Tratamento personalizado para o câncer é realidade restrita aos males que atingem adultos

Diretor-médico de um dos principais institutos mundiais de oncologia pediátrica, Carlos Rodriguez-Galindo defende nova fase no tratamento de tumores sólidos

por Bruna Sensêve 12/12/2014 15:00

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Arquivo Pessoal
Carlos Rodriguez-Galindo esteve em Brasília para participar do XIV Congresso Brasileiro de Oncologia Pediátrica (foto: Arquivo Pessoal )
Alguns veem como revolução; outros, como parte de um conto de ficção científica. A verdade é que a medicina personalizada é a próxima e mais esperada fronteira científica a ser ultrapassada e, então, aplicada na prática clínica. Esse modelo médico propõe a personalização de tratamentos, práticas e decisões, a partir de adaptações direcionadas ao organismo de cada indivíduo.

Para isso, a análise genética é essencial. Até mesmo se o paciente a ser tratado é um tumor. Hoje, em grandes experimentos clínicos, a melhor terapia de combate a alguns cânceres sólidos pode ser selecionada de acordo com a informação genômica do cancro. Essa, no entanto, ainda é realidade restrita aos males que atingem adultos. A oncologia pediátrica é um desafio assumido por um quantitativo menor de médicos. Os obstáculos são maiores, muitas vezes, intransponíveis.

Ao mesmo tempo, a indústria farmacêutica é pouco motivada ao desenvolvimento de medicamentos para esse público, tanto pelo menor apelo mercadológico quanto pelo maior rigor reservado aos experimentos clínicos com pacientes infantojuvenis. Para Carlos Rodriguez-Galindo, professor da Escola de Medicina da Universidade de Harvard e diretor-médico de oncologia pediátrica do Dana-Farber Cancer Institute, os problemas são comuns ao desenvolvimento de drogas em todo o mundo. Segundo o oncologista pediátrico, de 70% a 80% das crianças podem ser curadas com medicamentos padronizados e tratamentos, mas o restante fica à mercê de metodologias que podem não ser eficazes por falta de estudos na área.

A investigação clínica de Rodriguez-Galindo está centrada no desenvolvimento de terapias inovadoras para tumores sólidos pediátricos, em particular, retinoblastomas, sarcomas e tumores raros. O trabalho nesses campos levou o oncologista a assumir papéis de liderança em grupos cooperativos. Atualmente, é presidente do Comitê de Retinoblastoma e Tumores raros no Grupo de Oncologia Infantil, além de investigador principal do estudo histiocitose das células de Langerhans (LCH) IV da Sociedade Internacional de Histiocitose. Essa é uma doença sistêmica associada à proliferação e à acumulação de células de Langerhans em vários tecidos. O problema é raro e a prevalência está estimada em um ou dois casos para cada 100 mil pessoas, na maioria, crianças. Carlos Rodriguez-Galindo esteve em Brasília para participar do XIV Congresso Brasileiro de Oncologia Pediátrica, realizado no Centro de Convenções Ulysses Guimarães.

A medicina personalizada é o principal objetivo hoje na busca por tratamentos mais eficazes contra o câncer. Estamos mais próximos desse futuro clinicamente?
Acho, primeiro, que a medicina personalizada é um sonho. O objetivo é que deveríamos ser capazes de desenvolver tratamentos para cada paciente, baseados na forma como o tumor se comporta durante a vida. Provavelmente, estamos indo nessa direção, especialmente quando avançamos na nossa habilidade de sequenciar geneticamente os tumores. Os preços estão diminuindo. Hoje, conseguimos sequenciar o genoma completo do câncer de um indivíduo, sendo que estamos focados principalmente nos genes associados ao câncer. Porém, podemos trabalhar em todos eles e, então, identificar quais alterações são provavelmente as mais importantes.

