Polêmica do sutiã com bojo para crianças volta à cena com modelo para bebê de 2 anos

Especialistas alertam pais sobre erotização e adultização da infância

por Valéria Mendes 21/07/2014 08:30

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Em 2011, a notícia de um sutiã com enchimento da Disney destinado às crianças de 4 a 6 anos mobilizou protestos na internet contra a adultização e erotização da infância. Por que meninas dessa idade usariam sutiã? Que família compraria um produto como esse? Alguns produtos sequer deveriam existir? Três anos depois e uma busca rápida pela internet mostram que a roupa íntima não só está no mercado como ganhou ares de ‘sofisticação’ com bojo, renda e aro. Detalhe: em alguns sites é possível encontrar a peça para bebês de 2 anos. “Não basta dizer às pessoas que não comprem. Precisamos de produtos adequados nas prateleiras”, resume a educadora para o consumo, coordenadora do Movimento Consciência e Consumo e colaboradora do Movimento Infância Livre de Consumismo, Desirée Ruas.

A psicanalista e psicopedagoga Cristina Silveira reforça que sutiãs - com ou sem bojo - para crianças entre 2 e 7 anos é um acessório completamente inadequado. “Nesse período, a menina não tem desenvolvimento físico, nem competência emocional ou mesmo cognitiva para entender todo o processo que envolve a utilização dessa peça. Um sutiã com bojo é um acessório que remete a um processo de adultização e sedução, assim como a maquiagem e os saltos altos”, afirma.

Para ela, usar essa peça – e ela repete: “seja com ou sem bojo” - para ir à escola, ao parque ou em atividades rotineiras da criança é muito diferente de quando a criança está brincando de imitar a mãe, por exemplo. “Por volta dos três, quatro anos de idade é comum que as crianças imitem os pais, irmãos, primos ou amigos durante as brincadeiras, o que é normal. Isso acontece por que a criança começa a se identificar, a perceber que as pessoas são diferentes. Para formar a sua identidade, passa então a experimentar novas emoções, sensações, buscando reconhecer aquilo que gosta e o que não gosta. Pode brincar de "mamãe", passar um batom, fingir que está cozinhando ou trabalhando, tentar usar os sapatos da mamãe, mas essa brincadeira é muito diferente de usar um sutiã de bojo em sua vida cotidiana, como se isso fizesse parte de sua infância”, alerta Cristina.

Desirée Ruas lembra ainda que, se é para a criança brincar de ser gente grande, o que é natural, não precisa da compra de produtos. “Para brincar, a criança não precisa do objeto concreto, afinal, brincadeira de verdade tem a imaginação e a fantasia como principais ingredientes”, acredita. O outro lado perverso desse consumo sem reflexão é, segundo ela, ver famílias criando rotinas de beleza para as filhas que não tem nada de lúdico: “Questões da vida adulta são colocadas para as crianças desde muito cedo, causando dependência desse tipo de consumo, de culto à aparência, já nos primeiros anos de vida”.

Infância vendida
A psicóloga Cristina Silveira diz ainda que a existência de sutiã para crianças exemplifica muito mais um investimento do mercado que achou na infância um filão para lucrar com produtos dessa natureza - sapatos de salto alto, maquiagem e garrafas de refrigerante que imitam champanhe - do que o desejo da criança em usar esses acessórios. “Na sequência, infelizmente, existe a aceitação e permissão de algumas famílias nesse absurdo. Talvez por desconhecimento das consequências que essa adultização pode trazer para vida de uma criança”, pontua.

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Desirée Ruas acredita que a responsabilidade é de todos. “Indústria, famílias, governos, mídia. Cada um tem que assumir o seu papel para contribuir com a proteção e o desenvolvimento saudável das crianças e para a construção de uma sociedade melhor para se viver. Sejam nossos filhos ou não, devemos nos importar com todas as crianças, questionar condutas que são explicitamente comerciais, que exploram a infância visando o lucro e que incentivam um comportamento que não contribui em nada para aquela faixa etária. Infelizmente, encontramos muitas famílias que compram estes produtos para seus filhos... Muitas vezes em momento de impulso, às vezes é a avó ou a tia que dá de presente, ou a criança pede e os pais compram sem refletir. Não se perguntam: minha filha precisa disso? Qual a função deste produto? Qual o significado real e o simbólico desta compra? Cada vez mais as crianças deixam de ser crianças, em meio ao consumismo, a tantos bens e a comportamentos de adultos”, pontua.

O Saúde Plena entrou em contato com as empresas que vendem sutiã para crianças para saber como é a venda da peça e conseguiu retorno de apenas uma. “Artigos como sutiãs e conjuntos infantis representam menos de 10% das vendas, as calcinhas são responsáveis por quase todo movimento no estoque de produtos infantis”, disseram por e-mail.

