Refeição em família pode proteger os filhos contra o bullying

Pesquisa canadense indica que a maior abertura ao diálogo explica esse benefício

por Correio Braziliense 06/11/2014 09:00
	Oswaldo Reis/Esp. CB/D.A Press
A família de Maria junta-se todos os dias da semana, às 12h50, para almoçar: abertura para todos os tipos de conversa (foto: Oswaldo Reis/Esp. CB/D.A Press)
Planejar as férias, contar as novidades do dia e lembrar o próximo aniversário de um parente. Todos assuntos frequentes nas refeições em família. Cada vez mais raro por conta da crescente correria cotidiana, o encontro ainda ajuda a proteger os mais novos de um problema também da modernidade: o bullying praticado nas internet, também chamado de cyberbullying. É o que indica um estudo desenvolvido na Universidade McGill, no Canadá. Para os pesquisadores, isso acontece pela abertura que ocorre na relação entre pais e filhos com o contato rotineiro à mesa.


Foram entrevistados mais de 20 mil adolescentes. Os questionários focavam em sinais de cyberbullying ou de quando essa violência é praticada diretamente, sem recursos tecnológicos. Um em cada cinco voluntários havia passado pela experiência. Os pesquisadores também chegaram a uma espécie de ranking dos efeitos provocados por ela (veja quadro) e alertam que as refeições em família não impedem que o cyberbullying ocorra, mas evita os efeitos negativos dele.

“As novas gerações cresceram em um meio virtual, em que tudo é através da tela. Mas esse contato sozinho não adianta. É importante criar vínculos por meio de conversas e risos juntos”, diz Mônica Portella Collares, psicóloga especialista em terapia de família sistêmica e em transtornos da imagem corporal e não participante do estudo. Durante os sete dias da semana, às 12h50, Maria Nery, 18 anos, os pais e o irmão mais novos se sentam à mesa para almoçar. “Só não com o mais velho porque ele mora em Natal”, diz a estudante. “Todos nós fazemos questão de nos unir. É até estranho quando não comemos juntos.” A família gosta de comentar os programas de esporte e conversar sobre as rotinas e os planos de cada um, o que faz com que fiquem mais abertos para qualquer tipo de diálogo.

Durante a adolescência, a jovem ouviu alguns xingamentos e ironias com duas coisas em especial: o lugar em que mora e as sobrancelhas. “Sempre morei longe de todo mundo e ouvia várias chatices sobre isso. As pessoas também implicavam dizendo que eu tinha sobrancelhas muito grandes e tudo mais.” Quando isso aconteceu, ela recorreu aos pais, que ficaram muito chateados com a situação, mas deram a ela um conselho que funcionou e que a razão das refeições em família: uma boa conversa. “Eu conversei com as pessoas que falavam essas besteiras e como me sentia”, relembra.

Segundo Mônica Portella Collares, os sintomas de bullying, independentemente de ele ser virtual ou direto, podem ser percebidos dentro de casa, como a ausência de sono e de fome. “Por isso, a criação do vínculo é importante. Não existindo, o adolescente só vai contar em última instância, no momento em que já estiver insustentável. Quando há, os pais se tornam as primeiras pessoas em quem ele pode confiar”, diz.

Líder do estudo publicado na revista Jama Pediatrics, Frank Elgar ressalta que, não havendo condições dos encontros diários, esse espaço aberto para o diálogo deve ser percebido de outras formas. “Aqui no Canadá, fizemos uma pesquisa e percebemos que cerca de 50% das crianças ainda fazem as refeições em casa com os pais. Isso não quer dizer que a outra parte delas não tenha laços com eles. Sair nos fins de semana, mandar mensagens durante o dia e fazer atividades juntos pode ter um efeito equivalente”, garante. O pesquisador defende que, nos casos graves de cyberbullying, os pais devem entrar em contato com as autoridades.