Uma vez que essas alterações são identificadas, qual é o próximo passo?
Tudo é muito heterogêneo, e normalmente existem múltiplas alterações. Os tumores têm o que chamamos de evolução disclonal, isso é, eles mudam com o tempo e durante o tratamento. Portanto, podem não permanecer sempre naquela forma única identificada inicialmente. Sendo assim, somente uma droga, provavelmente, não fará diferença. Então, para um grupo pequeno de tumores em adultos, é possível identificar a alteração que pode estar guiando a transformação, tratar e ter esperança de que ele responderá. Eu apresentei (no congresso) esse exemplo do que chamamos de match trial (ensaio de combinação, em inglês), que faz basicamente isso. Foram reunidas dezenas de diferentes empresas farmacêuticas nos Estados Unidos que disponibilizaram drogas, mais de 40 tipos, divididas em seis ou sete categorias. Um paciente com o tumor terá o cancro sequenciado. Vamos dizer que ele tem um certo tipo de alteração genética e será incluído em um teste clínico. Outro paciente tem outra alteração e vai para outra categoria e assim por diante. Então, você constantemente combina a alteração genômica do tumor com as drogas que você tem.

É possível fazer o mesmo para crianças? É uma situação muito diferente?

Sim, para crianças as alterações são um pouco diferentes. Em adultos, você tem uma taxa muito maior de mutações. Em crianças, por causa do tipo de câncer, as mutações já são muito mais baixas. Para muitos tipos, não vemos qualquer alteração, e isso é basicamente porque o câncer pediátrico é um câncer embrionário. Provavelmente, é mais dependente do epigenoma que do genoma em si, considerando que o epigenoma é basicamente o regulador do genoma. Então, é possível que você não tenha alterações nos genes, talvez tenha em genes que regulam os genes do câncer. Isso é um pouco mais complicado. Em câncer pediátrico, temos que levar a medicina personalizada mais para o lado da medicina epigenômica do que para a medicina genômica. Possivelmente, é isso que acontecerá. Hoje, cerca de 25% a 30% das crianças que têm de tumores sólidos com relapso, por exemplo, têm uma alteração alvo que pode ser combinada. Por esse motivo, haverá, no ano que vem ou em dois anos, o equivalente ao match trial também para pediatria. Com tipos diferentes de drogas, mas esperamos que possam fazer o mesmo.

Ensaios clínicos com crianças são mais complicados que com adultos?
Temos alguns aspectos aqui. O primeiro é que qualquer ensaio clínico em pacientes da pediatria está sujeito a uma regulação mais estrita. As crianças são uma população vulnerável, não podem consentir ou responder por elas mesmas. É preciso ter um ambiente muito mais regulado. Em segundo lugar, os números são muito menores. O câncer pediátrico corresponde a apenas 1% dos cânceres em geral, nos Estados Unidos. No Brasil, o percentual é de 3%, porque a expectativa de vida é mais baixa e existem mais crianças. Então, se você quer fazer um ensaio clínico para câncer de mama, a incidência no Brasil é de cerca de 57 mil casos por ano. Já para crianças, são 11 mil casos de câncer que precisam ser divididos entre leucemia, tumores cerebrais e outros tipos. Para cada doença em específico, temos apenas centenas de pacientes em todo o país. Algo como comparar dois mil casos por ano no Brasil de osteosarcoma, uma das doenças mais comuns em crianças, e quase 60 mil casos apenas de câncer de mama, uma das doenças mais comuns em adultos. Dessa forma, desenvolver um ensaio clínico é muito difícil. É preciso, ainda, embaralhar os pacientes, fazer ensaios de fase um, dois e três. E os números limitam muito o que é possível fazer. Em terceiro lugar, é que, para incorporar novos agentes terapêuticos, é preciso esperar pelo ensaio clínico em adultos primeiro. E então começar em pediatria.

Em quanto tempo é possível lançar uma terapia específica para crianças?
Normalmente, há uma lacuna de cinco a 10 anos. Muitas das drogas que hoje estão aprovadas para adultos ainda nem começaram os testes em pediatria. Há uma alteração até para possibilitar a medicina personalizada. Você sabe que a droga funcionaria em pediatria, mas a criança tem apenas 3 anos e a droga só foi testada em pacientes com 18 ou mais. Não há dados de toxicidade e eficácia. Não é possível usar essa droga, a não ser que tenha uma permissão especial das empresas farmacêuticas e do governo. Estamos cerca de 10 anos atrasados.

