Narrativa que opõe enteados e madrastas está ultrapassada

Se a dinâmica das "famílias estendidas" permite tantos arranjos, por que não acolher filhos, pais e mães "tortos"?

por Revista do CB 10/10/2013 10:00

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O conceito de família está em constante mutação e já foi, inclusive, limitado a uma formação heterossexual, de conveniência e baseada em uma sociedade patriarcal. Isso, no entanto, há algum tempo deixou de representar ou traduzir as tantas formas de se viver numa comunidade familiar. Agora, o importante são os laços estabelecidos pelo afeto. “Nas últimas décadas, a ideia de família foi tomando outras formas e houve espaço para interpretações que pudessem englobar diversas maneiras de se viver em família, que pode ser composta por vários arranjos, acrescentando, inclusive, até animais de estimação, como cachorros e gatos”, avalia a doutora em antropologia e professora na Universidade de Brasília Debora Diniz.
 
Atualmente, uma família pode ser composta por amigos que vivem juntos; por duas mulheres com filhos; dois homens com filhos; uma mulher, um homem e filhos; um casal transexual com filhos. Essa revolução — evolução, pode-se dizer — nos costumes já encontra acolhida nos tribunais, na forma de reconhecimento de direitos civis, tanto para minorias quanto para novas formas de arranjos familiares. Um exemplo recente pode ser extraído de um julgamento aqui no Distrito Federal.

CB/D.A Press
Uma família pode ser composta por amigos que vivem juntos; por duas mulheres com filhos; dois homens com filhos; uma mulher, um homem e filhos; um casal transexual com filho (foto: CB/D.A Press)
Em agosto, a 2ª Vara de Família do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios reconheceu a tripla filiação de uma mulher, Luciana (nome fictício), 54 anos. No caso, a autora do processo poderá acrescentar o nome do pai de criação, que faleceu há dois anos, ao lado do nome do pai biológico, que morreu quando ela ainda era pequena. Ela teria legalmente, na certidão de nascimento, dois pais e uma mãe.

Inédita na capital, a sentença baseou-se no vínculo socioafetivo entre padrasto e enteada, evidenciado por fotos, cartas e diários deixados por ele. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), representando o Estado, recorreu à sentença e agora o processo corre em 2ª instância. Sem outros herdeiros, a herança do falecido iria toda para o Estado. “Pelo que vimos, o MP recorreu por formalismo: ‘uma pessoa só pode ter um pai e pronto’. Mas a nossa lei-base de direito de família e sucessões foi pensada em 1970 e fecha os olhos para situações que existem nos dias de hoje. Em 40 anos, as famílias mudaram muito”, esclarece a advogada Clarissa Dobal, uma das advogadas que representa a autora da ação.

Para a juíza de família do TJDFT Ana Maria Louzada, diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família — Centro-Oeste, impedir direitos apenas pelo fato de que essa estrutura familiar não esteja formalmente prevista já não se justifica. “Nós, julgadores, devemos nos preocupar com a felicidade de todos, e essa felicidade somente poderá ser alcançada na medida em que cada ente da família for respeitado na sua inteireza.”

Zuleika de Souza/CB/D.A Press
Thayná, Tânia Maria, Iclea Maria e Yanara formam uma família extendida: carinho em medidas iguais (foto: Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
Sendo advogada, Luciana não tinha dúvida sobre seu direito quando passou a lutar na Justiça pelo reconhecimento de paternidade post mortem do pai de criação, morto há dois anos. A ideia, no entanto, nunca foi excluir de seus documentos o pai biológico, que morreu quando ela era criança. “Eu tive um pai antes. Eu o respeito por ter me gerado, mas quem eu reconheço como meu paizão mesmo é o segundo marido da minha mãe”, revela. Bento (nome fictício) era advogado e, ao se casar com a mãe de Luciana (a quem chamaremos de Gisela), acolheu a enteada como própria filha, apesar da ausência de um processo formal de adoção. “Até o sobrenome dele, por coincidência, era o mesmo do meu pai biológico e, consequentemente, o mesmo que o meu. Nós nunca paramos para pensar em adoção porque já éramos pai e filha.”

