Idealizadora do Centro Especializado em Dislexia relata a própria experiência

por Flávia Duarte 24/09/2014 09:03

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A psicopedagoga Mariflor Maia, 49 anos, não fica tão à vontade diante de ouvintes. Volta e meia dá palestras, mas tem medo de confundir alguma palavra ou ser traída pela memória fugaz. Assim, acha bom quando tem uma figura conhecida com quem possa trocar olhares de confiança. É assim até se sentir mais segura e engatar na apresentação de um tema com que trabalha e convive: a dislexia.

Figura carismática, Mariflor se expressa com clareza e faz soar um sotaque que lembra o de uma francesa que aprendeu o português como segunda língua. No entanto, ele não é resultado de nacionalidade distinta e sim de uma dislalia, uma troca de letras. Com ajuda de fonoaudióloga, Mariflor trabalhou essa deficiência. Corrigiu o pensamento e agora fala calmamente, sem trocar nenhuma letrinha.

 Marcelo Ferreira
"É preciso entender que se trata de uma disfunção neurológica e não uma deficiência" - Mariflor Maia, psicopedagoga (foto: Marcelo Ferreira)
Ela é especialista em educação especial e idealizadora do Centro Especializado em Dislexia. Ajuda crianças, que, como ela, têm dificuldades em aprender por causa do jeito diferente de funcionar do cérebro. Ensina a elas estratégias para compreender e gravar as palavras. Inventou jogos de matemática para, juntos, solucionarem uma comorbidade que pode acompanhar o quadro: a discalculia, que torna muito difícil fazer contas. “Quando esses meninos chegam ao consultório, já estão fragilizados, sentindo-se incapazes, considerados preguiçosos,” lamenta. “Mas é preciso entender que se trata de uma disfunção neurológica e não uma deficiência. A família e os professores precisam acreditar que ele é capaz”, desafia.

Apontada como incapaz ela própria o foi. O diagnóstico de dislexia não chegou cedo, no caso dela, só na vida adulta. Mas ela sabia que alguma coisa estava errada. Nunca se orientou bem, tinha dificuldade para escrever, trocava as palavras para falar. Como lidar com características tão específicas e realizar o sonho de ser professora? Algum dia lhe disseram que isso seria impossível. Afinal, a moça que falava bem e dominava o conhecimento que ouvia, não conseguia se organizar financeiramente, não podia ler um livro nem fazer anotações em um papel. Ela deveria ter um “retardo mental”, algum leigo a ofereceu um diagnóstico.

Mariflor nunca aceitou aquela verdade preconceituosa. E provou que estavam errados. Formou-se em pedagogia e dirigiu escolas. Em cargos de comando, disfarçava o quanto podia suas limitações. Até hoje, só conta que é disléxica quando sente necessidade de compartilhar. Preferia não ler pauta em reuniões da escola. Perdia-se naquele papel de “letrinhas que piscam”, como definem os disléxicos. Sempre cuidou de tudo, mas na hora de redigir algum material, delegava a função. Não queria passar apertos.

Hoje, lida bem com a escrita. Fez caligrafia para corrigir outra companheira possível da dislexia: a disgrafia. É quando a pessoa escreve garranchos incompreensíveis. No caso dos disléxicos, pode ser resultado de uma confusão com os códigos linguísticos ou uma tentativa de borrar os próprios erros. Mariflor agora tem letra bonita. Preocupada em não deixar nenhuma informação importante esquecida durante a entrevista, anotou tudo no papel, sem erros e com escrita caprichada. Havia uma rasura apenas, indício de como ela se dispersa facilmente. Escrevia quando recebeu um telefonema. Atrapalhou-se e, em vez de escrever “computador”, como queria, o que veio à mente foi outra de início parecido “companheiro”. Mas ela logo percebeu e se corrigiu.

Zuleika de Souza/CB/D.A Press
"Nossa sociedade não está preparada para ver o diferente, especialmente se esse diferente não está na cara" - Otávio Giácomo, psicanalista (foto: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
Mente sempre atenta contra qualquer armadilha armada pelo cérebro é rotina de quem convive com o distúrbio. Controlar os pensamentos dispersos é algo que Otávio Giacomo precisa fazer a cada minuto. Trazê-la de volta, já que ela se envolve com qualquer atrativo que tenha ao lado. Ele apresenta TDAH, o transtorno de deficit de atenção, que pode, ou não, acometer os disléxicos. “Somos irrequietos por natureza. Tenho que me concentrar muito para prestar atenção em alguma coisa”, comenta, enquanto parece não caber na cadeira tamanha inquietação.

Assim como Mariflor, Otávio só descobriu adulto o que o levava a ser reprovado na escola, não aprender o que os irmãos mais novos aprendiam, ainda que muitas vezes soubesse mais do que eles. É disléxico e com o deficit de atenção ficava ainda mais difícil se concentrar nas tarefas. Sempre foi esquecido. Precisa que a mulher relembre dos compromissos. Quando criança, a família já sabia que ele não se atentaria ao dia do aniversário dos familiares. Assim, já compravam os presentes em nome dele. Cabia a Otávio só entregar.

Apesar das risadas que solta enquanto conversa, disso ele não se lembra com graça. Ao contrário, emociona-se. Para ele, como acontece com tantos outros que têm as mesmas características, não foi fácil ser julgado como incapaz. Quando criança, estudou em turma de deficientes mentais, crianças com retardo mental. O problema dele, porém, não era esse. Só aprendia diferente, em tempo distinto dos demais.

Adolescente, descobriu com a primeira namorada que, se ela lesse o conteúdo das aulas em voz alta, ele assimilava a matéria. Fez dos ouvidos aliados. Começou a estudar com videoaulas. Descobriu que colorir as ideias com canetas de tons diferentes também deixava o pensamento mais organizado. Mantém um estojo com canetinhas de cores diferentes para fazer anotações até hoje, aliás. Isso ajuda a quem é desorganizado por essência. Otávio tira a carteira do bolso para dar uma prova que organização não é mesmo seu forte. Papel e dinheiro estão amassados, misturados, prestes a cair de lá.

Disso ele ri. É o de menos. Mais aperto já passou por causa da letra ilegível. Conta que gastava quase um talão de cheques para pagar um jantar romântico. A dislexia, a disgrafia, somadas à tensão do momento, o fazia errar o preenchimento dos valores. Uma, duas, muitas vezes. “Ainda bem que agora existe cartão de débito”, brinca, já que com a matemática também nunca foi muito bom. Assim, melhor que fazer contas de troco, mais fácil digitar uma senha, mesmo que, às vezes, ele também se esqueça dela, claro.

Apesar dos apertos, conseguiu encontrar formas de superação. Fez faculdade de relações públicas. Depois, psicanálise. Agora, trabalha com psicologia. Sonha em fazer mestrado, mas sabe que enquanto não aprender o inglês não será aceito na academia. Se o português é traiçoeiro a seus olhos, que dirá uma língua estrangeira. Lamenta pelas exigências formais que ainda não consegue cumprir para ser um mestrando, mas não desistiu do sonho. “Nossa sociedade não está preparada para ver o diferente, especialmente se esse diferente não está na cara. Ninguém é melhor do que ninguém por causa de um conhecimento mal organizado.”