Para outras doenças e sintomas, normalmente, a estratégia para medicar uma criança é diminuir a dose. A situação, então, é completamente diferente quando falamos de oncologia?
Sim, é outra doença e depende muito de como o corpo tolera as medicações. Quanto mais novo o paciente, mais diferente é a distribuição da droga no sistema, em termos de distribuição e excreção metabólica. Temos que repetir tudo que foi feito em adultos, na pediatria. Mesmo que tenhamos os dados de fase um em adultos e soubermos a toxicidade em adultos, você tem que repetir em pediatria. E, muitas vezes, é preciso fazer a mesma coisa em diferentes grupos etários. Agora, o que vai acontecer é que precisamos fazer os testes em crianças que são menores de 4 anos, menores de 12 anos, e que estão na pós-puberdade. É complicado, mas é basicamente sobre segurança, é para proteger as crianças dos efeitos colaterais que podem acontecer.

Hoje, o financiamento de medicação oncológica pediátrica é um problema?
Para novas drogas, há alguns problemas de financiamento de empresas farmacêuticas trabalhando para um mercado. Você encontrar uma droga que é muito efetiva para um dos alvos moleculares para o qual tem sido estudada. É um bom medicamento, com um mercado limitado para adultos, mas um bom mercado em pediatria, por exemplo, uma droga que pode ser usada para rabdomiossarcoma. Porém, após 10 anos de testes em câncer pancreático, mamário e de cólon, a empresa decidiu que não tem mercado em adultos. Para uma empresa farmacêutica, é muito difícil manter uma droga no mercado apenas para cânceres pediátricos. Não tem custo-benefício, porque os números são muito pequenos, então as empresas farmacêuticas nem desenvolveriam essas drogas, nem testariam. No entanto, nos Estados Unidos, tem uma lei implementada há alguns anos que força as empresas farmacêuticas a apresentar um plano pediátrico. Antes disso, o que acontecia é que as empresas farmacêuticas testavam a droga por cinco, 10anos, em fases um, dois e três, para mama, cérebro e outros órgãos. Decidiam que não era boa o suficiente e que não tinha necessidade de ser desenvolvida e a retirava do mercado. Aquela droga poderia ter um papel em pediatria, mas elas sumiam antes mesmo que tivéssemos a chance de testá-las. Por esse motivo, o governo federal aprovou uma lei, o mesmo aconteceu na Europa, na qual as empresas farmacêuticas são forçadas por lei a apresentar um plano pediátrico. Elas são obrigadas a fazer e, se realmente acham que o medicamento não tem um papel na pediatria, precisam discutir e embasar essa explicação com o governo. Isso foi há cerca de cinco, seis anos. Então, hoje sabemos que todas a empresas precisam desenvolver um plano de investigação para a pediatria, um PIP (sigla em inglês para pediatric investigation plan). O FDA (agência de fiscalização sanitária norte-americana) nunca aprovará uma droga sem o plano pediátrico.

Estamos falando da Europa e dos Estados Unidos, mas em suas palestras o senhor destaca a necessidade de acesso global ao tratamento para o câncer pediátrico. Como isso poderia ser feito?

Como tornar global? Apenas 9% de todas as crianças com câncer estão nos Estados Unidos e talvez outros 8% na Europa. Juntos, são menos de 20% de todas as crianças com câncer no mundo. Então, 80% estão fora desses centros de tratamento. Toda a pesquisa que fazemos e os avanços na legislação são, na verdade, aplicáveis a um grupo pequeno de pacientes. O desafio é como tornar global, como avançar o tratamento para todas as crianças, como tornar a genômica disponível para todas as crianças. Cuidar de crianças com câncer já é caro, tem quimioterapia, médicos, cirurgia. Tudo isso é muito caro no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos. Agora, vamos trazer a medicina personalizada, vamos usar a medicina genômica e proteômica. Como vamos fazer para ter certeza que crianças no Brasil, na África ou na China tenham acesso a essa nova forma de ver as coisas: combinar o tumor do indivíduo com a droga? Esse é um desafio. Ainda não sei a resposta. Talvez a criação de centros genômicos internacionais que cubram crianças em três ou quatro países, com todos os governos contribuindo para isso. Na China ou na Índia, por exemplo, achamos que isso vai ser efetivo. O que eu acho é que precisamos ter esse tipo de solução.