João (nome fictício) e Gisela, pais biológicos de Luciana, e Bento, o padrasto, eram todos colegas de escola no Rio de Janeiro. Ela era a “garota do pedaço”, admirada por todos. Mas João foi mais rápido. Casaram-se e tiveram Luciana. Ao tornar-se viúva, já aqui em Brasília, foi a própria sogra de Gisela — atualmente com 101 anos — que a uniu a Bento: “Ela era metida a casamenteira e deu certo. Quando eu era bebê e meu pai biológico ainda estava vivo, Bento me pegava no colo e dizia baixinho ‘minha filhinha’. Dizem que meu pai ficava muito bravo”. Como filha, ele acolheu Luciana.

Precedente
No Brasil, já havia uma decisão semelhante, proferida em Rondônia dois anos atrás. À época, o autor da ação teve reconhecido o direito de acrescentar em seu registro (no qual já constava o nome do pai de criação) o nome do pai biológico.

Ilustração: Denise Brandt
(foto: Ilustração: Denise Brandt)
Laços inquestionáveis
A paternidade por vínculo afetivo entre Luciana e seu padrasto, inclusive para fins sucessórios, foi reconhecida em agosto. Se os recursos do Ministério Público não forem aceitos, a decisão permitirá que conste, por definitivo, nos documentos de Luciana tanto o pai biológico quanto o de criação. A advogada de direito civil Ludmila Araújo de Ornelas explica: “A lei pouco mudou frente às modificações que a sociedade sofreu. O que tem mudado é o entendimento dela. O entendimento de que, às vezes, laços afetivos são tão ou mais importantes do que sanguíneos”. A ideia defendida por alguns juízes, promotores e advogados é que, em disputas entre quem cria e quem é mãe ou o pai biológico da criança, a filiação tripla no registro civil deve ser uma opção.

“O fato de poder haver mais de um pai ou uma mãe na Certidão de Nascimento só vem a fortalecer o entendimento do melhor interesse do infante. Quando se oportuniza que, além do genitor, a pessoa possa ter, em sua certidão, a pessoa que fez as vezes de pai ou mãe (a pessoa que efetivamente exerceu a função paterna ou materna), está se traduzindo a realidade daquela família específica. Por conseguinte, este filho terá mais avós e herdará de mais pessoas, assim como poderá pedir pensão alimentícia de um número maior de pessoas”, afirma a juíza Ana Maria Louzada.

Para provar o carinho e o afeto entre Bento e Luciana, foram reunidas fotos, cartas e diários. Outro ponto importante na decisão foi o fato de ela ter cuidado do pai de criação durante toda sua última década de vida, quando ele mais precisou. De acordo com a advogada Clarissa Dobal, o mesmo dever e responsabilidade civil, material e imaterial, que pais têm com os filhos, têm os filhos com os pais à medida que eles envelhecem. No caso, ambos respeitaram as normas de cuidado entre pai e filho até o fim, quando era Bento quem necessitava de cuidados.

“Meus pais se completavam. Quando minha mãe faleceu, metade dele foi junto”, lamenta Luciana, que passou a ser o porto seguro da família quando Bento foi afetado pela doença de Alzheimer, mal neurodegenerativo incurável. “Ele perdeu o brilho nos olhos. A luz se apagou. O Alzheimer arranca o melhor da pessoa. Ele era um lorde e foi esquecendo tudo.” Ao todo, foram 10 anos de convivência com a doença.

Ele adorava viajar de carro e parar em estradas e pequenas cidades. Se a filha não estivesse junto, ele enviava cartões-postais de onde quer que estivesse. Ela não quis privá-lo dessas experiências, mesmo doente: “Fomos a Recife, ao Rio de Janeiro, e ele adorava. Quem olhava de longe não imaginava. No último ano, eu senti que não deveria mais insistir. Foi quando ele faleceu, quando esqueceu como se respirava”. Todas essas experiências renderam a ela uma certeza: “Quem me conhece me liga a ele. Ele é meu pai. Quando vou preencher algum documento, tenho que parar para pensar um pouco. Eu respeito quem me gerou, mas todo meu amor foi pra ele”.