Dinâmica adaptada
A professora Valéria Eira, 47, não precisou chegar a tanto. Mãe de quatro filhos, ela conta que o mais velho, hoje com 24 anos, sofreu chacota dos colegas por causa do sobrenome: Peixoto. As brincadeiras já haviam sido tema das refeições em família. “Também me chamavam muito de peixe morto quando era mais jovem. Falei para ele parar de se incomodar com isso, porque parava. E deu certo”, conta. Ela ri dizendo que o filho acabou incorporando o apelido. Hoje, a maioria dos amigos o conhece como peixe.

Psicóloga de família e casal, Flávia Barcelos ressalta que o momento das refeições é uma oportunidade de contato e interação que serve também para perceber os “ditos” e os “não ditos” dos filhos. “Dá para observar mudanças comportamentais. Se estão mais exaltados, tristes, ansiosos ou calados após a leitura de mensagens, e-mails; e também perceber o silêncio, que muitas vezes é um silêncio que grita”, sugere.

Valéria concorda que sente ser esse domínio da tecnologia sobre atitudes cotidianas um dos motivos para a mudança da dinâmica familiar. A professora lembra que, quando era solteira e morava na casa dos pais, diariamente eles se reuniam durante todas as refeições. O hábito foi levado para a família que formou. “Minha mãe não trabalhava e eu e minha irmã ficávamos muito em casa, o que facilitava. Com meu marido e meus filhos, temos que coordenar muito bem todas as atividades de todos no dia a dia.”

Os Eiras fazem o possível para se unir cinco dias da semana, pelo menos durante o almoço. “Quando não comemos em casa, juntamos todos em algum restaurante que esteja em posição boa para os locais de trabalho ou da escola”, diz Valéria, mãe de outros jovens de 22, 16 e 10 anos. Além disso, todos têm que desligar os celulares enquanto estão à mesa para “aproveitar o momento”.

Outro hábito é o dia da família, quando todos se reúnem para fazer algo que um dos integrantes propôs. A cada semana, a escolha é de um. “Nós saímos para comer, vemos filme…tudo ao gosto de quem está escolhendo. Recentemente, vez do meu marido, comemos tapioca”, conta a professora. Também entram na brincadeira as namoradas dos filhos. “É bom porque elas nos conhecem melhor em situações cotidianas, como as refeições tradicionais na casa da minha sogra.”

Mônica Portella Collares defende que as experiências vividas na casa de Valéria deveriam ser mais valorizadas em outras famílias. “Pais e filhos vêm conversando cada vez menos, a ponto de algumas refeições se resumirem a indivíduos sentados em uma mesa rezando para a comida acabar logo”, lamenta. A psicóloga explica que a terceirização dos cuidados com os filhos por parte de alguns pais só reforça a caricatura dessa situação desconfortável.



Honra ferida
“O cyberbullying é um tipo de agressão que fere a honra da pessoa e que pode frequentemente passar despercebida, mas que traz constrangimento e consequências graves. Os casos são cada vez mais frequentes, pois permitem ao agressor agir anonimamente. A sugestão para os pais é o acompanhamento e a comunicação efetivos. Acompanhar na escola — fazendo visitas inesperadas —, saber quem são os amigos e as companhias dos filhos e observar, acima de tudo, a postura comportamental deles. Muitas famílias não se encontram nas refeições com regularidade, mas fazem outros momentos acontecerem, dão apoio de outras formas, criam oportunidades, como os pequenos passeios”. - Flávia Barcelos, psicóloga terapeuta de família e casal

Se não der nas refeições...

- Joguem videogame juntos
- Assistam a programas de televisão
- Pratiquem atividades físicas
- Brinquem com jogos de tabuleiro
- Vão ao cinema ou ao teatro
- Visitem exposições
- Troquem mensagens nos dias úteis
- Busque entender os gostos dos filhos

Fontes: Frank Elgar e Mônica Collares Portella

Principais efeitos
Confira o que o cyberbullying provoca nas vítimas, segundo estudo da Universidade McGill, no Canadá.

1º Depressão
2º Ansiedade
3º Pensamentos suicidas
4º Luta física
5º Automutilação
6º Vandalismo
7º Uso indevido de drogas prescritas
8º Beber em binge (beber muito de uma vez)
9º Embriaguez
10º Uso Indevido de medicamentos de balcão
11º Tentativa de suicídio