Adultização da infância: o que é
Vestir uma criança como um miniadulto tem várias repercussões, mas a adultização não passa apenas pela aparência. “Cada vez mais cedo, elas assumem responsabilidades e disputam posições em determinadas atividades, buscando múltiplas competências. Desprotegidas, recebem de forma direta a influência de uma sociedade que exige seres perfeitos, sentindo o peso das exigências de “gente grande”. Imitam hábitos e costumes dos adultos e, muitas vezes, já nem sentem alegria pela infância”, alerta a psicóloga Cristina Silveira.

A especialista lembra ainda que a criança não tem consciência dessa opressão e se submete a ela pois é considerada natural. “Na verdade, podemos avaliar que essa adultização vem de um processo cultural. Pipocam no comércio artigos para o público infantil que até então somente os adultos consumiam”, diz. Para ela, vestir uma criança e produzí-la como adulto é deslocá-la da fase em que ela deveria estar e jogá-la no universo adulto. “Munir uma criança de sexualidade é dar-lhe uma arma carregada que ela não saberá usar, até porque passa longe da criança o sentido erótico por trás do que ela veste ou usa. Sua maturidade psicológica certamente não acompanhará seu comportamento e sua aparência. Tal fato pode causar transtornos ansiosos e pânico, que podem culminar em depressão. Ou, então, podem repercutir na adolescência, através de comportamentos agressivos e antissociais, ou o contrário, gerando adolescentes inseguros e infantilizados, podendo culminar no uso de drogas. Pulando “fases”, a criança não amadurece psiquicamente o suficiente para lidar com as transformações que virão até alcançar a fase adulta”, alerta.

Atire a primeira pedra...
Quem nunca se pegou achando engraçadinho uma menina usando salto? O Saúde Plena já abordou os riscos físicos e psicológicos dos sapatos inadequados para as pequenas e existe até um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 1885/2011) que cria regras sobre a comercialização de caIçados com saltos altos para crianças (saiba mais). No entanto, esse visual ‘mocinha’ já está sendo incorporado socialmente o que faz com que os adultos deixem de pensar sobre isso. Sendo assim, se nada for feito, é possível que, no futuro, as pessoas não se assustem mais em saber que exista um sutiã para um bebê.

“São muitos modismos que nascem a cada dia. O caso dos saltinhos ilustra bem essa preocupação. Apesar do alerta dos ortopedistas, encontramos tais sapatos em todas as lojas infantis e também pelas ruas nos pés das crianças. Seria ótimo poder contar apenas com o bom senso e ação das famílias, mas nem sempre isso é possível, por isso precisamos da legislação para fazer prevalecer a proteção dos mais vulneráveis, as crianças e as famílias que nem sempre têm a informação adequada sobre o melhor alimento, sapato ou roupa para criança”, pondera Desirée Ruas.

Para ela, uma forma de frear a invasão de consumo desnecessário na infância passa pelo questionamento de movimentos e grupos que lutam pela garantia dos direitos das crianças. “O Movimento Infância Livre de Consumismo está dizendo que não quer que nossas crianças sejam adultas antes da hora e que o mercado esteja repleto de produtos desnecessários e prejudiciais para nossos filhos. A mobilização das pessoas faz com que as grandes redes deixem de vender um determinado produto, mesmo que tenha um público consumidor já definido, porque a imagem da empresa pode ser abalada”, diz.

Desenvolvimento dos seios
Membro da Sociedade Mineira de Pediatria, Ligia Kleim explica que a mudança no corpo das meninas é variável. “Em relação aos seios, podem começar a aparecer a partir dos 8 anos até os 13. É uma faixa bem grande e é muito individual”. Ela explica que do ponto de vista orgânico, o uso do sutiã não atrapalha o desenvolvimento do seio. No entanto, ressalta que a puberdade é uma fase em que a criança passa por alterações hormonais. “É um período difícil de convivência que, com certeza, tem influências psicológicas. As próprias alterações do corpo geram dificuldades em maior ou menor grau. Existem crianças e famílias que lidam melhor e outras não”, observa. Para ela, o uso do sutiã se justifica para quem já tem o seio desenvolvido e sugere os de algodão, que são peças mais leves que evitam a irritação e um possível incômodo. Segundo a pediatra, é comum que as crianças sintam vergonha quando o broto mamário começa a ficar visível com roupa. “Nesse sentido tem indicação de usar sim, para ‘despistar’ e a menina se sentir mais confortável. Um sutiã com bojo faria o contrário disso... A indicação de sutiãs com sustentação (aro) é quando a menina já tem o seio desenvolvido e vai praticar esporte, por exemplo. Mesmo assim, o bojo é desnecessário”, explica.