Bagagem acumulada ao longo dos anos pesa e ter coragem é o primeiro passo para se sentir mais leve

"Em um mundo que nada é fixo, querer segurar algo que é impossível de segurar é uma fonte de dor", afirma a monja Coen, da Comunidade Zendo Brasil

por Carolina Cotta 05/01/2014 12:02

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Arquivo Pessoal
Verônica, Rodrigo e a filha, Alice, abandonaram uma vida típica de classe média alta em Brasília e partiram em busca de sonhos e novas experiências (foto: Arquivo Pessoal)
Um mestre e seu discípulo, a caminho da aldeia, encontram uma moça à margem de um rio, que não consegue atravessar. O mestre lhe ergue os braços, a leva até a outra margem e segue seu destino. Seu discípulo o acompanha, perturbado: seu mestre sempre afirmou que um monge nunca deve se aproximar de uma mulher. Já no templo, ainda intrigado, ele o questiona: “Mestre, o senhor me ensina dia após dia a nunca tocar uma mulher, mas pegou aquela bela moça nos braços e atravessou o rio com ela”. O mestre responde: “Tolo. Eu deixei a moça na outra margem do rio. Você ainda a está carregando”.

Apego a bens materiais, a tradições, a ideias tidas como inquestionáveis. Apego ao sofrimento, ao passado, àqueles que já partiram. Carregamos muito ao longo da vida, afinal, o apego é algo inerente ao ser humano. Não deveria ser. Há nesse sentimento algo que conforta, algo conhecido, algo que permanece. É impossível estar desapegado de tudo, o tempo todo. Mas um exercício, uma tentativa de se desligar do que é estabelecido, tem um ganho em si: a opção de ver o outro lado, a liberdade para experimentar o novo. O desapego não precisa ser uma filosofia, e sim uma proposta a ser cumprida nas coisas mais simples.

Para o budismo, por exemplo, nada pertence ao ser, nem mesmo o próprio eu. Segundo a monja Coen, da Comunidade Zendo Brasil, Buda dizia que as coisas passam por nós assim como nós passamos por elas. Dizia também que o apego está relacionado ao ego. “Buda falava de um eu menor, um eu individual que não vê o todo, que se pensa separado do todo. Isso é delusão. É acreditar na falsa impressão de estarmos separados uns dos outros. Apego é acreditar nessa ideia de separatividade e tirar vantagens dela”, explica Coen.

Citando um antigo poema, Coen acredita que “o caminho não é difícil quando não há apego nem aversão”. E por isso o apego é uma causa de sofrimento. “Em um mundo que nada é fixo, querer segurar algo que é impossível de segurar é uma fonte de dor.” Daí a importância de ser capaz de abrir mão. Dos bens materiais, inclusive. “Se algo não é mais útil, passo adiante. Às vezes, as pessoas mantêm no armário uma roupa que não serve mais, simplesmente pela memória que têm daquela peça. Da mesma forma que essa roupa pode servir em alguém, essa pessoa pode criar novos momentos agradáveis”, sugere Coen.

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Dona Marica, de 92 anos, é conhecida em Sete Lagoas por doar tempo e dinheiro a quem precisa (foto: Arquivo Pessoal)
COMEÇAR DE NOVO
A publicitária Verônica Lacerda, de 29 anos, só percebeu que tinha “explodido sua zona de conforto” já em Londres. Em 2008, ela e o marido, Rodrigo Mattioli, de 31, abandonaram uma vida típica da classe média alta em Brasília. Apartamento, carros, eletrodomésticos, tudo o que conseguiram vender virou dinheiro para começarem de novo. Rodrigo já tinha morado em Londres e queria voltar. O casal tinha uma empresa de fotografia e design que começava a crescer. “Se não fôssemos logo, o crescimento da empresa e o fato de a Alice começar a ficar mais velha seriam fatores que fariam mais difícil nossa saída de lá”, lembra Verônica.

Não foi fácil deixar tudo para trás. Verônica costuma dizer que demora para processar os acontecimentos da vida e só foi perceber o que tinha feito depois de alguns meses, já em Londres, sem conhecer ninguém, em um país que não fala sua língua e com uma filhinha de 1 ano ao colo. Para ela, foi um choque ter que reinventar a vida sem o apoio de ninguém por perto. Dos bens materiais ela diz não ter sentido falta. “Eu me virei muito bem sem os carros e aprendi a ser muita mais dona (e responsável) pelo pouco que tenho, cuidando eu mesma da minha casa e da minha filha.”

Verônica, Rodrigo e Alice, hoje com 7 anos, vivem uma verdadeira experiência de desapego. Não bastasse ter conseguido deixar para trás uma realidade e experimentar algo novo, fizeram tudo de novo. Depois de cinco anos em Londres, novamente venderam tudo o que dava para ser vendido, doaram outras tantas coisas e foram viajar. Dessa vez não foi possível se desfazer de tudo, porque não teriam mais uma casa fixa para onde levar o mais importante. Mas tudo isso foi guardado em cinco caixas médias – sim, com medidas de 40cmx40cmx40cm.

Um exercício de desapego. Verônica se lembra de chegar em casa e dizer: “Esse é o espaço que a gente tem para as coisas que a gente quer guardar”. Em seguida, pediu para alguns amigos guardarem as caixas enquanto estivessem viajando. “A segunda vez foi mais fácil. Depois de ter feito isso uma vez, perceber que não sentíamos falta das coisas e ver todo o ganho que a gente teve da experiência, estava bem mais confiante para arriscar de novo. Mais uma vez deixar as coisas materiais, os amigos feitos e algumas das certezas que acumulamos. Mais uma vez ir em busca das aventuras, das experiências e dos sonhos juntos.”

Eles perceberam que precisam de muito menos para viver; e que se sentem ricos com coisas simples, como ter chuveiro, teto, comida na geladeira. Perceberam que é preciso ter menos medo do mundo para estar mais aberto para experiências. Perceberam que desde que deixaram Londres, a filha nunca mencionou um brinquedo do qual sentia falta. Perceberam, principalmente, que ganharam tempo com essa nova postura. “Tempo para não estar sempre na pressa, correndo de um lado para o outro, tentando ter mais dinheiro, para comprar mais coisas, para preencher o vazio. O vazio que todo mundo tem dentro. E que é insaciável”, defende a publicitária.

Para essa família, desapego é a sensação de que nada é certo e nada é para sempre. E que isso é ao mesmo tempo assustador e maravilhoso. “Sair do país de origem para morar em algumas das grandes cidades da Europa é bem comum, mas para a gente esse começo foi um pouco a sensação de pular num abismo sem ter certeza que vai ter um pula-pula gigante lá embaixo para segurar a queda. Só que, se a gente não tivesse pulado, teríamos ficado lá, paradões, insatisfeitos, só imaginando como seria se... Então, nunca nos arrependemos.”