem migrar para outros órgãos, ambas têm a função de prevenir a metástase”, afirma Lucena. As fases do tratamento dependem de cada caso, mas o mais comum é que a primeira delas seja sempre a cirurgia. No entanto, existem situações – caso de tumor médio para grande em que a mulher não quer a mastectomia – a paciente passa primeiro pela quimioterapia para reduzir o tamanho do sarcoma e, na sequência, faz a cirurgia parcial.

O diagnóstico precoce do câncer de mama também influencia diretamente a possibilidade de se fazer a reconstrução imediata. “Quanto mais avançada a doença, menor a indicação da cirurgia reparadora na sequência. Nesses casos, a mulher passará primeiro pela radioterapia, quimioterapia e hormonioterapia e, quando completar o tratamento, fará a reconstrução tardia”, explica o médico.


Arquivo Pessoal
Pintura de Ana Paula Azevedo para o livro 'Jardim Secreto', de Johanna Basford (foto: Arquivo Pessoal )


Colorir para superar

A pedagoga Ana Paula Azevedo, 43 anos, estava em tratamento contra endometriose quando descobriu o câncer de mama. Ela e o marido tocavam adiante os planos de engravidar quando, depois de um tombo no banheiro em que Ana Paula bateu o seio no vaso sanitário, veio a suspeita do tumor. “Duas semanas depois, em outubro de 2013, apareceu um nódulo no local da batida, procurei minha ginecologista e ela pediu uma mamografia. Mas era final de ano e tudo para. Foi somente em 2014 que procurei por um atendimento especializado”, narra. A cirurgia aconteceu em abril daquele ano e Ana Paula saiu do hospital com um expansor de tecido, técnica de reconstrução mamária escolhida pelos especialistas que acompanhavam o caso.

Arquivo Pessoal
Ana Paula antes e durante o tratamento contra o câncer de mama: "nunca tomei posse dessa doença para minha vida" (foto: Arquivo Pessoal )


Esse expansor, que tem a aparência de uma prótese vazia, pode tanto ser colocado logo após a mastectomia ou posteriormente. Nem toda paciente precisa de expansão e a prótese definitiva pode ser de imediato. Nas situações em que o expansor é utilizado, a paciente recebe periodicamente injeções com solução salina até que essa ‘bolsa’ seja preenchida. No caso de Ana Paula, que precisou da quimioterapia logo em seguida ao procedimento cirúrgico, esse preenchimento foi adiado. “Como fiz a mastectomia total, fiquei sem muita pele. Meu seio está com o formato redondinho, mas ainda está vazio. Em setembro começo a expansão, cada mês um pouquinho e quando alcançar a mesma medida do outro seio, vou retirá-lo para colocar a prótese”, relata. Enquanto aguarda pela cirurgia, a pedagoga utiliza um modelo de sutiã com suporte para uma prótese de tecido.

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Apesar de não ser o que acontece com a grande parte de mulheres diagnosticada com câncer de mama, Ana Paula afirma não ter se abalado pelas consequências na aparência. “Nada me atingiu: nem ficar sem o seio e nem sem o cabelo, o que me chateou foram os sintomas após a quimioterapia. Ficar presa numa cama sem poder levantar a cabeça me incomodava demais, mas, em todos os momentos, nunca tomei posse dessa doença para minha vida. Em março deste ano recebi a notícia de que estou curada”, relata.

Foi o famoso livro de Johanna Basford, Jardim Secreto, que ajudou Ana Paula a lidar com as dores no corpo, pernas e a indisposição durante a quimioterapia. “Ocupei minha mente pintando, era o que eu podia fazer para me distrair”, conta.

Recentemente, a pedagoga, que integra um grupo público no Facebook que reúne mais de 17 mil membros que compartilham experiências sobre a terapia das cores pelos livros de colorir, publicou um de seus trabalhos com a seguinte legenda: “No meu cadeado está guardado a minha cura. Este livro fez parte do meu medicamento, foi o remédio para minha alma”.

Em uma das páginas da obra de Basford, a autora convida seus ‘leitores’ a desenhar “o cadeado que está guardando”. A pintura de Ana Paula (que ilustra essa reportagem) comoveu os outros integrantes e é atualmente a imagem que simboliza o grupo na rede social. ”As pessoas ficam sensibilizadas, o tratamento é realmente muito sacrificante e doloroso, mas existe cura para o câncer de mama. Cada recado que eu lia sobre o meu desenho, fez passar um filme na minha cabeça. Foram dez meses de tratamento, a sensação é de que estamos vivas por fora, mas mortas por dentro. O câncer transforma não só a vida do paciente, a família inteira adoece”, afirma.

EM/D.A Press
(foto: EM/D.A Press)